POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Guerra em tempo de Pandemia









Criança brinca com um fuzil de brinquedo entre apoiadores armados do grupo político-religioso Houthi, que segue em combate contra as forças da coalizão comandada por Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, na cidade portuária de Hudeida, no Iêmen — Foto: Mohammed Huwais/AFP



Todos os dias, quando saio de casa, digo adeus à minha família como se fosse a última vez que os vi. Porque muito bem poderia ser. Eu moro em Sanaa, capital do Iêmen - uma terra de desertos, montanhas e tribos que foi devastada por guerras, desnutrição e doenças, tanto que a ONU declarou que é o cenário do pior desastre humanitário do mundo. Isso ocorre porque os últimos anos viram um turbilhão vertiginoso de grupos regionais e locais brigando entre si. E nós - as pessoas que moramos aqui - somos apanhados no meio.1

A transição política esperada pelo país em 2011, período da Primavera Árabe, falhou e acirrou os problemas políticos de uma fraca representação executiva minada pela onda de conflitos em toda a nação. A esperança que vinha com a Primavera foi substituída por um inverno longo, soturno e cruel de grande instabilidade, o que forçou o presidente Ali Abdullah Saleh passar o poder para seu  sucessor, Abdrabbuh Manour Hadi. Hadi herdou o poder mas também uma série de problemas que iam desde ataques hijadistas, falta de apoio e segurança daqueles que seguiam leais ao ex-presidente, além de muita corrupção, desemprego e fome. Tinha-se então a imagem da devastação de um país, com seu povo perdido em meio ao caos estabelecido que gerava desesperança e todas as mazelas daí advindas. O quadro desolador pintado em preto e branco era de uma população sobrevivendo com um sistema imunológico já debilitado em um país que dependia quase totalmente de ajuda humanitária, tendo que enfrentar em 2020 uma outra praga, a pandemia de covid-19. Fome, dengue, cólera e malária anteciparam a chegada da pandemia do corona vírus ao Iêmen. A previsão de que com isso o Iêmen sofreria as consequências dessa pandemia mais do que se viria em qualquer outra parte do mundo foi comprovada. Some-se a esses infortúnios um sistema de saúde precário ou quase inexistente em consequência desses cinco anos de guerra, conflitos internos e ausência de uma reconhecida autoridade central. Aqueles que se dizem representantes dos diferentes extratos populacionais em regiões distintas do país terminam por usar toda a sua energia nos embates políticos e nos conflitos permanentes, impedindo qualquer tentativa de ajuda ao povo em suas bases e domicílios. A incursão de transportes com ajuda humanitária é inviabilizada no país fracionado, com tropas governamentais, rebeldes e forças externas obstruindo sua passagem. Bloqueios terrestres, aéreos e marítimos orquestrados por coalizões comandadas pela Arábia Saudita, intervenção iraniana, política intervencionista estadunidense, movimentos separatistas internos etc. promovem um caos que favorece a proliferação e a impossibilidade de meios de combate ao vírus, o único que deveria ser considerado inimigo invisível mas real nesse momento. Para isso seria necessário uma trégua que parece cada dia mais distante. Já em 2017 as forças intervencionistas jogavam mais combustível no fogo:  

É difícil imaginar Donald Trump piorando a situação no Iêmen, mas ele fez. Empobrecido, só para começar, o Iêmen está há dois anos em uma guerra civil que matou 10.000 pessoas e deslocou milhões. Uma campanha de bombardeio fornecida pelos EUA transformou escolas, hospitais, infraestrutura essencial e sítios antigos históricos em escombros. E um bloqueio apoiado pelos EUA está impedindo o comércio de alimentos e bens básicos, um país que passa fome e que antes dependia de 90%  de importações para seus alimentos.2

O movimento Houthi que sempre foi uma pedra no sapato do então presidente Saleh, avançou em suas incursões terrestres se aproveitando do pouco apoio e representatividade do presidente e conseguiu tomar o controle das terras de Saada, a Noroeste do país. Com o apoio de grupos populacionais, conquistou a capital do país, Sanaa. Enquanto isso o presidente Hadi não consegue negociar com o grupo separatista, pois segundo ele não estariam prontos para um processo de paz, agravando a crise e inviabilizando ações de apoio à população castigada.
A instabilidade no Iêmen pode não ficar restrita às diferenças entre os Houthis e o governo, mas também se expandir e gerar um efeito cascata com ataques oriundos de terroristas ligados à al-Qaeda ou ao IS, se aproveitando de toda essa instabilidade. 
Os interesses em domínio de terras iemenitas não são recentes e podem ser explicados também por sua geografia. Afinal de contas o Iêmen está estrategicamente localizado em região que liga o Mar Vermelho e o Golfo de Aden, por onde passa grande quantidade do petróleo que abastece boa parte do mundo. Por conta da sua localização nessa rota comercial de petróleo, sua importância estratégica! Ademais tem como vizinhos de fronteira e de região  grandes produtores de petróleo do Oriente Médio como Arábia Saudita, Oman, Kwait, Iraque e Irã. 
Nesse quadro desolador torna-se vital a presença dos Médicos Sem Fronteira - MSF - em Aden no único hospital para pacientes do coronavírus em toda a região sul do Iêmen. No entanto, outros países e a ONU devem se unir para que se possa responder a essa catástrofe, ainda a tempo. Uma das formas que qualquer pessoa pode ajudar é através do apoio ao MSF e cobrando da mídia maior divulgação da tragédia iemenita para conseguir o engajamento de diferentes grupos à causa: "O principal centro de tratamento de coronavírus no sul do Iêmen registrou pelo menos 68 mortes em pouco mais de duas semanas… A cifra - mais que o dobro do número anunciado pelas autoridades iemenitas até agora - sugere 'uma catástrofe mais ampla que se alastra na cidade’” 3
No meio de conflitos de interesses que acirram ainda mais as disputas internas e externas, o Coronavírus emerge como inimigo poderoso, se espalhando rapidamente, em uma velocidade que poderá ser imprevisível e trazendo consigo consequências letais para a população local em uma dimensão bem maior do que no resto do mundo. 
Jens Laerke, porta-voz do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), em uma entrevista em Genebra afirma que se não chegar ajuda financeira, os programas que mantêm as pessoas vivas, "essenciais para combater a COVID, terão que ser encerrados… e então o mundo terá que testemunhar no país o que acontece sem um sistema de saúde em funcionamento lutando contra o COVID”. 4
Somente uma maior atenção da ONU e de uma população atenta ao redor do planeta pode forçar uma mudança nesse quadro, levando os até agora insensíveis agentes dessas guerra a um cessar fogo bem como a um apoio concreto de governos, principalmente daqueles envolvidos no conflito, o que permitiria uma atuação humanitária e o ressurgimento de alguma esperança para o povo do Iêmen. Isso viabilizaria ações locais para o combate ao novo e impiedoso inimigo que, doutro modo, será devastador naquele ambiente. Uma das maiores catástrofes mundiais em época de covid-19 se avizinha e, até o momento, quase nada tem sido feito para evitá-la.




Um menino segura um livro enquanto caminha entre livros e papéis espalhados pelo chão após um ataque aéreo que atingiu a biblioteca de uma escola na cidade de Saada, no noroeste do Iêmen, em 13 de janeiro de 2018 (Naif Rahma/Reuters)

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1) NOMAN, J. War in the time of cholera, 6 de março de 2008. Disponível em:  https://correspondent.afp.com/war-time-cholera  Acesso em: 27 de junho de 2020.
2) EMMONS, A. Trump Intends to Follow up Botched Yemen Military Raid by Helping Saudis Target Civilian. The Intercept. Disponível em:: https://theintercept.com/2017/02/10/trump-intends-to-follow-up-botched-yemen-military-raid-by-helping-saudis-target-civilians/. Acesso em 27 de junho de 2020.
3)NEBEHAY, S. Yemen’s health system 'has in effect collapsed' as COVID spreads: U.N. Reuters. Disponível em: https://br.reuters.com/article/worldNews/idUSKBN22Y18V. Acesso em 27 de junho de 2020.
4)NEBEHAY, S. Yemen’s health system 'has in effect collapsed' as COVID spreads: U.N. Reuters. Disponível em: https://br.reuters.com/article/worldNews/idUSKBN22Y18V. Acesso em 27 de junho de 2020.

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