POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

As extraordinárias viagens de Dan Eldon





A aventura não depende apenas do encontro com inusitado, 

ela é, antes de mais nada, uma disposição do espírito.

Contardo Calligaris



Em 1992 da-se início à derrocada do Apartheid na África do Sul. Frederik Willem de Klerk, então presidente do país, revoga leis racistas e inicia o diálogo com o Congresso Nacional Africano - CNA, apesar da reação e grande resistência da direita. Um plebiscito só para brancos, realizado neste mesmo ano, em que 69% dos votantes se pronunciam pelo fim do Apartheid foi seguido, em 1993 pela convocação de eleição multirracial para abril de 1994.
Fora do parlamento, onde estava sendo votada a continuidade ou não do regime de Apartheid, uma praça cheia de sul africanos negros, de punho erguido, protestavam à espera do resultado. Ali, em meio à multidão, se avista um jovem branco que fotografa, deixando escapar amadorismo, pegando ângulos que lhe interessavam daquela gente na expectativa dos resultados mais esperados ao longo de suas vidas. Naquele momento abria-se uma estrada que levaria o jovem fotógrafo muito além do que poderiam imaginar, ele próprio, uma jornalista que acabara de conhecer e a plateia. É o começo de uma jornada em que tomamos parte, queiramos ou não, pelo carisma do viajante, pela sedução da vida pulsante, jovem e descomprometida que vai descortinando, a cada quilômetro, inusitadas sensações, inesperados acontecimentos, paisagens, cores, cheiros, sabores mas também, violência medo e temor. Não há como ficar de fora da pujança de gestos, dos excessos de surpresas nos poucos anos de vida  do carismático Dan, retratados na tela. É da sua vida que vêm os motivos para inquietar, fazer rir, chorar, amar e, nesses tempos de quietude e sedentarismo obrigatórios, nos tornar os maiores globetrotters do planeta. A África é o mundo todo nas mãos e nos pés e no coração desse jovem, que continua esculpindo-a com o talento de quem ama a vida e quer todos, como ele, felizes, até mesmo no rincão mais distante e massacrado do continente. Um jovem bom, apaixonado e feliz que com doçura se revolta e combate o racismo, despreza o nazismo, e luta por igualdade. The Journey is the Destination, a Jornada é o Destino [em si]. Nada pode melhor definir o que foi Dan Eldon do que o próprio título do filme. O que foi, o que viveu. Esse fotojornalista moldado na estrada, nas ruas e nas casas dos que tão bem soube respeitar e defender, foi vítima, em última instância da confiança no outro e da famigerada "guerra humanitária” de Bush, na África.
A história volta algum tempo até seus anos na Escola Internacional do Quênia, onde está concluindo os estudos secundários e já sonha em explorar o mundo, registrando-o por suas lentes. De início a impressão de uma história a ser contada para os peers, impressão logo revista pela certeza que o talento do protagonista e emoção não faltarão para dar credibilidade à narrativa e envolver diferentes tipos de audiência.  A primeira foto tirada, lost in hell and paradise, já traz autenticidade, já vislumbra a figura que se difere no meio dos seus e, seguramente, nos levará a um mundo de cores, todas as cores.  
A primeira estrada percorrida pelo estudante que, de forma inusitada, sabia quais almas mereceriam atenção, em qualquer canto, o oposto do que se esperaria do jovem para quem amigos e família já haviam traçado e definido caminho e destino certos: a cena de um primeiro olhar curioso na TV é o desenrolar cinematográfico do que está por vir. Em 1990 consegue mobilizar um grupo de amigos, os mais impensáveis, em uma trip humanitária rumo ao Malaui. Um campo de refugiado de que tinha conhecimento e queria ajudar foi o mote da arribada. Aquelas viagens em que se embarca pela influência, sedução e carisma do mentor. Um safari humanitário que tem aí o seu start.
Safari com dias contados quando os amigos, ao contrário de Dan, não vêem nas aventuras moçambicanas, que se tornam cada vez mais perigosas, um destino que vale a pena buscar, um caminho a seguir. Abandonam o projeto de viajantes e exploradores do continente africano, forçando-o a continuar como fotógrafo em terras ricas em cultura, mas também em minas, guerras em cidades muitiétnicas, coloridas, alegres e tristes. Leva a sério, portanto, o que havia dito sobre trocar a escola formal pela escola da vida. Abre o caminho para conquistas inusitadas, como registrar o fim do Apartheid na África do Sul, viver a escalada da violência e da fome na Somália, conhecer profissionais e pessoas na sua curta e intensa trajetória, como a jovem jornalista, que se tornaria futura colega na agência britânica Reuters.
Até chegar a ser o reconhecido fotojornalista da Reuters teve suas provas de fogo em cidades destruídas, com corpos estilhaçados nas ruas e nas casas, gente desnutrida, alvos de artilharia, ignoradas e sem horizonte. Profundamente cheio de paixão pela vida, pelo humano, tornava-se único onde estivesse. Jovem branco em uma África com conflitos raciais, família com posses, chances de ir estudar em qualquer universidade londrina, optou pelo mundano. Na Somália é o mais jovem dos jornalistas da Reuters, até aquela altura, em toda história da agência britânica de notícias. O filme é um espelho e identidade de sua vida antes já registrada por ele mesmo em arte que postumamente se tornou livro. A sua verdade estava na empatia com o sofrimento alheio, na esperança e no desejo de contribuir com o combate a injustiças e levar alguma esperança para os desesperançados em meio ao caos dos países em guerra na África. Aquele mesmo compromisso pessoal com a vida, que se encontra nos bons, "nas boas almas", uma generosidade acrescida de firmeza. Aquela gentileza firme para que se sustente e, em ação, resultem bons produtos e não,  cause perdas.  No meio de uma juventude  radicalizada, refugiados em zonas de conflito, mas também jornalistas comprometidos com a verdade para fugir ao tradicional papel de registrar com os olhos dos poderosos e vitoriosos. Tudo podendo fazer uma grande diferença para o mundo. Dan vive não só para si, tem espírito comunitário, este é mais um de seus talentos. Em meio à guerra e aos diferentes grupos destruídos e destruidores faz arte, literalmente, é amoroso e se apaixona por Saba (vivida por Yusra Warsama), um crush que despontou antes do primeiro safari e vai percorrer consigo a jornada, seja presencial ou espiritualmente. Saba é redenção, amor e prova de que teve que "endurecer mas sem perder a ternura”.
Mark Ashton o mesmo ator que fez o ativista pelos direitos gays, no filme Pride de 2014, mostra mais uma vez seu talento como Dan. Atuação que traz dinamismo à cinebiografia, desburocratiza a história, torna-a apaixonante. O fio da meada da vida de Eldon, o biografado, não se deixa perder no roteiro, tampouco tem seu fim quando a tragédia o vitima. Fiel, envolvente com suas atitudes parcimoniosas e astutas em meio ao perigo, faz da fatalidade no caminho, que poderia lhe roubar o brilho, lhe trazer desesperança, um chamamento para continuar, por termo ao mal da guerra, utopia ou não. Arte e paixão os acompanhavam onde estivesse, no Quênia, na África do Sul, Malaui, Moçambique Londres ou Somália, onde infelizmente encerra sua vida e carreira prematuramente, apedrejado em um bairro periférico da Mogadíscio destruída por forças ianques. Uma turba raivosa cumpre o desejo insano dos desesperados, niilistas. O ano era 1993, quando Eldon teve abruptamente a vida interrompida por uma vingança abstrata, sem direção nem alvo. Com ele não se foram seus planos de respeito e autonomia de povos e países, pois ainda inspiram a luta de muitos jovens por justiça e para  mudar o mundo.
A sensibilidade em captar a alma humana pelas lentes de sua câmara unia-se ao desejo de ver e registrar paisagens e pessoas, costumes e cultura. A câmara era a extensão da sua visão de mundo, apreendia e fotografava o que sentia e o que sentiam os fotografados por  "lugares fora dos caminhos mais trilhados"(1), como diz Calligaris.

Dan Eldon viveu apenas 22 anos e teve trabalhos jornalísticos publicados na “Times” e na “Newsweek”, onde mostrou uma pequena parte do seu talento. No filme, sua veia artística é revelada além da fotografia, na beleza plástica de suas colagens, construídas com recursos que combinavam fotografias da África com pinturas, pastiche, imagens da cultura pop, publicidade e documentos oficiais, fazendo uma construção da própria história e existência:

 The Journey is the Destination coleta páginas dos 17 scrapbooks que fizeram parte da sua arte. [Pondo em ordem cronológica] seu trabalho desde os 14 anos até sua morte aos 22, o volume é surpreendente, não só na intensidade e reflexão das páginas, mas também no fato de que alguém tão jovem poderia ter esse tipo de visão e profundidade artística. Baseado numa grande história real… muito interessante, uma pena ter um desfecho tão trágico.(2)


Uma vida extraordinária que tão bem soube honrar o ator Ben Schnetzer com seu talento e entrega. Transformou-se nesse fotojornalista, artista e aventureiro Dan Eldon, que já tinha inspirado um livro, uma base para apoiar o ativismo criativo e posteriormente inspirar um grande filme. Fica o legado do jovem artista com seus poderes criativos registrados em páginas coloridas, uma permanente inspiração que seguramente continuará pulsante para gerações futuras. Mérito também da diretora canadense Bronwen Hughes que soube, a partir de um legado de escritas, fotos e relatos torna-lo, como merecia, ainda maior e universal, respeitando todos os seus sentidos estéticos, plásticos humanitários e políticos.

Antonio C. R. Tupinambá
28.06.2020

                                                                      Ben Schnetzer vivendo Dan Eldon.

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1) Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0805200824.htm>. Acesso em: 30 mar. 2021.

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