POLIS

POLIS
O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

sábado, 10 de julho de 2021

Em dez anos de independência há muito pouco a se comemorar no Sudão do Sul

                                             BZ Bildische Zeitung


    A mais nova nação do planeta se separou do Sudão predominantemente muçulmano em 9 de julho de 2011 e se constituiu como um país  soberano e majoritariamente cristão. A tão sonhada independência veio após a realização de um plebiscito com resultados esmagadores a seu favor: de um universo de 3.793.572 votantes, 3.734.280 votaram pela independência, 44.830 pela permanência no Sudão unido, além de 6.194 votos em branco e 8.268 nulos. Após proclamada sua independência, o Sudão do Sul vai cada vez mais mergulhando em uma interminável guerra civil que já lhe custou mais de 400.000 vidas. Guerra e fome ameaçam a grande maioria da população da jovem e antes, esperançosa nação. Logo depois de ratificada a independência se iniciam os confrontos entre o exército nacional e as milícias levando os sul-sudaneses à situação de penúria atual. Essa guerra de milícias está nas mãos de vários grupos étnicos e obriga as pessoas a fugir aos confrontos. Para tentar se salvar da violência e do caos, milhares atravessam as fronteiras para países vizinhos ou se deslocam internamente.

        Há também a incapacidade governamental de proteger a população, o que muitas vezes leva algumas milícias a ocupar esse espaço de defesa. Foi o que ocorreu na cidade de Yambio, ao sul do país, cujos moradores se organizaram em forma de milícia para se defender de um grupo religioso evangélico armado que atacou a cidade e sua população em nome de um fanatismo religioso importado de além fronteira. 


Em 2005, o Exército de Resistência do Senhor (ERS) –uma violentíssima milícia cristã vinda da República Centro-Africana– cruzou a fronteira e atacou os moradores.[…] "Foi terrível. Eles queimaram as casas. Estupraram as mulheres e obrigaram as crianças a matar seus pais. Muita gente teve a boca e as orelhas cortadas […] Eles levaram muita gente, crianças e mulheres, que nunca mais voltamos a ver desde aquele ano.” (1) 


        A cidade quase foi extinta pela guerra. De 8.000 habitantes que lá viviam restaram menos de 2.000. A milícia que conseguiu expulsar o ERS da região se integrou ao exército e protege a cidade para onde, aos poucos, parte da população sobrevivente retorna. Como resultado dessa guerra tribal e genocida ainda restaram muitas crianças soldados. “'Aqui temos uma geração inteira de crianças soldado'. É outra característica dessa cidade. 'Quando você cruza com uma criança na rua, é bem provável que tenha sido soldado até recentemente.' Cerca de 60% das crianças que vivem nesta localidade do Sudão do Sul participaram da luta armada".(2)

        Na guerra entre o exército sudanês e diferentes milícias quem mais perde são as crianças. Como uma praga que se espalha por diferentes regiões e tira a paz dos sul-sudaneses, cresce a ação dessas gangues/milícias que disseminam a prática de transformar crianças em idade escolar em soldados. Geralmente são recrutadas e até mesmo sequestradas de suas famílias para integrar as milícias locais e assim ajudar esses mercenários nos combates, principalmente contra as tropas do governo. 

        A cidade de Wau Shilluk fica na região norte do estado do Alto Nilo e tem parte significativa da população formada por pessoas que se deslocaram internamente fugindo de conflitos. Soldados armados cercaram a comunidade de Wau Shilluk e indo de casa em casa  removeram à força todos os meninos com mais de 12 anos para integrar seus exércitos milicianos.(3) Em Yambio, que foi o centro de confrontos armados e deslocamentos generalizados em 2016 não é muito diferente. Muitos menores continuam sendo forçados a lutar com o grupo armado Movimento de Libertação Nacional. No entanto não se trata de algo particular dessas cidades ou região, este é um cenário muito comum pelo país. Meninos, meninas e até mesmo famílias inteiras (quando não são mortas para deixarem as crianças sozinhas) são recrutados ou sequestrados. "Em muitas ocasiões as crianças aderem voluntariamente à guerrilha. 'Embora essa palavra, voluntariamente, deva ser colocada entre aspas', diz o funcionário do Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância]. 'As crianças que aderem o fazem como uma saída, em busca de um futuro. Elas ficaram sozinhas ou não têm meios para comer e são obrigadas a ser soldados para uma milícia.'”(4)

        A luta para libertar essas crianças das milícias e reintegra-las na sociedade é lenta e complicada. Recentemente mais de uma centena delas foram libertadas com apoio do Unicef. Desde o início do conflito foi registrado o desligamento de mais de três mil menores de grupos armados. A libertação é apenas o primeiro passo e apesar de fundamental para essas crianças soldado, elas ainda terão que passar por muitos desafios até conseguir superar o passado sombrio e se recuperar dos traumas que viveram na guerra. Algumas, ainda com apenas 10 anos, enfrentarão muitos desafios ao tentar voltar a uma vida comum em cidades destruídas e sem ter mais suas famílias. Muitos estigmas que as pessoas constroem e fazem questão de manter sobre quem elas são por conta do seu passado junto às milícias, além de muitas vezes continuarem dependentes dos seus antigos comandantes, mesmo depois de se desligarem das milícias, são algumas das batalhas a serem vencidas para esse retorno à vida que toda criança merece ter. 


Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, 10 de julho de 2021.

___________________________

(1) Carretero, N. “Eu sou uma criança soldado”. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/10/internacional/1533901618_963321.html>. Acesso em 10 jul. 2020.

(2) idem.

(3) Hunderte Kinder im Südsudan gekidnappt. Disponível em: <https://www.dw.com/de/hunderte-kinder-im-s%C3%BCdsudan-gekidnappt/a-18287833>. Acesso em 10 jul. 2021.

(4) Carretero, N. “Eu sou uma criança soldado”. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/10/internacional/1533901618_963321.html>. Acesso em 10 jul. 2020.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Violência e desespero no Reino de eSwatini.

              
  Mapa do Reino de eSwatini



Na África, a última monarquia absolutista se chama Reino de eSwatini. No pequeno Estado que se localiza na fronteira entre Moçambique e África do Sul e que até há poucos anos tinha o nome de Suazilândia raramente se viam protestos nas dimensões dos que ocorrem atualmente. Em eSwatini não são permitidos partidos políticos, "a dissidência política e o ativismo cívico e trabalhista estão sujeitos a punições severas sob a lei de sedição e outras. Mais problemas relacionados aos direitos humanos incluem impunidade para as forças de segurança e discriminação contra mulheres e pessoas LGBT +".(1)

Todo esse cerco não evitou a organização de protestos nas últimas semanas que têm se tornado cada vez mais violentos, principalmente nos dois principais centros urbanos do país, Mbabane (a capital) e Manzini (a maior cidade), com cerca de 76 mil e 110 mil habitantes, respectivamente. Em consequência dos protestos, as duas cidades se encontram sob controle militar e com acesso restrito à internet.

Nessa última monarquia absoluta da África também reina a intolerância. As manifestações que iniciaram em maio após a morte de um estudante de direito de 25 anos por membros da força de segurança nacional sinalizam um futuro sombrio para os cerca de 1,3 milhão de habitantes de um reinado coroado de corrupção e desmandos patrocinados pela corte. A enorme família real de Mswati (15 esposas, 23 filhos e cerca de 200 irmãos) enriquece às custas da corrupção e dos “métodos inescrupulosos da monarquia”. No poder desde 1986, Mswati não consegue evitar as críticas que vêm de todos os lados por conta do seu punho de ferro e por seu estilo de vida luxuoso num país em que dois terços da população vivem abaixo do limiar de pobreza. Um pedido reforçado pela ONU para promover e proteger os direitos humanos, "incluindo a garantia do direito às liberdades de expressão, reunião e associação pacíficas e participação na condução dos assuntos públicos”(2) soa para o déspota como algo inaceitável. Os confrontos que se alastram pelo reino já causaram várias mortes e dezenas de feridos, segundo relatos de ativistas pró-democracia. "Oito manifestantes foram mortos a tiro em Manzini, a cerca de 40 quilómetros da capital, Mbabane, disse o porta-voz da Rede de Solidariedade da Suazilânia, Lukcy Lukhele, citado pela agência France-Presse, acrescentando que 28 manifestantes foram atingidos por tiros".(3) 

O monarca não quer ver seu poder absoluto sendo questionado. Para mante-lo, se utiliza de força desproporcional, com a liberação de soldados e policiais armados atacando civis desarmados; lança mão de toda sorte de assédio e intimidação por meio das forças de segurança, garantindo a repressão a protestos que reivindicam mudanças no reino e no Estado. A meta da realeza é manter privilégios a qualquer custo: enquanto seus súditos amargam salários de fome "'o monarca aproveita a receita do Estado como se fosse seus benefícios pessoais' como explica Mario Masuku, presidente do Movimento Democrático do Povo Unido (Pudemo), que, como todos os partidos políticos do país, está proibido desde 1973”.(4)  Criar as condições necessárias para dificultar a vida dos manifestantes e da população e manter o status quo estão como principais pautas da agenda do rei e seus asseclas.

Uma das últimas monarquias absolutistas no mundo e a última na África, eSwatini enfrenta essa acentuada disparidade de riqueza entre autoridades do governo (incluindo o rei Mswati III) e o povo. 


Cinquenta anos atrás, em 6 de setembro de 1968, o ex-protetorado britânico da Suazilândia conquistou sua independência. As comemorações foram antecipadas para 19 de abril, aniversário de 50 anos de Mwsati. Estima-se que 8,8 milhões de dólares foram gastos no festival (o produto interno bruto de 2016 foi de 3,3 bilhões de dólares). Taiwan fez uma doação de US $ 1,3 milhão (a Suazilândia é o último país africano a ter relações diplomáticas com a nação insular). O grande restante vem dos fundos públicos e dos fundos de pensão dos súditos.(5)


Os gastos astronômicos com o Jubileu de Ouro só expôs as diferenças que existem entre a exploração do nacionalismo e da cultura local, motivo de orgulho da população e sua grande frustração com um governo que oprime e rouba as chances de futuro de uma população majoritariamente jovem. 


"Há um imenso orgulho da cultura suazi e as pessoas pareciam ansiosas em compartilhá-lo [no Jubileu de Ouro]" […] "Mas elas também estavam ávidas para compartilhar sua fúria com um governo que prioriza gastos e enriquecimento pessoal em detrimento da prosperidade do país". O país proíbe a criação de partidos políticos de oposição, e os cidadãos podem ser punidos por criticar o governo ou o rei.(6)


Enquanto a família real ostenta e uma porção de empresários se beneficia de mão-de-obra barata e facilidades econômicas para os negócios no país, o escasso acesso a empregos formais e a falta de oportunidades econômicas empurram a população para uma pobreza da qual dificilmente sairá. Trabalho forçado, inclusive de crianças é parte do dia a dia do reino, sem descartar a sua vasta presença em atividades diversas nas comunidades ou nos campos que pertencem à realeza. 


“Ele tira o dinheiro do povo. Ao mesmo tempo, as nossas ruas estão em ruínas, as crianças não vão à escola, os aposentados recebem uns poucos 35 euros cada três meses - quem pode viver com isso? Precisamos de hospitais. Nossas clínicas não possuem nenhum medicamento. Se você for lá, você não pega nenhum remédio. Mas o rei quer construir um novo prédio do parlamento. Não precisamos de edifícios grandiosos - precisamos de infraestrutura para as pessoas,” afirma Meluleki Simelane, um comerciante local.(7)


Espera-se que a descontrolada violência de Estado, que arranca  das ruas e de suas casas principalmente pessoas jovens, levando-as muitas vezes à morte ou a prisões arbitrárias, receba o repúdio internacional, e seja combatida também pelo governo sul-africano, maior parceiro comercial de eSwatini, que também desempenha grande poder político e econômico no país com o qual divide amplas fronteiras. É urgente o apoio a projetos como a "Rede de Solidariedade na Suazilândia” comandada por Lucky Lukhele, que faz campanha pela democracia e corajosamente age no país avesso a organizações políticas, inimigo dos direitos humanos e que se encontra há tempos sitiado pela arrogância de uma família real predadora. Somente com essas várias frentes de ação nacional e internacional pode-se evitar que uma solução para a crise de governabilidade não seja artificial e brutalmente  alcançada com métodos autocráticos; pela mão de ferro da realeza e do governo corruptos.


                                    Dançando em homenagem ao rei. 

                                    Tanzen für den König. (Foto: Siphiwe Sibeko/ap)


Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, 7 de julho de 2021.

___________________________

(1) Freedom in the world 2020. Eswatini. Disponível em: <https://freedomhouse.org/country/eswatini/freedom-world/2020>. Acesso em: 7 jul. 2021.

(2) Violência em  Eswatini é “profundamente preocupante”, diz escritório da ONU. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2021/07/1755772>. Acesso em 7 jul. 2021.

(3) Protestos no Reino de eSwatini deixam vários mortos e feridos, dizem ativistas. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/protestos-no-reino-de-eswatini-deixam-v%C3%A1rios-mortos-e-feridos-dizem-ativistas/a-58112936>. Acesso em: 7 jul. 2021.

(4) Vicky, A. Absolutismus in Swasiland Mswati III. feiert, seine Untertanen leiden. Disponível em: <https://monde-diplomatique.de/artikel/!5521720>. Acesso em: 7 jul. 2021.

(5) idem.

(6) Galloway, L. O país que ganhou um novo (porém antigo) nome. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/vert-tra-47273303>. Acesso em: 7 jul. 2021.

(7) Genth, J. Wut auf Eswatinis König wächst. Disponível em: <https://www.tagesschau.de/ausland/proteste-eswatini-101.html>. Acesso em: 7 jul. 2021.

terça-feira, 6 de julho de 2021

Territórios não-autônomos e países que não existem.




Na verdade, o mapa político do mundo é uma ficção. Ele nunca foi organizado, e continua não sendo. 

Fiona McConnel


Em 1999, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução criando a Semana de Solidariedade com os Povos dos Territórios Não-Autônomos. Em maio de 2021 a Semana de Solidariedade buscou, dentre outras coisas, destacar “‘a necessidade de erradicação do colonialismo, bem como discriminação racial e violações básicas de direitos humanos’".(1)

Lembrar desse povo que ainda não conquistou seu autogoverno e cujos territórios continuam fora dos mapas que conhecemos e são estudados nas escolas é essencial para viabilizar sua autodeterminação ou protege-los de eventuais desmandos colonialistas. 

A ONU define como não-antônimo aquele território “cujo povo ainda não atingiu uma medida completa de autogoverno”. Geralmente esses Territórios Não-Autônomos (Non-Self-Governing Territories - NSGT) são administrados por outros países com assento na ONU que, portanto, deveriam reconhecer os interesses dos seus habitantes e ter por obrigação promover o bem-estar de toda a população que faz parte desses territórios. "A Declaração insta os poderes responsáveis a tomar medidas para salvaguardar e garantir os direitos inalienáveis dos povos desses territórios a seus recursos naturais e manter o controle sobre o desenvolvimento futuro desses recursos".(2)





Para que se possa considerar um país, uma região precisa ter um território definido, ser habitado com algum grau de permanência, ter instituições políticas e governo próprio, ter a independência reconhecida por outros Estados soberanos e interagir diplomaticamente com outros países”.(3)


Até 2002, 54 territórios alcançaram a independência ou governo próprio. Em 2021 ainda se conta um total de 17 NSGT. Há, contudo, outros territórios/países que não estão submetidos a um governo externo e tampouco possuem assento em órgãos internacionais como a ONU. Esses países que existem de fato mas não são reconhecidos por outros, quase nunca ocupam a agenda de discussões na cena internacional. Os denominados "países que não existem”, têm menores chances de reconhecimento internacional de sua existência e autonomia, se encontram em vários continentes dentro das próprias fronteiras de países dos quais se originaram e buscam sua independência.  "Em comum, eles têm o fato de terem sido formados após conflitos e crises políticas — e, apesar disso, são autônomos e relativamente estáveis”.(4) Países com governos que permitem seu funcionamento normal, inclusive com suas próprias instituições, forte identidade nacional e com aspiração de terem sua independência reconhecida. "[…] A ausência de reconhecimento oficial desses lugares é comumente compensada por uma rica produção de símbolos de Estado”.(5)

Diferentemente dos territórios não-autônomos esses países não são oficialmente dependentes de outros governos nacionais mas não preenchem todos os critérios que são exigidos para que uma determinada região seja considerada um país de fato e de direito. Ainda que tenham pouco ou nenhum apoio externo, eles declararam sua independência e conseguem funcionar como outros países que conhecemos e se encontram na lista da ONU; tudo isso apesar de continuarem sem reconhecimento da sua soberania. Às vezes esse reconhecimento se dá de forma muito limitada, por exemplo, por países que têm interesse político e estratégico na região e se tornam espécies de protetores ou pelos pares que como eles não têm reconhecimento na comunidade internacional. Levando-se em conta o princípio de autodeterminação "que confere aos povos o direito de autogoverno e de decidirem livremente a sua situação política, bem como aos Estados o direito de defender a sua existência e condição de independente”(6) os países que não existem e os Territórios Não-Autônomos têm o direito de lutar por sua emancipação política e autonomia, se essa for a vontade de seu povo. 

Como trouxemos no texto de Fiona McConnel em epígrafe, "o mapa político do mundo é uma ficção,” e seu desenho é feito não apenas respeitando princípios de convivência e autodeterminação estabelecidos e reconhecidos por órgãos internacionais. Fosse esse o fundamento das decisões sobre a emancipação de povos e países, já seriam inerentes a essas populações de Territórios Não-Autônomos e países que não existem oficialmente as condições de emancipação e, consequentemente, a aceitação da vontade de seu povo por autonomia.  O princípio nomeado que foi utilizado pela ONU no processo de descolonização e reconhecido como norma de Direito Internacional poderia ser estendido a muitas causas de lutas por independência e autonomia nos dias atuais. "Até a Declaração de 1970, prevalecia o entendimento de que a autodeterminação era exclusiva dos povos colonizados e aos que sofreram querelas na II Guerra Mundial, aceitando parte dos juristas, com a referida Declaração, a sua aplicabilidade a todos os povos".(7) Sabe-se que, apesar do significado que o principio de autodeterminação possa ter para justificar os pleitos de diferentes povos por autonomia, o que mais tem contado é a vontade política, o poder de nações protagonistas no cenário internacional e seus interesses para se decidir sobre o formato que devem tomar as fronteiras internacionais.


Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, 6 de julho de 2021.

_____________________________

(1) ONU marca Semana de Solidariedade com Territórios Não-Autônomos. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2021/05/1751612>. Acesso em: jul. 2021.

(2) idem.

(3) Costa, C. Quantos países existem – e por que é tão difícil responder a essa pergunta?. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48207606>. Acesso em jul. 2021.

(4) A estranha normalidade da vida em um país que não existe oficialmente. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-46880167>. Acesso em: jul. 2021

(5) idem.

(6) Hepp, C. O princípio da autodeterminação dos povos e sua aplicação aos palestinos. Disponível em:  <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/40400>. Acesso em: jul. 2021.

(7) idem.



sábado, 3 de julho de 2021

O país onde os indígenas eram obrigados a enviar os filhos para o inferno.

 






Em 1898 já existiam 54 escolas no país dentro do modelo de “Escolas Residenciais”, o que no Brasil se assemelharia aos internatos. E era para esse tipo de escola que eram mandadas as crianças indígenas, num atentado sem limites contra suas crenças e seus costumes. Em 1946 foi registrado o número máximo de escolas: 74. E, segundo a lei, os pais que se recusassem a mandar os filhos eram punidos criminalmente. Não havia escapatória. Os indígenas eram obrigados a enviar os filhos para o inferno. (1)


Os corpos encontrados num terreno da Escola Residencial de Kamloops para Indígenas na província da Columbia Britânica trazem à tona a história colonial do país que se apresenta, atualmente, como modelo de democracia estável e exemplo para o mundo. O que custou às populações originárias do país, a construção do Canadá que se conhece hoje? O legado da colonização pode ser resumido no quadro divulgado pela imprensa e que choca o mundo: ossos de 215 crianças indígenas mortas encontrados no terreno da escola de Kamloops.  A escola foi aberta em 1890 pelo governo canadense e era dirigida pela Igreja Católica para “reeducar" crianças indígenas. Tratava-se, de fato, de um sistema oficial de sequestro de crianças para submete-las a uma educação forçada, não somente sequestrando seus corpos, mas roubando-lhes suas almas, histórias e culturas. Um processo que por um século e com requintes da mais cruel barbarie tirava as crianças de suas famílias, torturava, levando muitas delas a óbito e, aquelas que sobrevivessem, eram forçadas a abandonar completamente sua cultura original a mando de religiosos e colonizadores brancos europeus. Não se trata de algo perdido na história remota canadense. Muitas dessas escolas continuaram funcionando até 1990. A escola de Kamloops só foi fechada em 1970. Por todo o Canadá havia muitas outras, além da escola de Kamloops que desencadeou revoltas atuais na população local, havia outras, que eram também dirigidas por anglicanos, metodistas e presbiterianos.

A “educação" pela violência extrema era o método dos religiosos encarregados de cumprir, de bom grado, a missão de Estado de dizimar a cultura indígena em nome do poder branco central. Já foram documentadas cerca de 3.200 mortes de crianças nessas escolas, uma prática de genocídio pelas mãos de diferentes igrejas e do Estado.  Não bastasse isso, muitas dessas crianças eram submetidas a violências de toda a ordem, inclusive sexuais. 


Apesar da grande violação dos direitos humanos foi somente em 1996 que a última escola residencial foi fechada. Interessante destacar que esta última escola, "The Gordon Residencial School", em Saskatchewan ficou conhecida por ser uma das mais famosas em casos de abusos físicos e sexuais do Canadá. Willian Starr diretor desta escola entre 1968 e 1984 praticou crimes sexuais além de usar seu cargo para intimidação e punição para alunos que discordassem dele. Starr foi preso em 1992 confessando os crimes e cumpriu pena de apenas 4 anos e meio em prisão. (2)



A Comissão da Verdade e da Reconciliação, que trabalha no país para desvendar esses crimes, afirma que desde a invasão do Canadá "as igrejas realizavam uma sistemática ação de destruição da cultura, através da evangelização, mas a partir do ano de 1840, o estado oficialmente assume uma parceria ao criar as primeiras escolas para indígenas na cidade de Ontário".(3) Essa comissão, que trabalha para trazer à luz todos os crimes cometidos por igrejas e seus religiosos e que para isso contavam com forte apoio do Estado canadense, já credita as cerca de 3.200 mortes de crianças dentro dos seus muros, como decorrentes de maus tratos, doenças, desnutrição, abandono e suicídio: “O governo canadense manteve essa política de genocídio cultural porque queria se desvincular de suas obrigações legais e financeiras com os povos indígenas e assim poder controlar suas terras e seus recursos”, afirma a comissão. Talvez esse número seja bem maior, a Comissão presume que mais de 4.000 crianças indígenas morreram nesses internatos.

O que fazer para se reconciliar com esse tenebroso passado que ainda nos deixa perplexos nos dias atuais?  Será que...

 

[...]nunca aprendemos a fazer
o luto coletivo do que matou
e torturou muitos de nós, nunca
aprendemos a fazer a luta coletiva
contra nossa história de horror,
que permanece torturando e matando.(4)


    Ou será que o começo dessa pretensa reconciliação se deu com o pedido de perdão do Primeiro Ministro canadense?  Ele não conseguiria, mesmo que fosse essa sua intenção, ficar indiferente à onda de protestos em muitas cidades, gerada pela descoberta recente dos restos mortais de crianças na Columbia Britânica. O genocídio tem sido denunciado nas manifestações realizadas pelos movimentos sociais e por indígenas, que também, a exemplo do que ocorre em outras manifestações mundo a fora, derrubam estátuas de personagens da história ligados a atos de barbárie. No Canadá a estátua de Egerton Ryerson, localizada na Universidade Ryerson, um dos arquitetos responsáveis pela criação das escolas residenciais, foi ao chão pelas mãos dos ativistas. Mais outras duas estátuas, das rainhas Vitória e Elizabeth II, do Reino Unido, foram derrubadas na quinta-feira, dia 1º de julho.

Essas questões históricas e atuais de abusos aos povos originários das Américas atravessam as fronteiras dos países, fronteiras essas resultantes de desenhos artificiais do período colonial.  Desenhos que serviam ao colonizador europeu mas não às milhares de vidas que tinham na própria natureza suas fronteiras. Na América Latina a onda de luta dos e pelos povos indígenas que cresceu muito nos anos 1990 e visa à recuperação da memória, defesa da cultura e do direito à vida dos povos originários na região dentro de fronteiras autênticas e não políticas, está sendo frontalmente combatida. Essa ameaça vem principalmente do Brasil, cujo governo traça, abertamente, políticas genocidas e anti-indigenistas. A destruição de povos, nações e civilizações é um projeto do atual governo que o faz se aliando a invasores de terras protegidas para fins de exploração comercial. A empreitada para tomar territórios indígenas é agravada pela presença e ação de pastores neopentecostais em missão de dizimação das tradições e cultura desses povos. Como afirmam Silva e Rocha (2020) as comunidades indígenas, apesar de terem sido submetidas à catequização por jesuítas, conseguiram resistir e nos mais de 500 anos de práticas coloniais ainda é possível enxergar a multiculturalidade dessas relações, mas uma neocolonização dos povos indígenas por religiões neopentecostais ameaça esse legado. "Atualmente, as comunidades indígenas sofrem novas intervenções culturais, promovidas por religiões neopentecostais, que ocupam os territórios, apropriam-se dos espaços comunitários e impõem práticas religiosas incompatíveis com a convivência étnica e, por fim, provocam etnocídio[...]"(5)

O descobrimento do Novo Mundo trouxe o sofrimento para os povos que aqui estavam antes da chegada dos invasores. O genocídio persiste na era moderna, por exemplo, com a contínua perseguição aos povos indígenas da região amazônica. Mais de 80 tribos indígenas foram destruídas entre 1900 e 1957, e a população indígena em geral diminuiu mais de oitenta por cento. É hora de uma união entre os povos indígenas e não indígenas para frear o genocídio iniciado com as invasões europeias e que nunca realmente foi estancado. Em Brasília parlamentares tentam dar um golpe na Constituição com a PEC 215, uma estratégia para acabar com a preservação do meio ambiente e a proteção aos povos indígenas, aos quilombolas e aos ribeirinhos agroextrativistas que são protegidos pela carta magna. A PEC 215 aprovada significaria a paralisação do processo de demarcação de terras indígenas e quilombolas, assim como a paralisação da criação de unidades de conservação, ameaçando também o direito fundamental de todos os brasileiros a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e, por extensão, ameaça o direito à vida. A transferência  do Executivo para o Congresso do poder de demarcar terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação, ameaça o direito indígena a seu território ancestral, garantido pela Constituição. "A terra é parte essencial da vida dos índios e sem ela, estariam condenados à morte física (genocídio) e cultural (etnocídio)".(6) Para enfrentar essas ameaças de genocídio com a mudança constitucional os povos indígenas criaram o Parlamento Indígena, o ParlaÍndio que quer representar todas as nações indígenas em território nacional. Mais de um milhão de pessoas, dividas em 305 povos falantes de mais 180 línguas estariam representados. Esses são, portanto, os brasileiros que o recém-criado Parlamento Indígena, o ParlaÍndio, tem o potencial de representar: 


Sem vínculo formal com o estado brasileiro, a iniciativa se apresenta como uma nova via de articulação dos povos originários, mirando a superação dos crescentes ataques estimulados pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido), como o Marco Temporal, tese jurídica, que restringe a demarcação de terras indígenas, e o Projeto de Lei (PL) 490, que abre áreas protegidas à mineração, ao agronegócio e à construção de hidrelétricas.  Como primeira deliberação, o Parlaíndio decidiu pedir na Justiça a exoneração do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier, visto por lideranças como um executor das políticas anti-indígenas de Bolsonaro. Com apoio da embaixada da França no Brasil e da Fundação Darcy Ribeiro, a organização é resultado da união de forças de lideranças de alcance mundial. Ainda em 2016, a ideia partiu do Cacique Raoni Metuktire, atual presidente de honra do Parlamento Indígena, mas saiu do papel só no final de maio deste ano. Entre os fundadores, também está Davi Kopenawa Yanomami, xamã e porta-voz do povo Yanomami. (7)

 


O cacique Almir Suruí, do povo Paiter de Rondônia é o coordenador executivo do ParlaÍndio. A experiência de resistência do povo Paiter vem desde seu contato oficial e aproximação com os não índios. As mudanças sociais daí advindas não os fizeram menos guerreiros, o que assegurou sua luta pelo reconhecimento e integridade de seu território. Apesar da grande pressão que sofrem de invasores de terra, o povo Paiter continua mantendo muitas das suas tradições. Para continuar nessa luta pela sobrevivência juntamente com outras etnias, o cacique Almir Suruí aposta em um crescimento rápido do parlamento indígena, de forma a aumentar a representatividade nacional: "'O Parlaíndio tem a missão de unificar essas lutas, defender políticas públicas para todos os indígenas, a demarcação de territórios e a proteção territorial', enuncia”.(8)

Já passa da hora para que sejam convocados os povos indígenas do mundo todo: POVOS INDÍGENAS, UNI-VOS! Somente através dessa resistência organizada nacional e internacionalmente, com a participação de todos os povos solidários, indígenas e não indígenas, se poderá construir um caminho para alcançar a tão almejada justiça, mesmo que tardiamente, para os povos originários oprimidos e evitar que novos genocídios aconteçam, a exemplo do que ocorreu no Canadá e, ainda que noutro formato, do que já está em curso no Brasil.


Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, 3 de julho de 2021.

_________________________

1) Tavares, E. A tragédia indígena no Canadá. Disponível em: <https://iela.ufsc.br/povos-originarios/noticia/tragedia-indigena-no-canada>. Acesso em: 3 jul. 2021.

2) Freitas, R. Canadá: o horror se esconde no porão da escola. Disponível em: <https://esquerdaonline.com.br/2021/06/11/o-horror-se-esconde-no-porao-da-escola/>. Acesso em: 3 jul. 2021.

3) Tavares, E. A tragédia indígena no Canadá. Disponível em: <https://iela.ufsc.br/povos-originarios/noticia/tragedia-indigena-no-canada>. Acesso em: 3 jul. 2021.

4) Pucheu, A. Poema para a catástrofe do nosso tempo. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/>. Acesso em: 3 jul. 2021.

5) Silva, I. G. S.; Rocha M. M. da. Transmodernidade e socialização do poder: resistência cultural dos povos originários em face do neopentecostalismo no Brasil. Raído, Dourados, MS, v. 14, n. 34, jan./abr. 2020, p. 184-197, p. 185.

6) Os índios e o golpe na constituição. Disponível em: <https://www.frenteambientalista.com/os-indios-e-o-golpe-na-constituicao/>. Acesso em: 3 jul. 2021.

7) Pajolla, M. Lideranças criam Parlamento Indígena do Brasil e pedem saída do presidente da Funai. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/07/02/liderancas-criam-parlamento-indigena-do-brasil-e-pedem-saida-do-presidente-da-funai>. Acesso em: 3 jul. 2021.

8) idem.