POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

domingo, 28 de março de 2021

BRASIL: TRAGÉDIA ANUNCIADA

               Em 26 de março de 2021





Naqueles anos 40, o mundo estava sendo sacudido, os velhos impérios se desmoronando, novos polos de poder emergindo, novos impérios se esboçando, mas para nós prevalecia a estrutura de costume: o centro do mundo era a Europa (Paris o seu umbigo), o Brasil era parte da periferia, devendo ter os olhos submissos sempre voltados para a matriz. Matriz ao mesmo tempo única e polivalente, qualquer coisa assim beirando uma entidade atemporal, com nada antes, nem depois.

Raduan Nassar





A  atual política brasileira de enfraquecimento das relações internacionais relegando o papel do país ao de mero coadjuvante estadunidense parece ir se definindo na cauda dos acontecimentos políticos de 2016, quando foi deposta por um golpe jurídico-político-midiático a presidente democraticamente eleita Dilma Roussef.  Com a presença de Aloysio Nunes no Ministério das Relações Exteriores nada mais se esperava dessa política, senão o fim do antes almejado e crescente papel de protagonismo internacional que vinha se consolidando. Em um movimento contrário, o governo ilegítimo do golpista presidente tampão Michel Temer enfraquecia o bloco econômico do Mercosul juntamente com os sócios Paraguai e Argentina dos igualmente corruptos Horacio Cartes, que segundo o Ministério Público Federal do Rio, pagou US$ 500 mil para ajudar na fuga de Darío Messer, o "doleiro dos doleiros" e Mauricio Macri mencionado no Panama Papers, arquivos vazados do escritório de advocacia Mossack Fonseca, listado como diretor de uma empresa offshore nas Bahamas. 

A indicação de Ernesto Araújo pelo anti-presidente Bolsonaro para ocupar o mais alto posto na diplomacia brasileira desonrou o Itamarati e transformou o Brasil em piada internacional, indigno de respeito pelas nações e povos do mundo. A opinião sobre a incompetência de Araújo e contra sua gestão vem se tornando unânime. O descontentamento crescente de setores do Itamaraty com a gestão do ministro veio a público por meio de uma carta de um grupo de 300 diplomatas que pede pela saída do ministro. Na carta afirmam que a política externa brasileira historicamente se caracterizou por pragmatismo e profissionalismo e "o corpo diplomático sempre investiu no diálogo respeitoso e construtivo, com interlocutores internos e internacionais, com a imprensa e o Parlamento”. O ministro é acusado de envolvimento em atritos com a China além de afirmar que se a política externa “faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”. A gestão do chanceler é apresentada como um dos motivos pelas dificuldades para obter vacinas contra o novo coronavírus. 


"Esperamos, com essas reflexões, oferecer mais elementos para que as necessárias e urgentes mudanças na condução da política externa ganhem maior apoio na sociedade, contribuindo, assim, para os esforços de superação das crises sanitária, econômica, social e política que enfrentadas pelo Brasil […] Nos últimos 2 anos, avolumaram-se exemplos de condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo os códigos mais elementares da prática diplomática,” dizem os diplomatas na carta mencionada.


Em curso, a queda livre do Brasil para o inferno diplomático, isolamento mundial e destruição do seu patrimônio diplomático intangível, já representado por nomes como  José Bonifácio de Andrada e Silva, Rui Barbosa, Oswaldo Aranha, João Cabral de Melo Neto e tantos outros. O desmonte em curso representa um elevado custo civilizatório e provoca retrocessos em todas as frentes políticas que importariam para manter o crescimento e continuar com os esforços de emancipação na America Latina. Como dito, isto começou a ser orquestrado em conluio com os interesses espúrios na sede do poder em Washington, sendo seus executores locais o trio de presidentes, todos de reputação maculada pela corrupção e desprezo por suas respectivas nações: Temer, Macri e Cartes. O fortalecimento do Mercosul e, paralelamente, no caso brasileiro, a consolidação  de um outro bloco econômico, o BRICS, significariam melhores alternativas de mercado e  de relações políticas e econômicas para os países membros. Isso não interessaria aos Estados Unidos e, portanto, na política de alinhamento cego a Washington, o governo do Brasil proclama seu status de capacho da grande potência. Isso é muito conveniente para o triunvirato de colonizados formado pelos membros do Mercosul: Brasil, Argentina e Paraguai, governos aliados e entreguistas, além de incoerentes com as regras do jogo tradicionalmente estabelecidas pelo grupo econômico. Agem em uma espécie de vale tudo, desde que possam alcançar seus objetivos de limitar a participação dos demais membros do grupo em decisões vitais para o bloco. As ilegalidades patrocinadas pelo trio fragiliza o posicionamento geopolítico de cada um dos membros do Mercosul no contexto mundial. Ações que dificultem estratégias de dominação e controle externo pelas grandes potências na região desagradam, principalmente, aos Estados Unidos e inviabilizam a expansão da integração regional, a exemplo da Unasul (União das Nações Sul-Americanas), da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) e outras articulações que fortaleçam e capilarizem o intercâmbio e os investimentos nas Américas. Há um boicote às alternativas em curso nos governos anteriores dos três países do Cone Sul. Brasil, Argentina e Paraguai se unem para que a região volte a ser simples peão no viciado jogo de xadrez geopolítico mundial controlado e manipulado  pelos Estados Unidos da América. Trata-se do fim de tratados econômicos e políticos que permitam o crescimento e melhoria dos empregos, da renda e de direitos sociais que, de outra maneira seriam monopolizados pelo vizinho poderoso do Norte. 

O que desde então vem acontecendo ao bloco econômico que traçava um caminho de consolidação e forte presença internacional, o BRICS, é  um dos sintomas mais reveladores do que ora se colhe: o fruto amargo como resultado da praga do golpe. O que era o BRICS  na era Lula/Dilma e o que se tornou nos anos pós-golpe, Temer/Bolsonaro? A vocação dos poderes hegemônicos de países como os Estados Unidos é a de inibir qualquer processo emancipatório em sua periferia. Nesse bojo se coloca a resistência à configuração e fortalecimento do BRICS, o grupo econômico formado por cinco economias emergentes: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. No complexo mosaico da globalização, isso significa maior poder de negociação do grupo frente aos ditames das economias fortes e seus clusters econômicos consolidados. Juntos em 2014, os países do BRICS correspondiam a 19% do PIB do mundo e cerca de 42% da população mundial, foram responsáveis por 55% do crescimento global nos últimos três anos (levando-se em conta a data da informação pelo The Economist em 2014). A solidez do grupo e seu caráter de potência emergente vem de encontro ao lugar reservado a países como o Brasil, conforme relata Raduan Nasser, quando nos traz o cenário de 1940. O Brasil sempre foi o membro que mais timidez e fragilidade apresentou mas, juntamente com os outros membros do bloco, vinha conseguindo aumentar seu protagonismo no cenário internacional com os esforços dos presidentes que incentivaram a sua criação e se importavam com seu fortalecimento. O que ocorreu no governo Temer com o BRICS  foi um aprofundamento da subalternidade do Brasil, por conta dos novos ares soprados pela fraca presença internacional de um governo sem reconhecimento interno ou externo e um Ministério do Exterior desacreditado com ações diplomáticas pífias. A rota que permitiria o país a se posicionar na vanguarda do clube BRICS foi reorientada e parece levar sua participação a um lugar de desimportância dentro de um projeto enfraquecido. Há quinze anos, quando surgiu o grupo, uma espécie de elite entre países emergentes formado pelo Brasil, Rússia, Índia e China passou a ser chamado inicialmente de “BRIC”. A seguir, com a adesão da África do Sul, o bloco cresceu e viu ser acrescentado um “s” a sua sigla. A primeira visita oficial da presidente Dilma Rousseff à Índia, onde participou da IV Cúpula do BRICS, teve importância simbólica e política. Na pauta daquela visita: assuntos vitais para os países integrantes do bloco  que remontavam ao ano de 2012, como a crise mundial, seu impacto no comércio e a criação de um banco de desenvolvimento constituído com capital dos cinco países, que financiaria projetos nos próprios integrantes do BRICS e em outras nações em desenvolvimento. O BRICS voltou a se reunir em um novo cenário sócio-econômico, desta feita, em Fortaleza (CE), momento em que o mundo se voltava para a iminente reunião estratégia entre Estados Unidos da América e China, com impacto internacional relevante para várias questões de então, como a situação na Ucrânia e no Oriente Médio, o que, internacionalmente, relativizou a importância atribuída a esse encontro, mas não diminuiu o seu significado para o futuro do bloco. Algumas demandas circunstanciais e específicas dos governantes reunidos em Fortaleza deram um colorido especial ao encontro: Putin isolado por seus problemas domésticos; Zuma à frente de uma África do Sul em descrédito e com alta corrupção; Nerendra Modi, que enfrentava uma Índia com inflação e insegurança civil, e Dilma Rousseff,  candidata à reeleição. 

A cúpula que reúne os líderes das, ainda consideradas principais economias emergentes do mundo, pretendia se reinventar, por exemplo, incluindo outros países da América do Sul nessa relação, o que não ocorreu por conta da política doméstica cada vez mais direitista e com vocação golpista em seus países e o crescente isolamento da Venezuela. Para se perceber a importância do BRICS no cenário econômico mundial, basta observar o grau de sua participação na expansão da economia global desde 2012. Um tópico do grupo que seria vital para a sua independência e autodeterminação, a consolidação de um banco de desenvolvimento refletia essa importância sem, necessariamente, planejar comprometer a participação dos países integrantes em organismos multilaterais, aos quais essas economias emergentes ainda reivindicavam uma maior presença e poder de voto nas grandes decisões. Com isso, o BRICS pretendia ratificar a tese da mudança do centro de gravidade do poder e da economia mundiais, que sempre lhes foi negado. Demografia, potencial de mercado entre outros fatores justificam o tratamento especial ao grupo. Trata-se de um mercado que soma uma população  de mais de 800 milhões de novos consumidores e um potencial para se somar aos demais grupos econômicos. O encontro de Fortaleza também apontou novos significados nos acordos estabelecidos, para além de temas eminentemente econômicos, o reconhecimento da necessidade de se incluir a discussão de assuntos de interesse multilaterais nas áreas científicas, tecnológicas, educacionais, de direitos humanos e de cooperação.

Certamente o fortalecimento do BRICS,  solapado pelos governos brasileiros do pós-golpe de 2016 só piora no governo entreguista e fascista de Bolsonaro. O pior momento para se ter um governo que descarta a ciência como estratégia no combate a uma pandemia que assola o mundo e, contribui, macabra e deliberadamente desde seu inicio, para o culto da morte, até o momento de mais de 300 mil vidas ceifadas; uma verdadeira dizimação do povo brasileiro. Abre mão do  internacionalismo para o combate da nova praga do século, para reduzir o Brasil ao papel de pária do mundo, isolando-o com estratégias e objetivos medievais e genocidas. O Brasil precisa se livrar de Bolsonaro e sua corja de destruidores da pátria, para poder sobreviver. 

Rússia, China e Índia lideram a descoberta e fabricação de vacinas anti-covid-19 e deverão ter o papel de protagonistas geopolíticos com a vacinação de sua população, enquanto países ricos tentam adquirir  suas vacinas para que possam reativar a economia. Em vez de promover a cooperação no âmbito do BRICS para o enfrentamento da pandemia e o desenvolvimento e aplicação de vacinas, o governo fascista brasileiro, capacho dos Estados Unidos, ignorou os parceiros, e se submeteu a ordens do grande chefe em Washington, esnobando as vacinas russa e chinesa se abstendo de qualquer cooperação com os países do bloco, agora à frente em todos os setores de combate ao novo coronavírus. O Brasil com reconhecido expertise na produção e aplicação de vacinas, modelo mundial no combate a pandemias, foi jogado na vala comum dos países onde há o maior numero de pessoas mortas por um vírus que já tem vacina para combate-lo. O país que tem o presidente apontado como o mais incapaz no mundo no combate à pandemia é acompanhado por um Ministro das Relações Exteriores que se orgulha nos fóruns internacionais de ter tornado o Brasil um pária no mundo, o que impossibilitou, junto com a família Bolsonaro, acordos internacionais para a obtenção da vacina e preferiram, todos do governo medieval brasileiro, apostar na anti-ciência com a propagação de vermífugos e químicas, espécies de unguentos e fármacos desacreditados no meio médico, sem comprovação científica, seja na prevenção ou tratamento da doença resultante do covid-19.

Infelizmente, desde que ocorreu o encontro BRICS em Fortaleza em 2014, o Brasil passou pela turbulência e efeitos negativos do golpe político e viu serem realinhadas suas prioridades no cenário internacional. É, portanto, decepcionante e iminente o fracasso daí resultante para o projeto  brasileiro no BRICS, que no momento atual, com o protagonismo da China, Rússia e Índia no desenvolvimento das vacinas anti covid-19 teria o Brasil como excelente parceiro na área. Certamente estaríamos na linha de frente da ciência com os outros três países e teríamos evitado o caos e a tragédia que se estabelece no país, fruto do negacionismo, incompetência e barbárie de um governo que ri da desgraça de seus cidadãos. A união e o fortalecimento dos países emergentes, assim como qualquer tentativa de afirmação de soberania e independência foram, no bojo do golpe, substituídos por submissão e entreguismo:


É público que as forças responsáveis pelo impeachment tinham e têm como objetivo, além de reduzir a remuneração e as liberdades democráticas da classe trabalhadora, realinhar a política externa do Brasil com os interesses dos Estados Unidos e seus aliados. Ou seja: afastar o país do projeto de integração regional autônoma e dos BRICS.(1)



Os anos 40 de Raduan Nassar voltaram. O Brasil que havia saído da periferia nela foi reinstalado. Voltou ao mapa da fome, a um lugar no pódio com os países líderes em feminicídio, crimes contra as maiorias sociais, trabalho escravo e genocídio de povos indígenas. Este ano o último indígena da tribo Aruká morreu em consequência do covid-19, ou melhor dito, em consequência da política de extermínio dos povos originais  no governo Bolsonaro. Não vacinado, tratado com o kit-covid sem eficácia comprovada mas defendido pelo presidente, o último Aruká morreu em um hospital do Amazonas. Mais um que compõe a estatística de mortes evitáveis pela pandemia no país, tornando o Brasil um dos campeões mundiais também no número de pessoas infectadas, em se  considerando a relação mortos/infectados/população. Somos o país que mais envergonha e causa espanto à OMS/ONU com suas propostas consideradas absurdas, como por exemplo aquelas sugeridas pela ministra anti-direitos humanos, unindo-se aos país mais retrógrados do mundo nesse quesito, como Arábia Saudita, Paquistão, Iraque, Nigéria... 

Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo já haviam defendido que fossem retirados dos documentos na ONU/OMS qualquer tipo de referência sobre “educação sexual”. Aprofunda-se o fundamentalismo religioso neopentecostal com seus representantes políticos e institucionais reforçando propostas de premiar o crime de estupro com impedimento da interrupção da gravidez nesses casos, incentivando a violência contra a mulher.  Ignoram o racismo e seu necessário combate. Sequestram a laicidade do Estado para transforma-lo em um verdadeiro “Brasiquistão”. O país sofre com o desmonte de áreas vitais como saúde e educação, trazendo de volta doenças antes erradicadas, fazendo crescer o analfabetismo e retroceder em décadas a educação em  todos os níveis. O projeto de transformar o Brasil em um país apenas exportador de commodities agrícolas através da destruição do meio-ambiente e uso indiscriminado de pesticidas para abastecer as mesas fartas de países desenvolvidos, que se omitem e se tornam seus cúmplices.  Destruir sua indústria, boicotar a ciência e inviabiliza-la ampliando a dependência de países antes próximos e parceiros, com o mesmo nível de diálogo no cenário internacional… O golpe de 2016 contra a presidente Dilma Rousseff, o governo tampão ilegítimo de Michel Temer e a eleição arrematada por estratégias do submundo fascista e fakenews que levou Bolsonaro à presidência, tudo arregimentado pelas forças do submundo da mídia corporativa e da espúria elite brasileira egoísta que se agruparam em bloco na  construção do projeto de genocídio em curso contra o povo brasileiro. Esse mal, como todos os outros deverá ter um fim porque é este fim o objeto de luta de todos que prezam a liberdade e desejam o Brasil de volta ao caminho auspicioso que trilhava, trazendo alegria e prosperidade para seu povo. A solução imediata e inadiável é o impeachment do presidente que instalou o caos social e a barbárie no país. O passo seguinte e redentor seria seu julgamento em tribunal internacional para sua condenação por seus crimes contra o povo brasileiro, a floresta e a humanidade.


Antonio C. R. Tupinambá

Escrito em 27 de março de 2021.

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1) Qual importância Temer dá aos BRICS? por Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais

 – publicado 27/10/2016. Disponível em: 

<https://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-grri/texto-brics>. Acesso em: 21 mai. 2017.


quinta-feira, 25 de março de 2021

ICONOCLASMO E ANTI-DEMOCRACIA(1)




                Budas de Bamiyan — Afeganistão




Março de 2001, há exatos vinte anos duas manchetes vindas do Oriente Médio chocam o mundo: 1) Duas estátuas gigantes de Buda de Bamiyan, patrimônio cultural da humanidade, são destruídas pelos Talibãs no Afeganistão, 2) O ministro de Estado Shahbaz Bhatti é assassinado em Islamabad, capital do Paquistão por um grupo dos talibãs com ligação à Al-Qaeda.

Em 2011, dez anos após os dois tristes acontecimentos, Dirk Kurbjuweit no artigo Deus não é político(2), escreve sobre Deus e política, referindo-se à Alemanha. Suas ideias podem, contudo, servir para compreender a realidade político-religiosa de outras nações. Para o autor, a pergunta sobre a pertinência de qualquer religião a um país é diferente da pergunta sobre sua pertinência a um governo. Se determinado credo faz parte de um país é uma coisa; outra é se faz parte do governo daquele país. Essa inclusão da Igreja no Estado não faz mais sentido nos dias atuais. O desenvolvimento da democracia trouxe a necessária separação entre Estado e religião. Descartes e Spinoza questionavam o poder irrestrito de Deus: o primeiro ao separar o mundo material do espiritual; o segundo, ao reconhecer Deus de forma tão poderosa que seria demasiado para coisas mundanas. Kurbjuweit descreve em seu artigo, como um absurdo o fato de categorias religiosas ainda desempenharem papel de relevância no discurso político formal. Para ele não importa a religião ou sua ausência para que uma pessoa seja parte fundamental de uma democracia verdadeira.

O cidadão deve aceitar a separação entre Estado e religião, respeitar os valores e as leis do Estado a que pertence. Professor da Universidade Federal Fluminense, José Antonio Sepúlveda afirma não haver laicidade sem democracia nem democracia sem laicidade; o Estado laico defende o direito de se ter religião. "Ele [o Estado] respeita todas as crenças religiosas, desde que não atentem contra a ordem pública. Cabe ao Estado interferir e punir os casos de violência por motivo religioso”.(3) A soberania no Estado é, segundo Rousseau, o desejo de todos, que se origina no seu povo. Eleições possibilitam a mistura desses desejos, o que significa democratização e supera qualquer outra forma de Estado, podendo resultar na convivência de todos os temperamentos do seu povo, sejam eles fortes ou moderados, pessoas religiosas ou não-religiosas. 


A vontade comum de Rousseau encontra sua expressão no Estado, a vontade do soberano, que é chamado de povo. Ele elege o Parlamento de cujas leis o Estado é formado. E o que são eleições? As eleições são eventos para o cultivo de temperamentos e opiniões. Essa é a vantagem inestimável da soberania do povo e, portanto, da democracia sobre todas as outras formas de governo. Quando dezenas de milhões de pessoas dão seus votos, misturam-se temperamentos, de temperamento explosivo e sonolento, duros e gentis, religiosos e não religiosos, e opiniões de todos os tipos. Normalmente, o resultado é um Estado menos tenso. Quando Deus governa de cima, seu temperamento, sua opinião, são a autoridade final. Infelizmente, ninguém sabe exatamente o que ele sente e pensa. A casta sacerdotal obtém muito poder de esclarecimento com isso. Poder de interpretação, hoje são cardeais, bispos, imãs, mas também políticos religiosos e publicitários. A formação de opiniões nas religiões ocorre amplamente de cima para baixo, por exemplo, por meio de dogmas. Não é democrático. Além disso, o temperamento religioso não está livre de tensões. A religião vem do êxtase, é sobre grandes sentimentos, amor e ódio, sobre o próprio e o outro. Mitos não podem ser provados e, portanto, difíceis de conciliar, acredite ou não. Frequentemente, trata-se de uma demarcação nítida, meu Deus, contra o seu. Por esta razão, os conflitos de base religiosa são com grande frequência particularmente amargos, as guerras muito prolongadas, por exemplo a Guerra dos Trinta Anos, a da Irlanda do Norte ou o conflito árabe-israelense.(4)


O compartilhamento e aceitação da diversidade de opinião evita a barbárie que pode se originar do terror fundamentalista patrocinado por fanáticos e iconoclastas, que também ataca pessoas, ambientes sagrados e rituais. Há vinte anos, Afeganistão e  Paquistão viveram ondas de horror com atos terroristas que resultaram na destruição patrimonial e humana. De um lado iconolatria e do outro extremismo religioso fundamentando assassínio. 


No mundo do Islã, a interdição da representação se opõe à idolatria, em particular ao culto dos ídolos em pedras, encontrados por arqueólogos, que testam uma cultura nômade de povos que viviam do pastoreio e criação. A interdição de toda representação se estende até a pessoa do Profeta. São conhecidos os episódios mais recentes do iconoclasmo, através da destruição de estátuas que antecederam o surgimento do Islã, conservadas em um museu de Caboul, promovida pelos Talibãs no Afeganistão. Foram amplamente divulgadas na mídia a destruição das estátuas gigantes de Buddha em Bamiyan.(5)


Ato símbolo da intolerância religiosa, há exatos vinte anos, as duas estátuas gigantes de Buda, de mais de 1,5 mil anos, foram dinamitadas a mando do governo Talibã e do seu líder Mullah Mohammed Omar. Um ato de iconoclastia deliberada que deveria também contribuir com a destruição da cultura afegã. "Após a destruição dos Budas, os nichos que abrigavam as duas estátuas permaneceram vazios. O local contém vários santuários budistas, além de construções do período islâmico”.(6) Ao ataque iconoclástico afegão se somou o assassinato do ministro para Assuntos de Minoria, Shahbaz Bhatti em Islamabad, capital do Paquistão. Os dois terríveis atos terroristas anteciparam outros de grande repercussão: os atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA e o início da Segunda Guerra da região, quando mesmo sem aprovação da Organização das Nações Unidas, os Estados Unidos invadiram o Afeganistão em outubro de 2001. O objetivo da invasão seria encontrar o terrorista Osama bin Laden e seus apoiadores que se instalaram naquele país. 

O ministro paquistanês de apenas 42 anos, assassinado por terroristas ligados à al-Qaeda, era o único cristão no governo paquistanês e pedia reformas à legislação sobre blasfêmia, que prevê sentença de morte a quem insultar o Islã. O eco da política oficial e de suas vozes que querem representar segmentos religiosos fundamentalistas destroem os vestígios de uma sociedade que no passado, como se tem conhecimento, era bem mais tolerante. Inclusive no Afeganistão dos anos 1960, respirava-se mais liberdade e se testemunhava um estilo de vida completamente diferente daquele que se instalou depois da invasão russa e da posterior chegada dos talibãs.(7) Os fatos que foram registrados há dez anos, uma década após a invasão estadunidense de países no Oriente Médio, que se seguiu à não menos predatória invasão do Afeganistão pela Rússia, observa-se que ainda se espalha pelo mundo o mesmo retrocesso, seja pelos atos de países invasores ou por líderes extremistas que se dizem dotados de inspiração divina para guiar suas ações. Fanáticos de quem já se sabe muito bem, são corresponsáveis pelos desastres políticos e humanitários que há décadas castigam povos e nações. 


Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá

Fortaleza, março de 2021.


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1) A partir de texto originalmente escrito em 2011 com o mesmo título “Iconoclasmo e anti-democracia”, para registrar os 10 anos do ataque iconoclástico no Afeganistão.

2) Kurbjuweit, D. Gott ist nicht Politiker. Der Spiegel, 4 de abril de 2011. Disponível em: <https://www.spiegel.de/spiegel/print/d-77855793.html>. Acesso em: outubro de 2011.

3) Neves, J. "Não há laicidade sem democracia nem democracia sem laicidade”. Disponível em: <https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/acontece-na-epsjv/nao-ha-laicidade-sem-democracia-nem-democracia-sem-laicidade>. Acesso em: abr. 2019.

4) Kurbjuweit, D. Gott ist nicht Politiker. Der Spiegel, 4 de abril de 2011. Disponível em: <https://www.spiegel.de/spiegel/print/d-77855793.html>. Acesso em: outubro de 2011, p. 124.

5) Disponível em: <https://www.sergioprata.com.br/port/iconoclasmo.html>. Acesso em: 2011.

6) Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2011/03/1368341-onu-lembra-10-anos-da-destruicao-das-estatuas-de-buda-no-afeganistao-portugues>. Acesso em: abr. 2011.

7) Europa? Não, este é o Afeganistão antes da Era talibã. Disponível em: <https://observador.pt/2016/01/27/europa-nao-afeganistao-da-era-taliba-nao-mexer/>. Acesso em: mar. 2021.

terça-feira, 23 de março de 2021

Golpe militar em Mianmar: Os ditadores e a dama da paz

 

                                                 Protestos por democracia em Mianmar Wikimedia Commons/Reprodução 





A população de Mianmar se mobiliza em todo o país para dar um fim ao sangrento golpe perpetrado pelos militares em 1º de fevereiro. Dispostos a lutar pela recuperação da democracia perdida para o golpe, milhares de manifestantes marcham pelas ruas de Yangon, capital econômica do país, e na cidade de Mandalay, há dias sob forte repressão exercida pela junta militar golpista. Os mesmos militares, que há décadas comandam uma ditadura sanguinária intermitentemente, não aceitaram a vitória clara da oposição nas últimas eleições de novembro de 2020. O partido Liga Nacional para a Democracia, liderado pela Prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi saiu vitorioso mas ficou pouco tempo no poder, sendo destituído pelos militares derrotados no pleito. Aung San continua detida juntamente com o presidente eleito Win Myint e outros líderes partidários por meio de alegações falsas e sem respaldo legal. Os militares golpistas são os mesmos que transformaram Mianmar em uma das mais pobres nações do planeta, com um crescimento vertiginoso de várias mazelas: aumento do trabalho infantil, decadência econômica e perseguição política generalizada. O povo birmanês contava com mudanças que poderiam vir com o novo governo por ele escolhido nas urnas, principalmente pela participação de Aung San na configuração da equipe do presidente eleito. O partido militar, grande derrotado nas últimas eleições, se recusou a aceitar os resultados e ter que abrir mão de seus privilégios, bem como do controle absoluto do país. A história já mostrou aos birmaneses o que significa esse controle: repressão da população, prisão arbitrária de políticos e religiosos que se manifestem contra desmandos e corrupção.  



                          Aung San Suu Kyi, 75, é a principal figura política do Mianmar. 

                 Ela já ganhou um Prêmio Nobel da Paz por sua postura não-violenta. 

                 Martin Schultz via Wikimedia Commons/Reprodução(1) 



Aung San continua sendo a esperança dos birmaneses para se somar ao combate à ditadura militar. A mando dos golpistas,  manifestantes pacíficos tem sido atacados com armas letais e muitos dos que sobrevivem aos ataques são feitos prisioneiros sem qualquer chance de defesa. Diariamente nas ruas das grandes cidades desde o dia do golpe, manifestantes sofrem a repressão sistemática com tiros e ocultação de pessoas desaparecidas. A Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos (CNUDH) calcula que 138 pessoas, entre elas também crianças, foram mortas pelas forças de repressão, enquanto a Associação de Assistência a Prisioneiros Políticos (AAPP) calcula que esse número chega a pelo menos 261 pessoas. As forças de segurança espalham o caos por todo o país com o aumento da brutalidade no confronto com os manifestantes. "Mais de 2.100 pessoas, incluindo jornalistas, manifestantes, ativistas, oficiais do governo, sindicalistas, escritores, estudantes e civis foram detidos no meio da noite, de acordo com a ONG Assistance Association for Political Prisoners (AAPP)”.(2)  



Mianmar (antiga Birmânia) é um país do sudeste asiático que faz fronteira com a Índia, Bangladesh, China, Laos e Tailândia. Há mais de 100 grupos étnicos na região. Juliana Vitória/Guia do Estudante/Reprodução (3)



Antonio Guterres, secretário-geral da ONU, e o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken estão entre os vários líderes mundial que condenaram a prisão de Suu Kyi e pediram que os militares "respeitem a vontade do povo". Michelle Bachelet, alta comissária de Direitos Humanos da instituição, afirmou estar “'chocada' com a situação de Mianmar e com os 'ataques documentados contra equipes médicas de emergência e ambulâncias que socorrem os feridos'. Bachelet afirmou que, em alguns casos, as prisões constituem desaparecimentos forçados, e pede a libertação imediata de todos que foram presos de forma arbitrária".(4) Motivações políticas que infelizmente se sobrepuseram a questões humanitárias devem ter levado os países membros do Conselho de Segurança da ONU a condenar a violência em Mianmar, no entanto, sem reconhecer que de fato houve um golpe. Com essa omissão, A ONU erra e perde mais uma vez a chance de evitar o ocaso da frágil democracia birmanesa.


Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, março de 2021.

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1)  Diaz, L. Mianmar: entenda o golpe de Estado e a história do país. Disponível em: <https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/entenda-o-que-esta-acontecendo-no-myanmar/https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/entenda-o-que-esta-acontecendo-no-myanmar/>. Acesso em mar. 2021.

2) Regan, H.; Yeung, J. Militares estão matando manifestantes em Mianmar; entenda o que acontece no país. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/03/16/militares-estao-matando-manifestantes-em-mianmar-entenda-o-que-acontece-no-pais>. Acesso em: 16 mar. 2021.

3) Diaz, L. Mianmar: entenda o golpe de Estado e a história do país. Disponível em: <https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/entenda-o-que-esta-acontecendo-no-myanmar/https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/entenda-o-que-esta-acontecendo-no-myanmar/>. Acesso em mar. 2021.

4) Mianmar: Ao menos 54 pessoas morreram em protestos contra golpe militar, afirma ONU. <https://www.brasildefato.com.br/2021/03/05/mianmar-ao-menos-54-pessoas-morreram-em-protestos-contra-golpe-militar-afirma-onu>. Acesso em: 16 mar. 2021.

domingo, 14 de março de 2021

Apartheid israelense

                                        Foto: MAHMUD HAMS / AFP


A terra nos é estreita(1)

A terra nos é estreita. Ela nos encurrala no último desfiladeiro
E nós nos despimos dos membros
Para passar. A terra nos espreme. Fôssemos nós o seu trigo para morrer e ressuscitar.
Fosse ela a nossa mãe para se compadecer de nós.
Fôssemos nós as imagens dos rochedos
que o nosso sonho levará como espelhos.
Vimos o rosto de quem, na derradeira defesa da alma,
o último de nós matará. Choramos pela festa dos seus filhos e vimos o rosto
Dos que despenham nossos filhos pela janela deste último espaço.
Espelhos que a nossa estrela polirá.
Para onde irmos após a última fronteira?
Para onde voarão os pássaros após o último céu?
Onde dormirão as plantas após o último vento?
Escreveremos nossos nomes com vapor
carmim, cortaremos a mão do canto para que nossa carne o complete.
Aqui morreremos. No último desfiladeiro.
Aqui ou aqui... plantará oliveiras
Nosso sangue.
Mahmud Darwich


Dois povos, dois países, duas religiões e uma vida entre guerras. Como fala o poeta no texto em epígrafe, Palestina, terra estreita que encurrala e, pelo braço pesado dos algozes, vira um desfiladeiro onde morrem seus filhos. Assim se define a situação em Gaza e na Cisjordânia, redesenhadas, como hoje se conhece, perdeu terreno para Israel a partir do que se concebeu nos bancos da Organização das Nações Unidas (ONU) há mais de sessenta anos.  


Quando naquela conjuntura se deliberou pela partilha do ex-território britânico, com 33 votos a favor e 10 contrários, previa-se o surgimento de dois Estados paralelos na Palestina, um árabe e outro judeu, o que, presumidamente, traria por fim a paz à região. O plano de partilha das terras hoje ocupadas por judeus e palestinos significou, antes de uma sonhada paz duradoura, o começo de uma sequência de guerras  marcando  a vida (e a morte) dos dois povos. No tempo presente, a  nova guerra é contra a pandemia do covid-19. Como afirmou Samah Jabr, médica psiquiátrica em Jerusalem, os palestinos estão vivendo um novo Apartheid, nesse caso, pode-se acrescentar à fala de Jabr, um apartheid que significa um iminente genocídio contra o povo palestino: "Israel está recebendo elogios e vem impressionando o mundo por ser o país líder em termos de vacinação. Em paralelo a isso, estão dificultando a obtenção de vacinas por palestinos. Houve atrasos desnecessários para entregar 22 mil doses para Gaza e, na Cisjordânia, poucas vacinas foram distribuídas. Estamos numa situação de apartheid”.(2) Igual diagnóstico é verbalizado pelo parlamentar palestino Mustafa Barghouti, membro do Conselho Legislativo, espécie de parlamento que reúne representantes dos territórios sob jurisdição da Autoridade Nacional Palestina (ANP): Israel executa "apartheid médico" ao impedir vacinação de palestinos.


A esperança (ou ilusão) de uma atitude mais humanizada por parte de Israel para com os palestinos em consequência da pandemia durou pouco. Em tempos tão terríveis,  com a pandemia como tragédia ampliada aos povos em terras já atingidas pela guerra e inóspitas para seus cidadãos; era esperada, no caso dos dois países vizinhos, a possibilidade de unir esforços e mitigar os efeitos da pandemia por um bem comum: a preservação de vidas. No início da pandemia foi possível identificar ações de coordenação conjunta nos dois lados do muro que separa os dois povos. Para que fosse medido o efeito da pandemia sobre os dois grupos populacionais procedeu-se o monitoramento conjunto de ambas as populações. A colaboração entre a Autoridade Palestina e o Estado de Israel foi fundamental e ocorreu, como desejado, em nome do bem-estar dos cidadãos da região, judeus e palestinos: 


“A saúde de todos os cidadãos da região está acima de tudo, e é nossa principal prioridade. Continuaremos a agir em colaboração com a Autoridade Palestina em um esforço conjunto", diz o major Yotam Shefer, chefe do departamento internacional da administração civil israelense na Cisjordânia […] Agentes de saúde de ambos os locais estão realizando atividades mútuas para conscientizar a população sobre o perigo da doença […] Segundo uma pesquisa do Instituto Truman para Paz da Universidade Hebraica de Jerusalém, 63% dos israelenses afirmam que Israel deve ajudar os palestinos durante a crise do coronavírus. A maioria dos israelenses acredita que, quando houver necessidade, o governo deve traçar medidas preventivas para ajudar os palestinos durante a epidemia da Covid-19[…](3)



Membros do governo de Israel assinalam que não têm responsabilidade sobre o que ocorre na Palestina porque esse é um problema para a Autoridade Palestina resolver. Entretanto, a realidade é outra pois como afirma Samah Jabr: "A Palestina tem uma autoridade dependente, não é um país soberano, e Israel coloca condições difíceis para os palestinos importarem as vacinas do exterior. Há uma realidade de ocupação. O artigo 56º da IV Convenção de Genebra [1950] obriga Israel, ou qualquer potência ocupante, a se responsabilizar pela nação ocupada quando há uma epidemia. Israel reivindica ser um benfeitor caridoso, mas é uma caridade falsa”. Vivendo em territórios ocupados, cinco milhões de palestinos se vêem distante do acesso à imunização — os Sem Vacina. A causa dessa tragédia vem de Israel, que, desde o início da pandemia,  dificultou o envio dos  kits de testagem aos seus territórios, Gaza e Cisjordânia. Tal procedimento se estenderia à obtenção de vacinas. A médica Samah Jabr reafirma a negligência continuada das autoridades de Israel quanto a adoção das medidas necessárias para lidar com a pandemia também nos territórios ocupados: "E não está assumindo nenhuma responsabilidade para fornecer serviços de saúde a estes grupos. Nós não temos controle sobre fronteiras, não podemos decidir quando abrir ou fechar os aeroportos ou se outras pessoas devem vir aos [nossos] territórios. Em Gaza, a situação é ainda pior, porque não há eletricidade constante, 95% da água não é potável  é salgada ou suja. A pandemia se coloca sobre condições sanitárias já frágeis”.


A Autoridade Nacional Palestina (ANP) já havia denunciado o bloqueio por Israel da entrada de vacinas provenientes da Rússia, postura que, segundo Mustafa Barghouti, membro do Conselho Legislativo, significa a continuidade de uma política de discriminação histórica que não mudou sequer em meio à pandemia: “Começaram a imunizar qualquer um com um documento israelense mas ignoraram os palestinos completamente. Temos milhões de pessoas vacinadas e 5,3 milhões de palestinos abandonados. Gradualmente a doença vai se tornar muito mais proeminente nos territórios palestinos. É com isso que estamos lidando e tentando convencer o mundo”.(4)


O modelo político israelense para os palestinos na pandemia é refutado pela Organização das Nações Unidas, (ONU), pois sabe que o dever da potência ocupante é fornecer vacinas em conformidade com o direito humanitário internacional, também previsto nos Regulamentos de Haia de 1907. Segundo Barghouti, as doses cedidas à Autoridade Nacional Palestina só foram disponibilizadas em resposta à repercussão internacional, a exemplo de pedidos da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Sob pressão, deram apenas 2 mil vacinas enquanto tem 14 milhões de doses. A limpeza étnica é uma política oficial e uma prática comum de Israel”.(5)


A Anistia Internacional também condenou a decisão do governo israelense de suprimir a vacinação dos palestinos. Para a ONG que defende direitos humanos, a medida do Estado sionista evidencia uma discriminação   institucionalizada que define sua política para os palestinos. 


Há pouca ou nenhuma preocupação de Israel com a saúde pública quando se leva em conta os palestinos. Ao incluir trabalhadores nos grupos que devem ser vacinados, o fazem por motivos estritamente  econômicos, para favorecer as cadeias produtivas, pois dependem em muito dos trabalhadores palestinos. Em Israel são 16 parques industriais na Cisjordânia e na Jerusalém Oriental. São mil fábricas e 21 mil trabalhadores. Há ainda outros palestinos com permissão de trabalho em fazendas ou na construção de assentamentos e dentro nas fronteiras israelenses originais. Vacina somente para esses, os demais palestinos que permaneçam do outro lado do muro da vergonha que sejam entregues à própria (falta de) sorte, pouco importa aos genocidas! Como afirmou Mustafa Barghouti(6), está em curso uma limpeza étnica, política oficial e prática comum de Israel, pois assim a Cisjordânia pode ser mais facilmente anexada a Israel.


Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, 14 de março de 2021.

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1) Darwich, Mahmud. A terra nos é estreita e outros poemas. Tradução do árabe por Paulo Daniel Farah. São Paulo: Edições Bibliaspa, 2012.

2) Sakamoto, L. Sem vacina, vivemos apartheid sanitário, diz liderança médica na Palestina. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2021/03/14/sem-vacinas-palestina-vive-um-apartheid-sanitario-diz-medica.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola>. Acesso em: 14 mar. 2021.

3) Palestinos e israelenses se unem e realizam ações conjuntas contra o coronavírus. 20 de março de 2020. Disponível em: <https://istoe.com.br/palestinos-e-israelenses-se-unem-e-realizam-acoes-conjuntas-contra-o-coronavirus/>. Acesso em: julho de 2020.

4) Sudré L. Israel executa “apartheid médico” ao impedir vacinação de palestinos, acusa político. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/02/18/israel-executa-apartheid-medico-ao-impedir-vacinacao-de-palestinos-acusa-politico>. Acesso em: Acesso em: 14 mar. 2021.

5) idem.

6) ibdem.