POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

terça-feira, 9 de maio de 2023

No meio do caminho tinha um muro



              Foto de Sara Piteira (https://www.rtp.pt/noticias/mundo/do-muro-de-berlim-as-fronteiras-vedadas-na-europa_i1166914)


A imigração deve, assim, ser entendida como um grito contínuo de manutenção da sobrevivência frente a uma ordem hegemônica que invade, arde e maltrata a condição básica da existência-sobrevivência humana.

Karen Honório



Utilizaremos a seguir os termos “migrante, migração e correlatos”, contudo deixando claro que os utilizamos no sentido empregado por Omar Aktouf de "pessoa que foge”. O correto seria chama-los de pessoas que fogem de condições injustas, adversas nas quais foram lançadas e abandonadas. Os governos dos países procurados por essas pessoas preferem a elas atribuir toda a culpa e responsabilidade pelo seu ato de fuga. É crescente a tentativa de isolamento e da construção de mecanismos para deixa-las longe e, se possível, devolve-las imediatamente ao lugar de onde vieram para não ter que com elas conviver. Quando inevitável ou ineficazes em suas tentativas de expulsão/devolução, um novo problema surge: como integra-las pois são personae non gratae e melhor seria tentar nelas evocar o sentimento de desejar o retorno ao lugar de origem? Talvez nos tempos atuais a única experiência humanitária verdadeira de abordagem de migrantes ocorreu na Alemanha em 2015, quando a chanceler Angela Merkel, com sua força política e à revelia da opinião pública, conseguiu lidar com mais de dois milhões de pedidos de asilo apresentados por migrantes que chegaram ao país de forma clandestina. Após a chegada muitos deles puderam aprender a língua e se aproximar da cultura do país, obtiveram imediatamente o direito de procurar trabalho e de por seus filhos nas escolas. Muitos provenientes desse grupo de imigrantes clandestinos passaram a contribuir para a prosperidade alemã, indo na contramão do estigma imposto em outros países europeus. Hoje se vêem exemplos de recrudescimento da rejeição de experiências como a alemã, apesar de seu relativo êxito, levando-se em conta o número de imigrantes e a situação de pressão social e política que uma suposta “invasão” teria gerado no país, inclusive fortalecendo partidos e agrupamentos políticos de extrema-direita. O Governo sueco pretende expulsar cerca de 80 mil estrangeiros que venham a ter seus pedidos de asilo negados. Em 2015, a Suécia veio logo após a Alemanha como destino de refugiados. Os migrantes que pedem asilo no país escandinavo devem ser expulsos para países que não fazem parte da União Europeia. Ao longo da fronteira da Polônia com o enclave russo de Kaliningrado uma cerca de arame farpado deve ser ainda mais reforçada. Entre a Lituânia e Belarus vigora um estado de exceção para viabilizar a retirada dos imigrantes; Entre Polônia e Belarus, por seu turno, milhares de migrantes que tentam atravessar a fronteira podem intensificar um conflito entre as duas nações vizinhas. A União Europeia acusa o ditador belarusso Aleksandr Lukashenko, um aliado de Vladimir Putin, de ser o responsável pela situação na fronteira, criando o imbróglio como represália por sanções que sofre de países ocidentais. A Coligação Nacional da direita e o Partido dos Finlandeses se unem para barrar a imigração em seu país. A Dinamarca defende um acordo entre países da União Europeia para a criação de centros de refugiados fora do continente. Uma prática chamada de “pushback" vigora em diversas fronteiras europeias para ser aplicada aos que chegam por terra ou por mar em busca de asilo. Trata-se na prática de promover a expulsão das pessoas que estão chegando na fronteira por meio de intimidação ou até mesmo praticando maus tratos e humilhações, para obstruir a continuidade da jornada. Este também é no atual momento, o caso da Itália, sob a Primeira Ministra Giorgia Meloni, declarada fã do regime de Mussolini e representante de um movimento de cariz fascista. Meloni é a primeira mulher a liderar um governo italiano e declarar estado de emergência no país, para criar as condições de facilitar a expulsão dos que chegam em busca de asilo. Em 9 de novembro de 1989 caía o muro de Berlim, símbolo da divisão do mundo e da Europa no período pós-Segunda Grande Guerra. Desde então, novos muros — físicos ou políticos estão sendo construídos. 

Nas décadas posteriores à demolição, o ocidente europeu percorreu um caminho quase contínuo de integração e paz. Horst Köhler, antigo Presidente alemão, definiu mais tarde o que aconteceu no dia 9 de novembro como o fim de um “edifício do medo” e o início de um “espaço de alegria”. Pedaços físicos de pedra viajam pelo mundo como lembrança da vitória da democracia, mas também como amuleto para a queda de outras barreiras.Os últimos trinta anos consolidaram a imagem do Muro de Berlim como símbolo de libertação. Mas foi também durante esse tempo que se construíram novos muros na Europa. Desde então, a União Europeia ergueu quase mil quilómetros de fronteiras físicas no seu território.(1)


O propósito é vedar o território europeu, tornar a Europa uma Fortaleza segura apenas para os seus. Seria essa a maneira de controle das formas de imigração ilegal? A resposta é sim para os que formam o grupo de Visegrado — Eslováquia, Hungria, Polônia e República Checa com o apoio da Áustria, Itália e Grécia. “Há décadas que barreiras físicas protegem as fronteiras físicas da Europa. Os muros de Ceuta (1993) e Melilla (1996) foram os primeiros a ser erguidos, mas outros multiplicaram-se posteriormente, cobrindo agora mais de dois mil quilômetros de território. A Bulgária, por exemplo, o país mais pobre da UE [na qual entrou em 2007], instalou uma vedação de 97% da sua fronteira com a Turquia”.(2) A fabricação de um discurso contra esses seres humanos que fogem e "migram" tem o objetivo de a eles imputar toda a culpa pelo ato de deixar seu lugar de origem em busca de dias melhores alhures, muitas vezes como única possibilidade de sobrevivência. No entanto, há de se pensar que mesmo o conceito de pessoas que migram, como se fossem aves de arribação, não corresponde ao que de fato ocorre com essas pessoas. Para Aktouf (3), um dos exemplos mais odiosos do mecanismo de fabricação da falsa consciência pode ser resumido nessa palavra, tão diluída e tão dramática:  

…aquela pela qual designamos essa nova espécie humana vagando, errante e em desespero, por todos os lugares, chamada de “migrantes”. Não passa um dia sem que nossos ouvidos sejam alcançados pelos sons estridentes desses movimentos das multidões cada vez maiores, chamadas de "migrantes", que tentam de mil e uma maneiras, cada uma mais trágica que a outra, escapar da  angústia, do terror, da morte, das carnificinas organizadas, de guerras por procuração, da devastação de multinacionais, da fome extrema, da decadência absoluta ... Eles enfrentam muros e muralhas, arame farpado e minas, balas de metralhadoras e cercas... para, como dizem ... “migrar". Mas existem apenas algumas espécies animais que migram, nenhum humano o faz. Alguns humanos podem emigrar, circular, transumar, viajar ... mas “migrar” não! Estamos perante o mais sinistro eufemismo público da história: esses pobres coitados, destituídos de tudo e ameaçados até na carne e na vida, não migram. Eles fogem! Eles fogem de condições tornadas além do desumano pela voracidade das multinacionais, pelas guerras petroimperialistas (o caso de todo o Oriente Médio, por exemplo), pelas desigualdades insuportáveis, pela ganância dos dominantes. Não se pode chamar isso de “migrar”. Mas se faz isso por um mecanismo que o meu irmão argelino Nobel de Literatura, Albert Camus, já havia denunciado na sua época: “Nomear mal é contribuir para a infelicidade da humanidade”. Hoje em dia, essa falsa nomeação se tornou um instrumento de desinformação e deformação sistemática da realidade: em vez de  chamar essas pessoas pelo que realmente são, isto é, verdadeiros "resíduos mortificados vivos", segregados por um mundo assassino de ordem econômica, por suas múltiplas consequências, por suas guerras de expansão infinita, se utiliza de um eufemismo asqueroso "tranquilizador", fazendo-os passar por caprichosos resmungões insatisfeitos com sua situação original, invejosos do sucesso alheio…Esses pobres, quase "restos humanos ambulantes”, não são e nunca foram "migrantes": eles não são mais que vítimas das consequências das ações (pilhagem, devastação climática e ecológica, guerras, saques de terras e mares…) dos partidários desta ordem mundial neoliberal agora tão insustentável quanto criminosa, cujos governantes são tão loucos e cruéis quanto insaciáveis.

 De todo modo o problema social da migração continuará pelo mundo. Tampouco é uma questão apenas europeia. Ocorre em consequência dos efeitos de desigualdades sociais, governos corruptos, guerras, catástrofes da natureza em decorrência do aquecimento do planeta, somadas à ausência de ações para mitigar os problemas locais, os verdadeiros propulsores da mobilidade voluntária e involuntária, a maioria das vezes à margem da legalidade, aos olhos nus de autoridades locais corruptas e coniventes e com a ajuda calculada de gangues de traficantes. É avassalador o crescimento do número de pessoas nessa situação desumana. Se fosse contada em termos da população de um país, seria o quarto maior das Américas, perdendo apenas para os Estados Unidos, Brasil e México. Seria um país com quase o dobro dos habitantes da Argentina, mais que o dobro do Canadá e trinta milhões a mais que a Colômbia. Fosse a população de uma nação européia, se colocaria imediatamente após a Alemanha, ocupando o segundo lugar em número de habitantes no velho mundo. Caso consideremos todos os países no mundo seriam apenas dezenove com maior número de habitantes. Essas comparações revelam a dimensão da tragédia social e humanitária de grande parte dos oitenta milhões de imigrantes, um número crescente a cada ano. Há uma década havia a metade dessa cifra atual. A quantidade de pessoas que fogem ao redor do planeta nunca foi tão grande. Muitas estão em fuga dentro do próprio país, abandonam zonas de conflito, em guerra, assolados pela fome, ou perseguição religiosa e doutras causas que têm principalmente na ação (des)humana seus fundamentos. Ressalte-se que a situação se agravou em proporções de alarme sanitário, face à pandemia em escala mundial. Somente durante o ano 2019 se somaram quase nove milhões de pessoas refugiadas, segundo a ACNUR, agência da ONU para refugiados. Esse crescimento vertiginoso da população migrante impediu qualquer comemoração em 20 de junho, Dia Mundial do Refugiado. Em lugar de comemoração apenas uma questão deve ser colocada: O que fazer  frente ao crescimento vertiginoso da população de migrantes? Dentre os muitos países que contam para esse aumento pode-se destacar a República Democrática do Congo, o Iêmen e a Síria, além da região conhecida como Sahel, uma faixa de transição no continente africano, região semiárida se estendendo da Mauritânia ao Sudão, compreendendo partes do Senegal, Mali, Burkina Faso, Argélia, Níger, Nigéria, Chade, Camarões, Sudão do Sul, Etiópia e Eritreia. Em Burkina Faso, cerca de 80 mil pessoas foram forçadas a se deslocar dentro do próprio país em 2019, número que se elevou para quase 850 mil nos dias de hoje, nesse caso, a maioria foge de milícias jihadistas. A ACNUR calcula que apenas em Burkina Faso houve um total de 300 mil novos deslocamentos internos em 2020. Nas Américas, foi na Venezuela, onde se teve a grande maioria de pessoas fugindo para outros países. Calcula-se que mais de 3,7 milhões de venezuelanos abandonaram suas casas em busca de asilo em países com os quais divide suas fronteiras ou alhures. A ACNUR também constatou que mais de dois terços dos refugiados internacionais vêm de apenas cinco países: além da Venezuela, há 6,6 milhões da Síria, 2,7 milhões do Afeganistão, 2,2 milhões do Sudão do Sul e 1,1 milhão de Mianmar. No país asiático o povo rohingya é vítima de uma limpeza étnica que resultou no êxodo em massa. Na cidade Cox’s Bazar na fronteira de Mianmar, no Bangladesh, vive cerca de um milhão de rohingyas que fugiram da repressão orquestrada pelos sanguinários militares birmaneses, o que já foi considerado mais um caso de genocídio. Antes de serem expulsos perderam a cidadania e aqueles que não lograram sair, têm a liberdade tolhida e são vítimas de atos de violência. No entanto, a maioria dos que fogem dos seus países de origem ao redor do mundo não chega tão longe: um grande número passa a viver no país mais próximo, o vizinho cuja fronteira é alcançada por longas caminhadas ou meio de transporte mais acessível, mesmo que perigoso ou muito dispendioso para os já depauperados migrantes. "E assim é que a vasta maioria - 85 por cento - de todos os refugiados procuram proteção em países pobres. 80% de todas as pessoas deslocadas estão em regiões ou países afetados pela desnutrição”.(4) Há países que receberam muitos refugiados que já não contam mais com um retorno para suas pátrias, diferentemente do que ocorria décadas atrás quando muitos retornavam. Essa nova realidade de sempre novos refugiados e deslocados, enquanto poucos retornam a suas pátrias termina por complicar a equação.

Era diferente para os refugiados nos anos 1990, quando a guerra grassava nos Bálcãs, havia uma disputa pela fronteira entre Mali e Burkina Faso ou uma guerra civil na República do Congo. Naquela época, 1,5 milhão de pessoas podiam voltar para casa todos os anos, agora são apenas 400.000 os que conseguem voltar”.(5)

A guerra na Síria dura há mais de onze anos e transformou cerca de treze milhões de pessoas em refugiados requerentes de asilo, além de outras que se deslocam dentro do seu próprio país. De um lado Venezuela, Síria, Afeganistão, Sudão do Sul e Mianmar, os cinco países que representam dois terços dos refugiados no mundo e do outro, na lista de países que mais recebem refugiados, a Alemanha, ocupando uma posição de destaque. No entanto, outros países que diferentemente dos privilegiados do Primeiro Mundo, têm sérios problemas políticos e econômicos também se vêem na contingência de abrigar muitos dos que não tiveram escolha e adentraram seus territórios. Para eles a única saída foi trocar a pobreza do seu país por outra pobreza, além fronteira. O pouco que têm os anfitriões, não chega para ser dividido, gerando intolerância e xenofobia em uma população pouco esclarecida e já cansada das próprias mazelas domésticas, o que complica ainda mais a vida dos novos moradores. Muitos transitam entre países fronteiriços, outros entre regiões; nesse caso deslocamentos dentro das fronteiras nacionais. Grandes fluxos de estrangeiros terminam ficando nos países que deveriam ser abrigo temporário como Turquia, Colômbia, Paquistão e Uganda; desses, poucos conseguem um dia retornar ao país ou região de origem. Na Turquia mais de 3,6 milhões de sírios; na Colômbia venezuelanos buscam abrigo depois de empurrados para fora de sua pátria em razão da complicada situação política e econômica: "A Colômbia é a mais atingida pela crise da Venezuela. Devido às grandes incertezas socioeconômicas e aos surtos regulares de violência no país vizinho, acolhe um grande número de refugiados venezuelanos. Em abril de 2020, havia mais de 1,8 milhão. Além disso, até setembro de 2019, quase 500.000 venezuelanos usaram a Colômbia como país de trânsito para chegar ao Equador ou outros países do sul”.(6) A saga venezuelana continua atual. Em dezembro de 2020 pelo menos vinte e um venezuelanos refugiados morreram ao tentar chegar de barco a Trinidad e Tobago. Pode haver ainda mais vítimas no grupo que saiu da cidade de Güiria, no estado venezuelano de Sucre, rumo à ilha caribenha a  apenas cerca de 15 km da costa venezuelana. Em solo paquistanês e iraniano já se encontram quase 2,4 milhões de refugiados afegãos enquanto 1,14 milhão de refugiados vivem em Uganda, país africano que recentemente passou por complicado processo eleitoral presidencial e se encontra com sérios problemas na política local. Em época de pandemia de covid-19 os problemas se multiplicaram e tornaram a luta contra o vírus ainda mais desafiadora. Como lidar com a necessidade de cuidados exigidos pela pandemia em situação de fuga, e na vida, em acampamentos de refugiados, abrigos lotados ou até mesmo na rua? Em países mais pobres, acampamentos são erguidos em regiões muitas vezes de difícil acesso para grupos de apoio, sem água potável, alimentação escassa e a falta de outros recursos básicos para a sobrevivência, já difíceis de se obter mesmo em outros tempos anteriores à pandemia. Pergunta-se sobre quem deve pagar para que esses países anfitriões possam continuar seu trabalho junto aos refugiados que recebem.

Os refugiados estão atualmente "enfrentando uma emergência dupla e inimaginavelmente grande: conflito e deslocamento, bem como a pandemia Covid-19 e a crise econômica global que ela desencadeou, disse David Miliband, presidente do Comitê Internacional de Resgate (IRC). Os países onde vive a maioria dos refugiados e pessoas deslocadas internamente estavam lutando contra a Covid-19 com recursos extremamente limitados. "Os novos números de refugiados devem, portanto, ser um sinal de alarme para todos”.(7)


A realidade dos refugiados em um cenário de pandemia acrescentou outras dificuldades aos órgãos que tentavam ajudar os atingidos e também os países anfitriões, muitas vezes já sobrecarregados com problemas domésticos. Baseado no que afirma Filippo Grandi(8), Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, não se trata mais, como em outros anos, de uma situação temporária e reversível, principalmente por conta dos conflitos nas regiões de origem que forçam a fuga, não serem debelados a tempo, impedindo qualquer tentativa ou plano de retorno. Em países do chamado Terceiro Mundo que recebem grandes contigentes de imigrantes a sobrevivência mínima é o desafio maior. E mesmo em países mais estruturados, raras experiências trazem bons resultados por meio da implementação de uma política de integração satisfatória para os que chegam já desesperançosos, sofridos e com pouca fé no futuro. Sem lar, sem trabalho e muitas vezes deixando para trás entes queridos têm que enfrentar novas barreiras no território desconhecido, uma torre de Babel, um mundo repleto de desafios e medo e a dúvida se haverá acesso à educação, à saúde e ao trabalho. A saga continua mesmo depois de ter, a duras penas, sobrevivido a longa e arriscada jornada. Uma experiência que deve ser lembrada ocorreu na segunda década deste século e vem da Europa, mais especificamente da Alemanha. Milhares de pessoas passaram por várias fronteiras até aportar no que consideravam o solo mais seguro para conquistar e superar o horror da guerra que haviam deixado para trás. Algo novo ocorria e parecia uma alternativa aos muitos fiascos da política de imigração em diferentes países, ainda que ricos e desenvolvidos. Levando-se em conta o que ocorreu com o grande fluxo migratório na Europa em consequência da guerra na Síria, a reação da Alemanha, com sua chanceler Angela Merkel, difere das experiências ruins, mal sucedidas, como por exemplo aquela que ocorreu com a onda de imigração de uma Iugoslávia em colapso nos anos 1990.

Naquela época, o pressuposto era: as pessoas vão embora de novo, se for necessário vamos deportá-las. Um erro que mais tarde teve suas consequências. Muitos ficaram, mas ninguém se importou com o que acontecia com eles. E muitos lutaram para encontrar trabalho. Se encontrassem algum, raramente ganhavam o suficiente para viver ou tinham uma pensão decente. Afinal, esse erro não se repetiu depois de 2015. Uma verdadeira indústria de integração foi construída para uma parte considerável dos recém-chegados, o que é particularmente útil na sua entrada no mercado de trabalho: cursos de línguas, pós-qualificação e formação adaptativa, promoção do reconhecimento de competências formais e informais — um conjunto de ferramentas com as quais os primeiros recém-chegados só poderiam sonhar. E assim, cinco anos após sua chegada, dois terços dos refugiados de 18 a 64 anos conseguiram emprego. Mais de 55.000 pessoas dos oito países de origem de emigração mais importantes estão concluindo um estágio, cerca de 270.000 frequentam a escola e quase 20.000 estudam em um universidade.(9)

O governo conseguia, apesar dos imbróglios políticos, a estabilidade necessária para superar os erros dos anos 1990 com a acolhida dos imigrantes majoritariamente oriundos da antiga Iugoslávia. Um novo paradigma foi criado para os recém-chegados, principalmente os que vinham das longas e perigosas jornadas por terra desde uma Síria em guerra civil, via Turquia, passando ainda por mares e fronteiras. Enquanto o país desenvolvia essas novas estruturas para a integração dos imigrantes, principalmente visando a uma consequente entrada no mercado de trabalho para uma vida futura mais sólida, outros países ainda patinavam com suas tentativas repetidas ou amadoras de fazer com que os imigrantes fossem pelo menos aceitos, evitando ataques da população cética e influenciada pelos movimentos e partidos de extrema-direita. Muitos países do Leste europeu, como Hungria, Romênia, Bulgaria, Polônia etc. recusaram-se a receber refugiados e parte deles construiu inclusive barreiras físicas para impedir a entrada ou passagem dos refugiados desesperados por seus territórios. Aqueles que conseguiam entrar eram, de preferência, enviados em comboios para outros países, principalmente Alemanha. Também em outras nações europeias como a Grã-Bretanha e países escandinavos houve barreiras físicas e resistência política à acolhida desses estrangeiros. Como a situação piorava dramaticamente na Síria em 2015, mais de quatro milhões de pessoas fugiam rumo à Europa, incluindo nesse contingente aqueles vindo de regiões como Eritreia, Iraque ou Norte da África cuja rota era pelo Mediterrâneo. 

À falta de consenso para a distribuição de migrantes através de cotas, soluções mais imediatas foram implementadas. A Hungria foi pioneira. Embora já existissem outros muros no território europeu, Viktor Orbán [Primeiro Ministro húngaro] foi o grande impulsionador da Europa Fortaleza, nome com que ficou conhecida a estratégia de fortificação das fronteiras terrestres e que engloba, agora, agências europeias, polícias fronteiriças nacionais e quilómetros de barreiras físicas. Ao mesmo tempo que os governos dos países mais afetados pela crise migratória se voltaram para o encerramento das fronteiras, a Comissão Europeia reforçou a patrulha das mesmas através da Agência Europeia para o Controlo da Costa e das Fronteiras (Frontex). A Frontex é responsável por monitorizar as fronteiras europeias e repatriar migrantes sem documentos que não sejam requerentes de asilo. O orçamento da polícia fronteiriça europeia aumentou de 6,2 milhões de euros para 333 milhões entre 2005 e 2019. Em paralelo, aumentou também o orçamento para as deportações, de 80 mil euros para 63 milhões durante o mesmo período.(10)




Na contramão dessas experiências traumáticas, a experiência positiva com a imigração de ucranianos em 2022 em diversos países europeus após a invasão russa. Quando cerca de quatro milhões fugiam em várias direções, recebiam, onde chegavam, tratamento especial e o estatuto de “proteção temporária”; uma decisão política que foi elogiada pela Comissão Europeia que, em contrapartida, proporcionou imediato apoio financeiro para os Estados-Membros acolhedores. Esta proteção temporária permitiu aos "ucranianos trabalhar, estudar, ter uma casa e se beneficiar de cuidados de saúde, sem terem de esperar anos e anos por uma resposta aos seus pedidos de asilo”(11):

 Con sus hijos en un brazo y sus pertenencias en el otro, cientos de miles de refugiados ucranianos llegan a países vecinos, donde han sido bien recibidos por los gobernantes de naciones como Polonia, Hungría, Bulgaria, Moldavia y Rumania. Si bien la hospitalidad ha sido elogiada, también ha hecho resaltar las enormes diferencias en el trato que se les da a los migrantes y refugiados de Medio Oriente y África, en especial a los sirios que llegaron en 2015. Algunas de las palabras de estos gobernantes les resultan perturbadoras y dolorosas. "Estos no son los refugiados a los que estamos acostumbrados... estas personas son europeas”, dijo el primer ministro de Bulgaria, Kiril Petkov, esta semana al referirse a los ucranianos. “Estas son personas inteligentes y educadas... No es la oleada de refugiados a la que hemos estado acostumbrados, personas de las que no estábamos seguros de su identidad, personas con pasados poco claros, que incluso podrían haber sido terroristas..."(12)

Essa afirmação claramente de cariz racista e xenófobo revela a opinião de certos líderes europeus sobre como se portar frente a diferentes grupos de refugiados, o que traz consequências práticas e soluções diferenciadas em função de suas origens.  

Sendo assim, o que podemos concluir através do comportamento europeu sobre o acolhimento a refugiados? Apesar dos discursos de paz, essa acolhida ainda é extremamente seletiva. Tal análise não parte da noção errônea de que uma vida importa mais que outra. Mas, sim, que todas as vidas importam independentemente de qual país o refugiado seja oriundo. Negar asilo a uma pessoa em situação de ameaça é negar as bases dos direitos humanos sobre garantia de vida a toda e qualquer pessoa. Nesse ponto, a invasão da Ucrânia elucidou como as soberanias europeias historicamente berço dos direitos humanos, tratam aqueles que consideram “inferiores” aos europeus e o quanto ainda precisam avançar para que de fato, os direitos humanos sejam praticados. A pergunta que fica é, por que a nacionalidade define quem tem mais chances de viver e quem tem menos? A resposta para isso, pelo o que podemos analisar no comportamento europeu, é estritamente por motivos econômicos e geopolíticos e não humanitários.(13)

Por que aquilo que pareceu ser bom para um grupo de migrantes não pode ser para um outro? Ainda que se trate de realidades distintas, esses outros fugitivos, são, como afirma Aktouf(14), igualmente vítimas das consequências das ações (pilhagem, devastação climática e ecológica, guerras, e/ou de saques de terras e mares…) de partidários da ordem mundial neoliberal e injusta, agora tão insustentável quanto criminosa, cujos governantes são tão loucos e cruéis quanto insaciáveis.

Berlim, 8 de maio de 2023.

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(1) Pinto, D. Do Muro de Berlim às fronteiras vedadas na Europa. Disponível em: <https://www.rtp.pt/noticias/mundo/do-muro-de-berlim-as-fronteiras-vedadas-na-europa_i1166914>. Acesso em: maio de 2023.

(2) Martin, M.; Ayuso, S.; Clemente, Y. El País, Madri. Estes muros que nos dividem. Courrier Internacional. Portugal: TIN, n. 327, p. 20 — 22.

(3) Aktouf, O. Prefácio. In: A. C. R. Tupinambá. Sobre Pessoas e Lugares Distantes. Polis & Plebeu. Fortaleza, 2022.

(4) Jakob, C. Fast 80 Millionen auf der Flucht. Disponível em: <https://taz.de/Jahresbericht-UNHCR/!5696225/>.  Acesso em: dez. 2020.

(5) Christoph, M. “Es scheint, als ob wir verlernt haben, Frieden zu schliessen”. Disponível em: <https://www.br.de/puls/themen/welt/weltweit-menschen-auf-der-flucht-100.html>. Acesso em: dez. 2020.

(6) UNO Flüchtlingshilfe. Dispon.vel em: <https://www.uno-fluechtlingshilfe.de/hilfe-weltweit/kolumbien/>. Acesso em: dez. 2020.

(7) Jakob, C. Fast 80 Millionen auf der Flucht. Disponível em: <https://taz.de/Jahresbericht-UNHCR/!5696225/>. Acesso em: dez. 2020.

(8) idem.

(9) Deutschland und die Flüchtlinge: Wie 2015 das Land veraenderte. Dispon.vel em: <https://www.dw.com/de/deutschland-und-die-flüchtlinge-wie-2015-das-land-ver.nderte/a-47459712>. Acesso em: dez. 2020.

(10) Pinto, D. Do Muro de Berlim às fronteiras vedadas na Europa. Disponível em: <https://www.rtp.pt/noticias/mundo/do-muro-de-berlim-as-fronteiras-vedadas-na-europa_i1166914>. Acesso em: maio de 2023.

(11) Carreta, D. A ilusão da Fortaleza europeia. Il Foglio, Milão. Courrier Internacional. Portugal: TIN, n. 327, p. 22-23.

(12) Brito, R. Europa recibe a refugiados ucranianos; a otros, no tanto. Disponível em: <https://apnews.com/article/noticias-e380e6eca92a44400d011bb8fda9b137>. Acesso em: maio de 2023.

(13) MigraMundo Equipe. Guerra na Ucrânia evidenciou preconceito étnico e acolhida seletiva a refugiados. Disponível em: https://migramundo.com/guerra-na-ucrania-evidenciou-preconceito-etnico-e-acolhida-seletiva-a-refugiados/ , 24 de fevereiro de 2023. Acesso em: maio de 2023.

(14) Aktouf, O. Prefácio. In: A. C. R. Tupinambá. Sobre Pessoas e Lugares Distantes. Polis & Plebeu. Fortaleza, 2022.