POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

O RACISMO DE CADA DIA*





                                                        Foto: Agustin Paullier/AFP




…Aqueles que professam favorecer a liberdade e, no entanto, depreciam a agitação, são homens que querem colheitas sem arar o solo, querem chuva sem trovões e raios. Eles querem o oceano sem o terrível rugido de suas muitas águas.
Essa luta pode ser moral, ou física, e pode ser moral e física, mas deve ser uma luta. O poder não concede nada sem uma demanda. Ele nunca fez e nunca fará. Descubra exatamente a que qualquer pessoa se submete silenciosamente e você descobriu a medida exata de injustiça e injustiça que lhes será imposta, e elas continuarão até que sofram resistência com palavras ou lutas, ou com ambos. Os limites dos tiranos são prescritos pela resistência daqueles a quem eles oprimem… Se algum dia nos libertarmos das opressões e dos erros cometidos sobre nós, devemos pagar por essa libertação. Devemos fazer isso pelo trabalho, pelo sofrimento, pelo sacrifício e, se necessário, com nossas vidas e com a vida dos outros. (Frederick Douglass, 1857. Emancipação na Índia Ocidental)1.


Ruby Bridges nasceu em 1954, ano em que o Tribunal Constitucional norte-americano  determinou oficialmente o fim da discriminação escolar baseada na raça. A partir daí, negros e brancos deveriam ter acesso ao estudo nas mesmas escolas. A menina Ruby parece ter nascido nesse ano para se incumbir da hercúlea tarefa que se avizinhava: mostrar aos seus compatriotas que era possível negros e brancos viverem juntos, em pé de igualdade. No entanto,  protegida por policiais, sua histórica escalada  às escadarias da escola só para brancos, a William Frantz Elementary School em 1960 para frequentá-la como primeira menina negra não resultou, como se esperava, em passos firmes em direção ao fim do famigerado racismo que ainda hoje grassa na sociedade norteamericana.
Louisiana, anos 1960 experimentava o início do processo de “dessegregação”, juntamente com vários outros eventos e movimentos de luta por direitos civis dos negros estadunidenses. A recusa de Rosa Parks em 1955 de ceder seu lugar em um coletivo para uma mulher branca resultou em sua prisão, mas seu gesto havia sido marcante para a sociedade norte-americana conservadora e segregacionista. Não esqueçamos dos discursos inflamados de um dos mais influentes líderes para o combate ao racismo e pela garantia de direitos civis, Martin Luther King. Tampouco podemos esquecer a saga de Malcom X com seus discursos inflamados e radicais que despertavam na audiência a autoestima do afroamericano, pondo abaixo o conceito de supremacia branca, dominante em várias regiões naqueles anos de chumbo do racismo e do poderio branco.
Malcom X foi responsável ou inspiração para o posterior surgimento de novos grupos e lideranças que lutavam, sem concessões, para que a causa dos direitos civis dos negros continuasse na pauta do dia, mantendo a mesma ideia em despertar autoestima e continuar sua recusa visceral  do conceito e das práticas funestas da supremacia branca que dominava várias regiões entre os anos 1950 e 1960, inclusive com a volta de manifestações da Ku Klux Klan. Foi após a promulgação da lei contra a segregação nas escolas públicas que permitiu Ruby subir as escadarias de uma delas, que surgiram novas ações violentas da organização criminosa pró-supremacia branca. 
O programa radical de Stokely Carmichael, ativista do Black Power2 e porta-voz dos Panteras Negras3, foi inspirado, sobretudo, pelo nacionalismo negro de Malcolm X:  Carmichael foi representante de uma militância afro-americana em meados da década de 1960 e recusava qualquer luta pela integração do negro à sociedade norte-americana (branca), dando prioridade ao cumprimento de agendas político-identitárias negras radicais cada vez mais transnacionais. Não compactuava com o reformismo de Martin Luther King a favor da inclusão dos negros nos marcos da cidadania norteamericana. "Carmichael e o Black Power voltaram-se, então, às reivindicações separatistas de Malcolm X por autodeterminação e poder político para os afroamericanos e suas comunidades por 'quaisquer meios necessários’.4”

O racismo nunca erradicado, e desde então  recrudescente e recorrente no cotidiano dos EUA  já não se deixa esconder facilmente. As diferentes mídias registram barbaridades que se pensava esgotadas, uma vez inadmissíveis na, dita, maior  "democracia" do planeta. Os episódios extremos de racismo que se acumulam nos mais diversos setores da vida norteamericana são revelados a seco pelas mídias sociais e se espalham rapidamente pelo mundo causando perplexidade e revelando a face brutal e vergonhosa do Tio Sam, que se queria oculta para  continuar agindo de forma truculenta. Nem mesmo a eleição de Barack Obama em novembro de 2008, o primeiro presidente negro de toda a história dos EUA, representou o fim de um longo e árduo processo de luta  por emancipação dos afroamericanos; representou apenas um  passo conjuntural em direção a uma sonhada igualdade racial que ainda não chegou.

Entretanto, a história que se quer avivar hoje não se passou nos já distantes anos de 1950 ou 1960. George Floyd, de 40 anos, morreu asfixiado por um policial branco pressionando o joelho sobre seu pescoço. As imagens da barbárie são do dia 25 deste mês de maio de 2020 e são aviltantes, causando indignação por todo lado do planeta. Apesar dos apelos de George, sentindo que sua vida se esvaía ao ser completamente sufocado; o policial branco, impávido,  cumpriu sua sórdida tarefa de racista e  homicida: matou George. Seria o policial um membro da Ku Kux Klan ou apenas mais um policial eleitor de Trump que se considera investido da missão de tirar a vida de um semelhante?  A súplica de George para não ser morto, "Não consigo respirar” (I can’t breath), teve o mesmo som daquela em 2014 de Eric Gardner em Nova York, outro homem negro assassinado por um policial branco que não recebeu qualquer punição pelo crime. Ações dessa natureza são parte de um sistema de justiça racializado e que tem alvo certo. A violência policial é uma das principais causas de morte entre jovens nos Estados Unidos, onde, segundo estudos do Mapping Police Violence (Mapeando a violência policial), os negros têm três vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que os brancos. No Brasil, uma sociedade ainda mais violenta, temos um total de 75,4% de mortos de negros que representam 55% do total da população em decorrência de intervenção policial. No caso do Rio de Janeiro, os "negros contam com 23,5% mais chances de serem mortos do que o restante da população - número que salta para 147% se for considerada apenas a idade de 21 anos, quando há o pico de probabilidade.6"

A pandemia da covid-19 que impera no país não impediu que multidões saíssem às ruas de Minneapolis, cidade em que ocorreu o homicídio de Estado, para mostrar sua indignação face a essa cena explicita de racismo e brutalidade policial. Uma reafirmação da violência do Estado contra negros assente no discurso supremacista de  Donald Trump,  replicada nas ferozes atitudes  de seus eleitores segregacionistas, em um país que tem 40% de negros entre seus prisioneiros, ainda que representem apenas 13% da sua população total.

Quero dizer, senhor governador Wilson Witzel, que a sua polícia não matou só um jovem de 14 anos com um sonho e projetos, a sua política matou uma família completa, matou um pai, uma mãe e o João Pedro. Foi isso que a sua polícia fez com a minha vida.

Esses atos cruéis praticados contra minorias e grupos de cidadãos pobres em diferentes países não ocorrem como casualidade. Os fatos cotidianos de violência se repetem e guardam semelhanças nas novas formas de governo constituídas para destruir o que resta de humano e democrático nas nações. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Governos com viés fascista que pregam sua ideologia para as instituições e acolhem atitudes de igual tendência. Certamente não são todos os seus membros que se submetem a esse tipo de lavagem cerebral. As instituições são complexas e não se deixam homogeneizar facilmente, tampouco todo seu contingente precisa desenvolver traços perversos como querem seus mandatários. Mandatários esses que terminam por desenvolver tendências de repúdio a práticas que respeitem os direitos humanos, mesmo que isso signifique um processo de autossabotagem e autodestruição a longo prazo; difundir uma ideologia da indiferença, do ser anti-tudo que signifique respeito a diferenças, promoção de igualdade, fraternidade ou diminuição do profundo fosso social entre pobres e ricos, brancos (ou que se dizem brancos) e não brancos.
 Nos Estados Unidos, George Floyd, homem negro de 40 anos; no Brasil, João Pedro, menino negro de 14 anos. George  não foi acusado de qualquer crime , mas era negro. João Pedro  brincava em casa, dentro de sua casa; mas era pobre, negro e morava em uma favela.  No Complexo do Salgueiro no município fluminense de São Gonçalo foi atingido no peito, dentro de casa,  por um tiro de arma de fogo.  A repercussão internacional do caso Floyd reforça também no Brasil a luta local por justiça para casos como o de João Pedro. Em Minneapolis as ruas são ocupadas, prédios incendiados e milhares de cidadãos, não somente negros, reivindicam justiça, exigindo a prisão dos culpados pela tragédia que resultou na morte de George Floyd. A frase de George suplicando para que não o matassem “I can’t breathe” (Eu não consigo respirar) está sendo agora usada repetidamente nos protestos de rua em diferentes cidades. Em função do crescimento dos protestos, no dia 29, sexta-feira, Derek Chauvin, o policial que sufocou sua vitima até a morte foi detido, mas seus três colegas que participaram com ele da ação desastrosa continuam soltos. As manifestações atuais vêm mostrando outras cores. A multidão é composta por tons diferentes e em muitos casos compostas por maioria branca, o que quase não se via nos protestos da década de 1960 a que nos referíamos anteriormente.
No trilho dos crescentes eventos antirracismo nos Estados Unidos começaram a ocorrer noutros países, a exemplo do Brasil, manifestações mais organizadas em protesto pelos jovens negros mortos por policiais. No dia 31 de maio de 2020 a sede do governo do estado do Rio de Janeiro, o Palácio Guanabara, foi palco de uma delas. Vale lembrar que uma semana antes dos protestos do dia 31 já aconteciam manifestações em forma de ato online de dimensão nacional nas redes sociais. A esses atos virtuais organizados pela Coalizão Negra Por Direitos, participaram 800 entidades. Neilson Costa Pinto, pai de João Pedro participou da abertura desses atos destacando a importância da luta por justiça: "'É um momento que eu não desejo para ninguém, perder um filho é como perder a própria vida. O Estado é falido e sem responsabilidade nenhuma. Fazer o que fizeram com o meu filho e com outros filhos também, entrar no seu próprio lar e tirar a vida de um menino de 14 anos significa que o Estado é falido. E vamos lutar por justiça, é isso que esperamos, que a justiça venha a ser feita em nosso país', destacou.8” 
Esse é o resultado de uma necropolítica instituída pelo governador do Rio de Janeiro, o genocida Wilson Witzel. Apesar de circunstancial desafeto político de Bolsonaro,  é seu par na macabra escalada do fascismo no Brasil.  A pandemia da covid-19 não freou o aumento da violência institucional e o modus operandi racista que tem lugar no estado e na cidade do Rio de Janeiro e no país. Pior ainda nesses estados que copiam as linhas de um governo central militarista e fascista, com estratégias e arreganhos ditatoriais e onde não se pode esperar uma polícia que vise, como deveria, a proteção da população. Os paralelos entre países tão diferentes só podem ser feitos porque guardam entre si semelhanças em sua necropolítica e no abissal autoritarismo nas figuras estultas  dos seus presidentes. 






                                         
                                        João Pedro. Foto: Brasil de Fato.


Um estudante de 14 anos foi morto durante uma operação da Polícia Federal (PF) e da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, na tarde da última segunda-feira (18). João Pedro Mattos Pinto foi atingido na barriga enquanto brincava no quintal de casa. O adolescente foi levado em um helicóptero da Polícia Civil após ser baleado. Até a manhã desta terça-feira (19), a família estava sem informações sobre o jovem. Segundo o Corpo de Bombeiros, o corpo da vítima foi deixado na última segunda (18), às 15h, no Grupamento de Operações Aéreas (GOA), na zona sul do Rio. Na manhã desta terça-feira (19), familiares do adolescente estiveram no Instituto Médico Legal (IML) de São Gonçalo e reconheceram seu corpo. João Pedro foi descrito por amigos e familiares como um menino calmo e que frequentava a igreja. (Eduardo Miranda, Brasil de Fato, Rio de Janeiro (RJ), 19 de Maio de 2020).(9)



Antonio C. R. Tupinambá
Fortaleza, junho de 2020.
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* Publicado originalmente no “Memórias de quarentena – Adufc”. Disponível em: <http://adufc.org.br/2020/06/10/memorias-de-quarentena-23-o-racismo-nosso-de-cada-dia/>. Acesso em: 10 jun.  2020.
1  Traduzido do original em inglês de Frederick Douglass. EMANCIPAÇÃO NA ÍNDIA OCIDENTAL, discurso proferido em Nova York, em 3 de agosto de 1857. Consultado em maio de 2020: https://rbscp.lib.rochester.edu/4398 :
Those who profess to favor freedom and yet deprecate agitation, are men who want crops without plowing up the ground, they want rain without thunder and lightning. They want the ocean without the awful roar of its many waters.
This struggle may be a moral one, or it may be a physical one, and it may be both moral and physical, but it must be a struggle. Power concedes nothing without a demand. It never did and it never will. Find out just what any people will quietly submit to and you have found out the exact measure of injustice and wrong which will be imposed upon them, and these will continue till they are resisted with either words or blows, or with both. The limits of tyrants are prescribed by the endurance of those whom they oppress... If we ever get free from the oppressions and wrongs heaped upon us, we must pay for their removal. We must do this by labor, by suffering, by sacrifice, and if needs be, by our lives and the lives of others.
Expressão criada por Stockley black power (poder negro) após sua 27ª detenção, em 1966: ““Estamos gritando liberdade há seis anos… O que vamos começar a dizer agora é poder negro.” 
3 Os Panteras Negras (Black Panther Party for Self-Defense) foi criado em 1966 pela comunidade negra para a sua proteção em face das arbitrariedades a que eram submetida  na sociedade racista e segregacionista norteamericana.
Goulart, H. R. de P. (2019). Entre os Estados Unidos e o Atlântico Negro: o Black Power de Stokely Carmichael (1966-1971).  Dissertação (Mestrado)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, p. 15.
 O banco de dados americano mais compreensivo sobre assassinatos por policiais.
Sakamoto, L. (2020). Nos EUA, protestos contra o racismo. No Brasil, um ato com tochas acesas. UOL. Consultado em maio de 2020: https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/05/31/nos-eua-protestos-contra-o-racismo-no-brasil-um-ato-com-tochas-acesas.htm?cmpid=copiaecola.
7 Dito por Neilton Pinto, pai do garoto João Pedro, assassinado pela polícia do Rio de Janeiro.
8 Deister, J. (2020). Em memória de João Pedro: 800 organizações denunciam violência do Estado nas favelas. Brasil de Fato: Rio de Janeiro (RJ), 27 de Maio de 2020. Consultado em maio de 2020: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/27/em-memoria-de-joao-pedro-800-organizacoes-denunciam-violencia-do-estado-nas-favelas.
Miranda, E. (2020). Procura-se João Pedro: jovem desaparecido em ação policial é encontrado morto no Rio. Rio de Janeiro: Brasil de Fato, 19 de maio de 2020. Consultado em maio de 2020:  https://www.brasildefatorj.com.br/2020/05/19/procura-se-joao-pedro-jovem-desaparecido-em-acao-policial-no-rio-e-encontrado-morto

sexta-feira, 22 de maio de 2020

O MUNDO DE JOHNNY E GHEORGHE


Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá






A frieza britânica, a distância européia divergem da falsa espontaneidade estadunidense e permitem criar dramas que, mesmo tratando temas tabu trazem desfechos implacáveis e pouco óbvios. A pobre vida psíquica dos ianques se contrapõe à riqueza existencial europeia. Foi no velho mundo que se descobriu o inconsciente, foi no novo mundo que se tentou negocia-lo. Dessas negociações surgiu a sua negação e rejeições que originaram delirantes abordagens do psiquismo humano à sombra da psicanálise, tratando-a como rival a ser destruída, parcialmente destruída, desidratada ou substituída por esquemas simples que explicassem a natureza humana a serviço do seu controle: deveria servir ao controle do psíquico para se tornar americana. “Pseudo-evoluções teóricas” acerca do psiquismo humano com práticas correspondentes obtiveram êxito na sociedade do imediatismo e consumismo. A mesma sociedade que gera Trumps, movimentos neo-pentecostais fundamentalistas, KKK e outras aberrações bem conhecidas. Quase tudo, exceto a psicanálise poderia vingar nessas condições culturais e sociais, e nesse modo de vida onde não cabe a existência de um "inconsciente".
"Não sabem que estamos lhes trazendo a peste!1” dizia Freud ao  chegar em solo norte-americano em 1909.  De fato garantiu que se espalhasse no Novo Mundo a sua disciplina, contudo sem garantir a sua autenticidade, por motivos óbvios. Para Jacques Lacan, que diz ter ouvido essa frase de Jung, companheiro de Freud na viagem, "ele havia acreditado que a psicanálise seria uma revolução para a América, e, na realidade, a América é que tinha devorado sua doutrina.2” 
Apesar das conferencias de Freud terem viabilizado a difusão da psicanálise pelo mundo, ele, que ficara pouco mais de um mês nos Estados Unidos nunca mais mostrou interesse em retornar ao país e, até morrer, guardou sempre certo cepticismo com as ideias e as ações originadas naquele país.
Ferenczi, que também acompanhou Freud em sua viagem à América o havia perguntado se deveria levar consigo uma cartola (símbolo do Tio Sam), no que Freud, presume-se porque, respondeu que planejava comprar uma in loco e, que na viagem de volta, a jogaria ao mar3.
Sem dúvida a recepção que teve no país anfitrião deixou Freud feliz e enaltecido. Gênio inegável mas destratado na própria casa; saindo de uma Europa hostil e vendo a psicanálise abrir novos horizontes: "Na Europa, sentia-me como um proscrito, enquanto na América os melhores recebiam-me como um de seus pares”… mas deixa claro sua alegria pelo retorno ao Velho Mundo, à sua velha Viena: "Estou muito feliz por estar de volta e ainda mais feliz por não ter que viver na América”. Afinal de contas "A América é o mais gigantesco experimento que o mundo já viu, mas temo que não seja destinado ao sucesso".  E diz a seguir: "Sim, a América é colossal, um erro colossal.4”
Nada poderia ser mais premonitório e conclusivo. A América como um erro colossal, que teria seu apogeu na fabricação de governos que massacram e inquietam o mundo até nossos dias.
O pragmatismo norte-americano quis destruiu a psicanálise tornando-a um instrumento de adaptação do homem à sociedade. A transformação da psicanálise em uma terapia inserida em um compêndio de psicologia ou psiquiatria, sua visão terapêutica com poder de cura tornou-a em um novo ideal de felicidade “…capaz de dar solução à moral sexual da sociedade democrática e liberal: o homem não estava condenado ao inferno de suas neuroses e de suas paixões. Pelo contrário, podia curar-se delas.5”
Tudo passando pelo triturador moral e do pragmatismo estadunidenses perdendo plasticidade e complexidade. Assim como a psicanálise sofreu para agradar o "way of life norte-americano, com as simplificações e as distorções que disso derivam” vê-se perdido no atual engodo dessa nova civilização que não deu certo, qualquer história de abordagem complexa do humano, na vida, nas teorias ou no cinema, como a que vamos relatar a seguir. Facilmente teria tido um fim trágico, seja perdendo sua natureza plástica, seu intimismo; da mesma forma e perspectiva, para atingir esse enquadramento, agradar à moral vigente e caber nessa ordinária “way of life” que tenta reduzir tudo a um molde, uma explicação simples e digerível.  
Os alcances limitados dos significados ou a falta deles, característicos de uma cultura massificada, se contrapõem à riqueza imagética, detalhes da vida inconsciente que é assumida pelo “europeu”. Sem implicar em conflitos morais ou exigir adaptações fáceis e previsíveis  possibilita na arte desfechos humanos para questões humanas. Até mesmo um “happy end” em um filme de temática “gay” num contexto inusitado, incomum entra no campo dessas possibilidades, como nos trouxe Lee; mas esse possível, do lado de cá imitando a vida, não é necessariamente o mesmo por lá, na terra da eterna ficção moral ianque: “Então é como num filme americano, um filme americano bem ruim”, diz Liar antes de morrer sem realizar o sonho de abrir seu relacionamento com Yossi no drama israelense “Yossi and Jagger6”, referindo-se aos sempre reservados finais infelizes para casais gays de Hollywood.
Assistindo a Gods Own Country7 percebi que esse roteiro não poderia, portanto, ser de um filme concebido e rodado para as plateias estadunidenses, pois não  atende a uma banalização da história em nome da sua way of Life, a uma falta de reconhecimento de uma vida “inconsciente”, a uma carência de soluções que humanizam.  Essa é uma das características da cinematografia gay dos Estados Unidos; há de se ter um final infeliz para que aquilo  fora do padrão, que ameace o status quo, que se mantém fora da norma, não cause um desespero no “pré-consciente” coletivo. Não por menos, filmes de Hollywood de sucesso neste espectro têm um apelo à desgraça infinita, ao castigo e  à punição, bem ao modo behaviorista, trade mark da psicologia americana antipsicanalítica. Citando apenas três de cada lado do Atlântico: "O segredo de Brokeback Mountain”; "Boys don't cry" (meninos não choram)"  e Philadelphia8 contra "Beautiful thing (Delicada atração)”; "Maurice" e o título motivo mor do nosso texto atual, o belo "Gods own country”.
 A localidade que abriga sua história, ou seja a história do inglês Johnny e do romeno Gheorghe fica em Yorkshire no Norte da Inglaterra, sim, na terra de Charlotte Brontë, sendo que nossa história se passa nos tempos atuais. Uma cidadezinha nada metropolitana, com personagens pitorescos, muitos deles agarrando qualquer oportunidade para fugir do tédio local, por exemplo, uma bolsa de estudos para uma escola em qualquer centro urbano. Outros, habituados à vida rural, não pensariam nisso, é para eles natural o ciclo de vida com seus limites demarcados por cercas de pedras toscas e sendas estreitas. 
Não parece uma história contada por alguém que faz pela primeira vez um longa-metragem do gênero, no caso seu diretor, Francis Lee. Realmente um trabalho notável e vale ressaltar, trata-se sim de seu primeiro filme.  Lee escolheu ambienta-lo no que há de mais rural no Norte da Inglaterra: uma fazenda que nas proximidades conta com um único local onde os poucos habitantes do vilarejo podem tomar sua cerveja e mudar de ares nas noites sem opções. Muitas cervejas no caso do nosso Johnny. Há uma criativa solução para desencadear o intrigante enredo que vai fixar nossos olhares e criar mil expectativas. Como terminará tudo isso? Ocorrerá o tradicional desfecho hollywoodiano da tragédia gay ou será reservada alguma solução mais poética, diferentemente de histórias que passam pelo crivo da censura moralista estadunidense? Mas estamos falando de um filme europeu, portanto podemos pensar em um pouco mais de vida humana habitando a terra e a tela. A implacável solidão de Johnny, a vida absolutamente monótona numa família com dois membros a mais: pai e avó, ambos, aparentemente amargos e secos, apegados a uma rotina de fazendeiros ingleses esquecidos pelo mundo e vítimas de uma natureza gélida e agressiva. Para Johnny sobra a cerveja em demasia e o sexo limitado, não falado, que vem depois e não pode ter continuidade. 




A vinda do imigrante romeno Gheorghe, um desconhecido que deve passar uma semana ajudando o jovem Johnny, para os familiares pouco responsável, pouco competente e pouco capaz de tocar sozinho o duro trabalho diário. Uma solução que gera desconforto e protesto será também redenção e autodescoberta. Quer no círculo existencial limitado em que vive no pequeno povoado, quer nos estranhos sentimentos que lhe perturbam, não adentram quaisquer resquícios de felicidade ou prazer. Há o seco das relações familiares, a ausência das relações sociais, a fuga na noite, no álcool e nas formas insólitas e insatisfatórias de prazer sexual. Quem esperava tragédia ou humilhação nas condições afastadas do urbano e distante das constituições familiares londrinas mais tolerantes se enganou. Lee nos traz para um campo de diferentes e inusitadas sensações olfativas, táteis, visuais… que vão se descortinando à medida que a gélida relação imaginariamente competitiva do lado de Johnny esbarra na caliente e inesperada atitude de humanismo de Gheorghe, um fazendeiro desconhecido, “fugido” das agruras e problemas de seu país, rejeitado como um "cigano" qualquer. Tantos símbolos de dureza e prisão em que se acerca Johnny vão sendo aos poucos substituídos por libertação e descobertas. A amplitude e leveza da vida que Gheorghe mostra ao aprisionado Johnny. O contraponto do amor desprendido, despretensiosamente, oferecido. O confronto desse amor e dessa vida com o sofrimento eletivo do inglês. A abertura de horizontes ao leva-lo às alturas de onde se avista até o infinito até então desconhecido pelo dono da terra, na própria terra. O gesto simples de fazê-lo sentir leveza na pele dura e maltratada que cultiva em sinal de desprezo pessoal… Todos são caminhos que revelam doçura e humanidade de alguém como ele, um fazendeiro longe de suas terras e da terra natal, um estrangeiro qualquer, que pode se oferecer, sem receios ou medo. O efeito transcende os dois e recai sobre o que Johnny vive (ou não vive) em família. Há cenas e desfechos impossíveis de se pensar na cinematografia gay americana, limitada e previsível. Mesmo com a delicadeza com que é tratado o tema não vejo como pode dar certo naquele sociedade que não deu certo, como já previa Freud em 1909. Há aqui o humano, o complexo, a vida inconsciente e seus efeitos que é reconhecida e atualizada sem boicotes, negações ou falsas adaptações. Como disse Ernest Jones, biógrafo de Freud: há por ali [na sociedade americana] uma ignorância monumental! 9 
E é essa ignorância que quer nos reger e que devemos combater e não imitar!
Vivas às artes e ao cinema!
Parabéns Francis Lee, Alec Secăreanu e Josh O’Cornner (diretor e atores).

Fortaleza 21 de maio de 2020.


Roudinesco (1998) apud Myriam Chinalli (2010). A chegada da peste: cem anos da viagem de Freud aos EUA (1909-2009). Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 4, n. 7, out. 2010. 
2 Idem.
Worcester e As cinco lições de psicanálise apud Myriam Chinalli (2010).  A chegada da peste: cem anos da viagem de Freud aos EUA (1909-2009). Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 4, n. 7, out. 2010. 
4 Todas as citações deste parágrafo: .(Ricci 2005 apud Myriam Chinalli (2010). A chegada da peste: cem anos da viagem de Freud aos EUA (1909-2009). Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 4, n. 7, out. 2010. 
5 Roudinesco & Plon, 1998 , apud Myriam Chinalli (2010). A chegada da peste: cem anos da viagem de Freud aos EUA (1909-2009). Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 4, n. 7, out. 2010. 
6 Yossi & Jagger (Delicada Relação). Filme israelense de 2002, dirigido por Eytan Fox, sobre a rotina diária de soldados na fronteira entre Israel e Líbano e o romance secreto entre o sargento, Lior (Yehuda Levi), cujo apelidado é "Jagger" por seu estilo de astro do rock e Yossi, reservado e taciturno.
7 Apesar de ser traduzido por “Reino de Deus”, prefiro a tradução literal “País de Deus” porque livra desse pejo religioso que agradaria aos fundamentalistas norte-americanos. Talvez para nós “português-hablantes” melhor seria traduzido (livremente) como “Terra de Ninguém”.
8 “Filadélfia” foi absolutamente dessexualizado seguindo um padrão hipócrita hollywoodiano, onde tudo acontece por debaixo dos panos, mas na tela tudo tem que ser “limpinho” — uma cena na cama com os personagens de Hanks e Banderas fora inclusive cortada. Para Hanks  cenas como aquela poderiam tirar o foco da empatia que a produção queria promover junto ao [ridículo e obtuso] público norte-americano.
Ricci, 2005 apus Myriam Chinalli (2010). A chegada da peste: cem anos da viagem de Freud aos EUA (1909-2009). Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 4, n. 7, out. 2010. 

UM UIVO DE INSUBMISSÃO





Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá
Professor - UFC

Dia 60. 
Uma rotina de domingo. Tomo os domingos como Domingo: nele não se limpa, arruma, cose, passa ou cozinha. Não porque me proíbo, mas porque isso me ajuda a saber que amanhã é segundo e ontem foi sábado. Nele se descansa, se toma banho de sol, se deleita com música, literatura e arte. Qual seja o desejo e o alcance. 
Pois poderia ser apenas mais um desses domingos em que se impõe, voluntariamente, um dolce far niente. E eis que neste me caiu no colo a obra de arte cinematográfica de Rob Epstein e Jeffrey Friedman: HOWL (Uivo)!

Filme de 2010 com James Franco e Aaron Tveit como, respectivamente, Allen Ginsberg e seu companheiro Peter Orlovsky traz cenas entre Nova Iorque e São Francisco, onde, Ginsberg em 1957 lança seu livro de poesia “Howl and other poems”. Acusado de obscenidade, é levado aos tribunais para ser banido como obra maldita. A brilhante e exitosa defesa fica a cargo do jovem advogado libertário Jake Ehrlich. 

É isso o que você deve fazer: Amar a terra e o sol e os animais, desdenhar as riquezas, dar esmolas a todos que pedirem, defender os dementes e os loucos, dedicar sua renda e trabalho aos outros, odiar os tiranos, não discutir sobre Deus, ter paciência e indulgência com as pessoas, não tirar o chapéu para o que é conhecido ou o que é desconhecido nem a homem nenhum ou grupo de homens, acompanhar livremente as poderosas pessoas analfabetas e os jovens e as mães de família, ler estas folhas ao ar livre em todas as estações todos os anos da sua vida, examinar tudo que foi dito na escola ou na igreja ou em qualquer livro, rejeitar tudo que insulte sua própria alma, e sua própria carne será um grande poema e terá a fluência mais rica não só na forma de palavras mas nas linhas silenciosas de seus lábios e rosto e entre os cílios do seus olhos e em toda junta e todo movimento do seu corpo. (WHITMAN, 2005, p.19)




                                                               Foto:  JoJo Whilden/Oscilloscope Laboratories

Quem poderia encarnar melhor o homossexual, judeu, drogado, outsider, Ginsberg? Ninguém mais que James Franco. Seu brilhantismo se fez ver nas telas como o poeta “público”, um desses que ainda não existe até nossos tempos. Pois foi do tempo do prestigio e da força da poesia, inclusive para ser levada a um tribunal, sendo dissecada por senhores professores, advogado de defesa que viam o cerceamento da liberdade de expressão e o reflexo da ignorância literária naquela tentativa de obstrução; do outro lado, advogado de acusação e professores arrebanhados no baixo clero, afinados com a falsa moral vigente e com uma sociedade puritana em regime de consolidação. Ginsberg tornou-se, com sua vida e sua escrita um estandarte, às vezes à revelia, anti-stablishment dos anos 1950 na retrógrada sociedade americana do pós-guerra. Um ativista com causas libertárias as mais diversas, pode-se, facilmente, nomear várias em perspectiva histórica. Todas mostraram sua coragem e compromisso com o que pensava e sentia: “a censura, a barbárie da guerra, o preconceito sexual e racial, a repressão, o etnocentrismo, a destruição do meio ambiente e, sobretudo, a liberdade de expressão.1"
James Franco é um Midas no cinema. A esse filme-documentário-poema, empresta seu carisma e talento de modo a nos levar ao âmago de cada estrofe desse Uivo libertador. Sendo lido hoje, ainda pode nos ajudar superar o temor e a insólita experiência da peste que assola nossos dias. É um grito de libertação da hipocrisia e do mal estar contemporâneo, de fácil transposição para a realidade amarga mas não insuperável, que ora nos quer oprimir. Ora, somos seres de coragem que se deixam iluminar pela arte. E aqui, a arte do cinema se une à da poesia “obscena” e redentora de Ginsberg em perfeita comunhão espiritual por Franco, ao incorporar, sem dificuldades, o poeta do sofrimento e da redenção.
A maldição está apenas na forma rudimentar de afetação e juízo dos que querem destruir a arte. No tribunal o retrato da falsa moralidade, conviniente e retrógrada, aquela mesma que tanto conhecemos, a que cria monstros soltos e pássaros aprisionados. O conformismo, o macarthismo, os bons costumes e sua correspondente hipocrisia social, o consumismo e todo seu paramento: racismo, pobreza de espírito, conservadorismo e medo ao non-stablishment, têm peso e parecem impossíveis de se combater. Mas a força da palavra da poesia de Ginsburg prova o contrário. 
Referenciando Walt Whitman (“Me contradigo?/ Tudo bem então... me contradigo;/ Sou vasto... contenho multidões.”)2 dele se liberta, ou melhor, a partir daí evolui chegando aos próprios tons: "Ginsberg, com seu uivo, atualiza e radicaliza a mensagem básica do 'Poeta do Cosmos' … de que liberdade individual, liberdade sexual e de linguagem, liberdade política e poética tinham de andar lado a lado.”
Não deixei de lembrar da maldição de Oscar Wilde na sociedade londrina do século dezenove. Poderia até a querer anunciar algum traço de interseção entre os destinos? Talvez sim, talvez não.4
Ginsberg, aliás Franco, sai, com seu Uivo, "cruzando os Estados Unidos por inteiro e vivenciando manifestações coletivas da contracultura, tais como a libertação sexual, as experiências com drogas e o jazz de resistência dos guetos.5"

A leitura de Uivo foi uma descoberta que veio em imediata decorrência do filme. Sua escrita confessional, sua imagética fantástica mas, digamos real, como se encontra nos ditos loucos ou rebeldes, ele, rebelde radical tão imprescindível às metrópoles sem alma…  Afinal, também não existe amor em Nova Iorque.
Em anos distintos, cidades americanas, Nova Iorque e São Francisco, hospitais psiquiátricos, apartamentos e submundos, Franco leva em cores e em preto e branco a vida e o poema, concomitante e alternadamente, para tentar decifrar os dois e o próprio Ginsberg. Com louvor nos faz vibrar cada palavra de cada estrofe no ambiente e nas circunstâncias em que o poeta e os poemas foram concebidos, produzidos, aplaudidos e odiados. Cigarro e máquina de datilografia acompanham a busca do autoconhecimento, a superação pessoal e o encontro com a felicidade no meio do caos que tem nome e se chama Peter.

Fortaleza, 17 de maio de 2020.

Retirado de https://revistacult.uol.com.br/home/o-uivo-vivo-de-allen-ginsberg/
WHITMAN, 2011, p.129.
3 Retirado de https://revistacult.uol.com.br/home/o-uivo-vivo-de-allen-ginsberg/
4 "O girassol de Wilde, além da referência direta ao sol poente, é um símbolo comum do amor homoerótico, recorrente nos poemas de Mário de Andrade e Allen Ginsberg". (https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/57055/R%20-%20D%20-%20FRANCISCO%20ASSIS%20DE%20MATTEU%20MONTEIRO.pdf?sequence=1&isAllowed=y, p. 169).
5Retirado de:






Alguns versos e estrofes que dão início ao Uivo, no livro e no filme:

"Uivo
para Carl Solomon

I
Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,1
hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado na maquinaria da noite,3
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando so- bre os tetos das cidades contemplando jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado4 e viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas de cômodos,5
que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de Blake entre os estudiosos da guerra,6
que foram expulsos das universidades por serem loucos & publicarem odes obscenas nas janelas do crânio,
que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descascada em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestos de papel,8 escutando o Terror através da parede,
que foram detidos em suas barbas púbicas voltando por Laredo com um cinturão de marijuana para Nova York,(…)"