POLIS

POLIS
O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

GEÓRGIA: INSTABILIDADE NO PARAÍSO(1)

 

  Protestos na Geórgia contra a prisão do ex-presidente Mikhail Saakashvili

Quando Deus fez a distribuição dos países e todos os povos se reuniram para isso, os georgianos tinham acabado de celebrar um outro festival. Eles beberam e cantaram e assim esqueceram que tinham um encontro com Deus. Mas Deus ficou tão comovido com a felicidade e entusiasmo pela vida daquele povo que lhe deu a área que havia realmente reservado para si mesmo. E assim o povo georgiano veio para seu país, que chamou de Sakartvelo […](2)



O nome Sakartvelo (como os georgianos denominam seu país) surgiu no início da Idade Média e deriva do "mítico pai fundador Kartlos, um descendente do filho de Noé, Jafé. E 'Geórgia', o nome que se popularizou no mundo todo, remonta ao persa e originalmente significa: 'A terra dos lobos'. Os Cruzados transformaram a Geórgia na terra de São Jorge. Eles pensavam erroneamente que este santo, muito venerado na região, cristianizou o país. Viajantes europeus do século 17 suspeitavam, de forma igualmente equivocada, que o nome derivava do grego Georgos, o agricultor de terras aráveis".(3) Uma terra que teve apenas uma curta experiência de independência em sua história do século XX, quando em 1918 fez sua primeira declaração como República Democrática da Geórgia, teve seu fim com a invasão ilegal do Exército Vermelho em 1921. Invadida e ocupada pelas tropas do ditador Stalin a então recém-nascida República Democrática da Geórgia passou a integrar a União Soviética em 1922 juntamente com a Armênia e o Azerbaijão; desejo e vocação independentista do povo georgiano foram então atropelados pelos tanques de guerra soviéticos. Tratou-se, portanto, de uma anexação que se seguiu a uma ocupação militar. Houve um levante em 1924, quando já não se podia falar muito de uma verdadeira resistência, o que se agravou com o crescente terror stalinista.(4) O país que pertence, juntamente com Armênia e Azerbaijão ao bloco caucasiano de ex-repúblicas da URSS deixou também, em 2008, de fazer parte da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), que surgia em 1991 como sucessora direta da União Soviética, contudo sem ter atribuições de Estado. Com os anseios separatistas de duas de suas regiões (Ossétia do Sul e Abkhazia), testemunhou-se, neste mesmo ano (2008), a escalada de um conflito inicialmente nacional na Georgia, ameaçada em sua frágil soberania. Provando-se ainda uma força de intervenção regional, a Rússia interveio no imbroglio político reconhecendo a independência dos dois novos países que emergiam, a contragosto, no espaço territorial da Geórgia. A entrada das tropas georgianas em Tskhinvali - capital da Ossétia do Sul deveria significar o domínio sobre a província separatista; conflito este que se espalhou para a província da Abkhazia, que igualmente lutava por sua independência. "Estes dois conflitos também remontam aos tempos soviéticos. A lógica era simples: se a Geórgia se separasse da URSS, Abkhazia e Ossétia do Sul reivindicariam sua independência. Os primeiros confrontos começaram ainda na época do regime soviético. Após o fim do regime comunista, a tensão reprimida se tornou uma guerra declarada. A Rússia apoiou os separatistas com armas, dinheiro, apoio logístico e soldados, e exerceu um papel decisivo na derrota das forças georgianas”.(5) O fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), há duas décadas ainda não significou a conquista de autonomia e paz nos países que daí emergiram. Um Acordo de Associação com a União Europeia (UE) assinado em 2014 reafirmou a aproximação da Geórgia com o bloco mas não significou avanços significativos para a estabilidade e democracia no país. A Georgia, paralelamente aos conflitos separatistas que acompanham a sua história recente de nação soberana continua revivendo velhos conflitos internos regados a grande incerteza política que deixa a população sem esperança de um futuro melhor. Já em 22 de novembro de 2003, manifestantes ocupavam pacificamente o parlamento georgiano forçando o então presidente Eduard Shevardnadze a renunciar no dia seguinte, no âmbito do que se denominou a Revolução Rosa. Revolução Rosa ou Revolução das Rosas, movimento pacífico e popular que retirou do poder o presidente do país. Tratou-se de um movimento popular espontâneo e legítimo ou de um golpe com a interferência do ocidente? "A então maciça suspeita de falsificação nas eleições parlamentares foi, em última análise, o gatilho para a chamada 'Revolução Rosa'.  […] Como não houve violência, a oposição falou de uma 'revolução de veludo' ou, segundo o símbolo dos grupos de oposição, a 'revolução das rosas". As forças de oposição venceram as eleições recém-anunciadas no início de 2004 com uma grande vantagem. Foi um momento histórico para o pequeno país do Cáucaso: o presidente Eduard Shevardnadze renunciou e deixou o poder para os três jovens políticos, Mikhail Saakashvili, Nino Burjanadze e Zurab Schwania. A mudança de poder em novembro de 2003, conhecida como “Revolução das Rosas”, foi uma mistura de espontaneidade e preparação cuidadosa. A mídia ocidental comentou com muita benevolência essa mudança. Mas também existem outras vozes. O Wall Street Journal relatou em 24 de novembro de 2003: “Por trás dos três políticos [Saakashvili, Burjanadze e Schwania] estão inúmeras organizações não governamentais [...] que surgiram desde a queda da União Soviética. Muitas dessas ONGs são apoiadas por fundações da América e de outros países ocidentais que estão produzindo uma classe de jovens intelectuais de língua inglesa que anseiam por reformas pró-Ocidente […](6) Essa jovem elite que a Revolução Rosa levou ao poder na forma do “Movimento Nacional Unido”, sob a liderança do presidente Mikhail Saakashvili, realizou extensas reformas e se declarou pioneira das reformas econômicas liberais na região. "Nos três anos seguintes, as reformas no Estado e na economia logo deram ao país a reputação de modelo de estudo do Cáucaso do Sul e taxas de crescimento econômico de dois dígitos. A dura repressão ao suborno na polícia e na administração, a liberalização da economia e a introdução de impostos fixos baixos logo produziram sucessos visíveis na forma de alto crescimento do investimento estrangeiro […] Oito anos após a Revolução Rosa, a euforia do despertar democrático há muito se perdeu e a decepção está se espalhando entre a população. Os críticos reclamam que as reformas na arena política se mostraram muito menos convincentes e que o governo queria fortalecer o pluralismo político e as reformas do Estado de direito seguiram-se com muito menos entusiasmo. Além disso, apenas alguns setores econômicos selecionados e participantes do mercado se beneficiaram com a liberalização econômica do país".(7) O ex-presidente Mikhail Saakashvili encontra-se, mais uma vez, no centro das atenções e é a razão de protestos de milhares que saem às ruas e exigem sua libertação, acusando o governo de mante-lo em prisão política. "Com gritos como 'Liberdade para Misha!', Milhares de pessoas pediram a libertação do ex-presidente Mikhail Saakashvili em um comício no centro da capital da Geórgia, Tbilisi […] O maior partido da oposição, o Movimento Nacional Unido (ENM), fundado por Saakashvili em 2001, convocou os protestos".(8) O presidente que ficou no poder entre 2004 e 2013 e buscou seguir um curso pró-Ocidente foi condenado a seis anos de prisão, à revelia, por abuso de poder, o que ele nega e diz ser uma acusação com motivação política.(9) Saakashvili teve seu apogeu em 2003, ao chegar ao poder como parte da Revolução Rosa. Hoje como voz de protesto na prisão diz que se a Georgia quer se tornar uma civilização, todos os georgianos precisam de reconciliação e de rejeitar atos da vingança. Quando um novo período eleitoral se avizinhava com eleições parlamentares planejadas para acontecer em 2012 não havia tanta certeza de uma pluralidade política e igualdade de condições no pleito. Segundo Yasmin Pumuk,(10) isso acontece apesar de se saber que, particularmente em tempos de crise, um país precisa de todas as cabeças pensantes de que disponha: "Portanto, é importante que a liderança de hoje entenda que a competição política é um elemento importante para a força inovadora do país, mas também do partido no poder. A liderança de um país cresce e se aprimora com a competição política e não com o monismo”.(11) Se há um interesse verdadeiro em seguir o caminho rumo à Europa, reformas institucionais e mudanças políticas para viabilizar uma cooperação com a União Europeia são essenciais. Do contrário, a Georgia continuará com as costas voltadas à Europa e presa a um passado de relações anacrônicas e perigosas com o gigante vizinho russo.

______________________________________

(1) O título é uma referência atualizada ao artigo: BAETZ, B.; HUFEN, U. Das verunsicherte Paradies. Disponível em: <https://www.deutschlandfunk.de/eine-lange-nacht-ueber-georgien-das-verunsicherte-paradies.704.de.html?dram:article_id=427882>. Acesso em: 2018.

(2) BAETZ, B.; HUFEN, U. Mito fundador dos georgianos. Disponível em: Das verunsicherte Paradies. Disponível em: <https://www.deutschlandfunk.de/eine-lange-nacht-ueber-georgien-das-verunsicherte-paradies.704.de.html?dram:article_id=427882>. Acesso em: 2018.

(3) idem

(4) Compare: BAETZ, B.; HUFEN, U.  Disponível em: Das verunsicherte Paradies. Disponível em: <https://www.deutschlandfunk.de/eine-lange-nacht-ueber-georgien-das-verunsicherte-paradies.704.de.html?dram:article_id=427882>. Acesso em: 2018.

(5) LIRA, F. Percepções de ameaças e lealdades internacionais na Eurásia. Disponível em: <https://www.anpocs.com/index.php/papers-36-encontro/gt-2/gt28-2/8167-percepcoes-de-ameacas-e-lealdades-internacionais-na-eurasia/file>. Consultado em: 2012.

(6)KÚCHHOLZ, J. Die Rosenrevolution in Georgien: Ausdruck der Demokratie oder ein von den USA erkaufter Putsch? (Arbeitspapiere des Osteuropa-Instituts der Freien Universität Berlin, Arbeitsschwerpunkt Politik, 49-3). Berlin: Freie Universität Berlin, Osteuropa-Institut Abt. Politik, 2005. Disponível em: <https://nbn-resolving.org/urn:nbn:de:0168-ssoar-439943>. Acesso em: 2011.

(7) PAMUK, Y. Wandel und Kontinuität. Acht Jahre nach der Rosenrevolution in Georgien. Friedrich Naumann Stiftung, p. 1-2. Disponível em:  <https://core.ac.uk/download/pdf/71736003.pdf>. Acesso em: 2011.

(8) OERTEL, B. Disponível em: <Freiheit für Saakaschwili!https://taz.de/Proteste-in-Georgien/!5808251/>. Acesso em: 2021.

(9) Compare: Freiheit für Saakaschwili gefordert. Disponível em: <https://www.tagesschau.de/ausland/europa/demonstrationen-georgien-101.html>. Acesso em 2021.

(10) PAMUK, Y. Wandel und Kontinuität. Acht Jahre nach der Rosenrevolution in Georgien. Friedrich Naumann Stiftung. Disponível em:  <https://core.ac.uk/download/pdf/71736003.pdf>. Acesso em: 2011.

(11) idem


sexta-feira, 15 de outubro de 2021

O racismo que nos assola a cada dia (1)



Rosa Parks fotografada pela polícia norte-americana



[…] Aqueles que professam favorecer a liberdade e, no entanto, depreciam a agitação, são homens que querem colheitas sem arar o solo, querem chuva sem trovões e raios. Eles querem o oceano sem o terrível rugido de suas muitas águas. Essa luta pode ser moral, ou física, e pode ser moral e física, mas deve ser uma luta. O poder não concede nada sem uma demanda. Ele nunca fez e nunca fará. Descubra exatamente a que qualquer pessoa se submete silenciosamente e você descobriu a medida exata de injustiça e injustiça que lhes será imposta, e elas continuarão até que sofram resistência com palavras ou lutas, ou com ambos. Os limites dos tiranos são prescritos pela resistência daqueles a quem oprimem… Se algum dia nos libertarmos das opressões e dos erros cometidos sobre nós, devemos pagar por essa libertação. Devemos fazer isso pelo trabalho, pelo sofrimento, pelo sacrifício e, se necessário, com nossas vidas e com a vida dos outros.

Douglas (1857). (2)



Ruby Bridges nasceu em 1954, ano em que o Tribunal Constitucional norte-americano determinou oficialmente o fim da discriminação escolar baseada na raça. A partir daí, negros e brancos deveriam ter acesso ao estudo nas mesmas escolas. A menina Ruby parece ter nascido nesse ano para se incumbir da hercúlea tarefa que se avizinhava: mostrar aos seus compatriotas que era possível negros e brancos viverem juntos, em pé de igualdade. No entanto, protegida por policiais, sua histórica escalada às escadarias da escola só para brancos, a William Frantz Elementary School, em 1960, para frequentá-la como primeira menina negra, não resultou, como se esperava, em passos firmes em direção ao fim do famigerado racismo que ainda hoje grassa na sociedade norte-americana.

Louisiana, nos anos 1960, experimentava o início do processo de “dessegregação”, ampliando os movimentos de luta por direitos civis dos negros estadunidenses. A recusa de Rosa Parks, em 1955, de ceder seu lugar, em um  ônibus,  para uma mulher branca resultou em sua prisão, mas seu gesto foi marcante para a sociedade norte-americana conservadora e segregacionista: "O Civil Rights Act fora sancionado, havia pouco tempo, pelo agora presidente Lyndon B. Johnson. Muita violência, morte, prisão e humilhação, haviam se passado, desde que, em 1955, uma negra, Rosa Parks, se recusara a ceder o seu assento em um ônibus a um branco, na cidade de Montgomery, no AlabamaAo subir no ônibus e pagar a passagem, sentou-se na primeira fileira de assentos reservados para negros. Como havia pessoas brancas em pé, o motorista resolveu mudar o sinal de "colored" ("pessoa de cor”) para atrás da fileira onde Parks estava e exigiu que os passageiros negros sentados se levantassem para que os brancos pudessem sentar-se. Rosa recusou-se a seguir a orientação exdrúxula do motorista e por isso foi acusada de violar a lei de segregação do código da cidade de Montgomery, apesar de não ter se sentado em um assento reservado para brancos.  Seu gesto de resistência foi a centelha de um movimento que culminaria com o reconhecimento de direitos civis dos afro-americanos. Em socorro a Parks, que fora presa por sua ousadia, apresentou-se um jovem e desconhecido pastor que atendia pelo nome de Martin Luther King. No ano de 1964, King seria laureado com o Prêmio Nobel da Paz”. (3)

É preciso ativar a memória para o conteúdo e o tom dos discursos históricos de um dos mais influentes líderes no combate ao racismo e pela garantia de direitos civis, Martin Luther King, que, reagiu à arbitrariedade contra Rosa Parks. Entretanto, antes mesmo do caso Rosa Parks, um ato do Poder Judiciário restringia o acesso e ocupação de qualquer propriedade a pessoas “não brancas”. A decisão da Suprema Corte foi resultado do caso Shelley v. Kraemer (1948) sobre a reivindicação desse direito: "O curioso nisso é que o caso que abriu o caminho para essa jurisprudência, em meados dos anos quarenta do século passado, envolveu a atriz Hattie McDaniel, que interpretou a escrava doméstica Mammy em “E o Vento Levou”. Seus vizinhos “caucasianos”, no luxuoso condomínio de Sugar Hills, em Los Angeles, não queriam tê-la e a outros atores negros de sucesso adquirindo imóveis nas redondezas”. (4)

"Eu não posso acreditar no que você diz, porque eu estou vendo o que você faz” é uma referência feita pelo escritor James Baldwin, que também fez parte de movimentos anti-racistas nos Estados Unidos dos anos 1960, à canção de 1964 "I Can't Believe What You Say (For Seeing What You Do)" de Ike Turner.(5) A frase consegue traduzir seu ceticismo sobre justiça dos brancos frente aos negros no cotidiano do seu país: “A segregação é não-oficial no Norte e oficial no Sul, uma diferença crucial que não faz nada, ainda assim, para aliviar muitos dos Negros do Norte”;(6) “A gente fica nessa posição impossível de ser incapaz de acreditar em uma palavra que os compatriotas dizem". De volta do seu exílio europeu ("Deixei a América porque duvidava de minha capacidade para sobreviver à violência do problema da cor”) lá estava Baldwin, participando ativamente do movimento dos direitos civis ao lado de nomes como Malcolm X e Martin Luther King Jr., tornando-se uma das vozes mais influentes do movimento. Era o auge da luta pelos Direitos Civis das pessoas negras, quando em 1964 "o presidente Lyndon B. Johnson, tinha assinado a 'Lei dos Direitos Civis', depois do assassínio de John F. Kennedy. A nova legislação proibia, pela primeira vez, a discriminação racial, religiosa e de género no acesso a emprego, a escolas, a espaços públicos ou ao direito ao voto".(7)

A memória histórica da resistência ativa sublinha a saga de Malcom X; seu discurso de radicalidade despertou a consciência afro-americana, pondo abaixo o conceito de supremacia branca, dominante em várias regiões naqueles anos de chumbo do racismo e do poderio branco. Malcom X foi responsável e inspirador para o surgimento de novos grupos e lideranças que lutavam, sem concessões, para que a causa dos direitos civis dos negros continuasse na agenda dos direitos civis ampliando sua recusa visceral do conceito e das práticas funestas da supremacia branca que dominava várias regiões entre os anos 1950 e 1960, inclusive com a volta de manifestações da Ku Klux Klan.(KKK). Foi após a promulgação da lei contra a segregação nas escolas públicas que permitiu Ruby subir as escadarias de uma delas, que surgiram novas ações violentas da organização criminosa pró-supremacia branca.

Em um dado momento da década de 1960, Rosa Parks disse a um jovem estudante branco de 22 anos, Bob Zellner, (que mais tarde também se tornaria um líder na luta por liberdade e igualdade racial) para se envolver efetivamente no movimento: "'Bob, você não pode estudar o problema racial para sempre', ele se lembra dela dizendo. 'Você tem que eventualmente tomar uma posição, e você tem que agir’”.(8) O pedido de Martin Luther King para que as pessoas voltassem às bases, trabalhassem localmente e alavancassem o movimento tocou esse jovem branco de família envolvida com a KKK, levando-o ao coração da luta por direitos civis dos negros.  O então jovem estudante a que nos referimos nasceu no estado do Alabama em 5 de abril de 1939; um estado conhecido por seu segregacionismo, racismo com marcante presença da KKK e cuja constituição, até os dias atuais ainda exige "escolas separadas para crianças brancas e negras”. "Algumas pessoas no Alabama dizem que, como a linguagem não tem força legal, isso realmente não importa. Mas as palavras têm significado - mesmo que sejam apenas simbólicas e não legalmente aplicáveis ​​- especialmente em uma época em que as escolas públicas são mais segregadas do que em qualquer momento desde os anos 1960 e as políticas de escolha de escolas favorecidas pelo presidente Trump e pela secretária de Educação, Betsy DeVos, têm por objetivo aumentar a segregação escolar”.(9) Palavras têm mesmo poder; foram exatamente as palavras proferidas por Martin Luther King e Rosa Parks que tanto impressionaram Bob e contribuíram para mudar sua vida: "É importante lembrar o que aconteceu há 50 anos, mas estamos ouvindo as palavras do Dr. King: 'Volte para o Mississippi, volte para Mobile, Ala., Volte para Danville, Va’”.(10)  "O discurso 'I Have A Dream' chamou a atenção do mundo. Mas o que realmente ressoou em Zellner foi a convocação de King para a ação. 'O que o Dr. King disse há 50 anos é que você tem de voltar para os estados e trabalhar', diz ele, 'e foi isso que fizemos’".(11)  Quase impensável que um nativo branco do sul do Alabama vivendo com parentes envolvidos diretamente com a Ku Klux Klan se aproxime e se engaje no ativismo negro. No entanto foi exatamente o interesse pelo movimento pelos direitos civis que o aproximou desse ativismo, enquanto ainda estava na faculdade. "Para sua tese final, ele tentou entrevistar os líderes dos direitos civis Rosa Parks, Martin Luther King e o líder sindical do Alabama E. D. Nixon […]”.(12) Enquanto estudante sua aproximação se deu quando escrevia, como parte de uma tarefa acadêmica, um artigo sobre as consequências do boicote aos ônibus de Montgomery, um movimento liderado por Rosa Parks com a ajuda de E. D. Nixon. O que significou para esse jovem branco, então com 22 anos, se engajar, de corpo e alma, na campanha pelos direitos civis?  "Para Zellner […] significava se rebelar contra os valores de sua comunidade. Embora o pai de Zellner tivesse deixado a KKK, a maioria da família ficou do lado dos segregacionistas e os rejeitou. Sua mãe, uma professora, e seu pai, um pastor, decidiram não deixar seu ganha-pão para se juntar ao movimento. No entanto, Zellner se juntou a ativistas afro-americanos em manifestações organizadas pelo SNCC [Student Nonviolent Coordinating Committee — Comitê Coordenador Não Violento dos Estudantes] e pelo Comitê Nacional de Coordenação dos Direitos Civis com a mensagem de King em mente. O Fundo Educacional da Conferência Sul ajudou a formar um projeto anti-racismo entre negros e brancos”.(13) As palavras de Rosa Parks que sensibilizaram Zellner continuam fortes e atuais: "algo terrível vai acontecer bem na sua frente e você terá que tomar uma decisão. Não escolher é uma escolha”. Bob escolheu não fugir à luta. 

Já o programa radical de Stokely Carmichael, ativista do Black Power(14) e porta-voz dos Panteras Negras (15) inspirou-se, sobretudo, no nacionalismo negro de Malcolm X: Carmichael representava uma militância afro-americana em meados da década de 1960 e recusava qualquer luta pela integração do negro à sociedade norte-americana (branca), dando prioridade ao cumprimento de agendas político-identitárias negras radicais cada vez mais transnacionais. Não compactuava com o reformismo de Martin Luther King a favor da inclusão dos negros nos marcos da cidadania norteamericana. “Carmichael e o Black Power voltaram-se, então, às reivindicações separatistas de Malcolm X por autodeterminação e poder político para os afroamericanos e suas comunidades por 'quaisquer meios necessários’”. (16)

O racismo nunca erradicado, desde então recrudescente no cotidiano dos EUA já não se deixa escamotear. As diferentes mídias registram barbaridades que se pensavam esgotadas, uma vez inadmissíveis na dita maior “democracia” do planeta. Os episódios extremos de racismo que se acumulam nos mais diversos setores da vida norte-americana são revelados a seco pelas mídias sociais e se espalham rapidamente pelo mundo causando perplexidade e revelando a face brutal e vergonhosa do Tio Sam, que se queria oculta para continuar agindo de forma truculenta. Nem mesmo a eleição de Barack Obama em novembro de 2008, o primeiro presidente negro de toda a história dos EUA, representou o fim de um longo e árduo processo de luta por emancipação dos afro-americanos; representou apenas um passo conjuntural em direção a uma sonhada igualdade racial que ainda não chegou.

Entretanto, a história que se quer avivar hoje não se passou nos já distantes anos de 1950 ou 1960. George Floyd, de 40 anos, morreu asfixiado por um policial branco pressionando o joelho sobre seu pescoço. As imagens da barbárie são do dia 25 de maio de 2020 e são aviltantes, causando indignação por todo lado do planeta. Apesar dos apelos de George, sentindo que sua vida se esvaía ao ser completamente sufocado; o policial branco, impávido, cumpriu sua sórdida tarefa de racista e homicida: matou George. Seria esse policial apenas mais um eleitor de Donald Trump que se considera investido da missão de tirar a vida de um semelhante? A súplica de George para não ser morto, I can’t breathe (“Não consigo respirar”, em português), teve o mesmo som daquela em 2014 de Eric Gardner em Nova York, outro homem negro assassinado por um policial branco que não sofreu qualquer punição pelo crime. Ações dessa natureza são parte de um sistema de justiça racializado que tem alvo certo. A violência policial é uma das principais causas de morte entre jovens nos Estados Unidos, onde, segundo estudos do Mapping Police Violence (17) (Mapeando a violência policial), os negros têm três vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que os brancos. 

Nos Estados Unidos, George Floyd, homem negro de 40 anos; no Brasil, João Pedro, menino negro de 14 anos. George não foi acusado de qualquer crime, mas era negro. João Pedro brincava em casa, dentro de sua casa; mas era pobre, negro e morava em uma favela. No Complexo do Salgueiro no município fluminense de São Gonçalo, foi atingido no peito, dentro de casa, por um tiro de arma de fogo. A repercussão internacional do caso Floyd reforça também, no Brasil, a luta  por justiça para casos como o de João Pedro. Em Minneapolis, as ruas são ocupadas, prédios incendiados e milhares de cidadãos, não somente negros, reivindicam justiça, exigindo a prisão dos culpados pela tragédia que resultou na morte de George Floyd. A frase de George suplicando para que não o matassem I can’t breathe (Eu não consigo respirar) é repetida nos protestos de rua em diferentes cidades. Em função do crescimento dos protestos,  Derek Chauvin, o policial que sufocou sua vítima até a morte foi detido, mas seus três colegas que participaram com ele da ação desastrosa continuavam soltos. As manifestações atuais vêm mostrando outras cores. A multidão é composta por tons diferentes e, em muitos casos, formadas por maioria branca, o que quase não se via nos protestos da década de 1960. “É disso que se trata nessas manifestações de protesto pela morte de George Floyd, em Minneapolis (EUA). Gente de toda cor de pele está farta de tolerar a leniência das autoridades [...] em relação a policiais que achincalham, torturam e matam pobres, imigrantes ilegais e negros”.(18) “[...] leis e decisões judiciais que vão de encontro a interesses dominantes em uma determinada sociedade só ‘pegam’ após muita luta, muita obstinação e coragem daquele que, por elas, podem ter suas situações de exploração ou opressão pelo menos mitigadas”.(19)


__________________________________________________________________________________________________

(1)  Reescrito a partir de texto publicado originalmente no “Memórias de quarentena – Adufc”. Disponível em: <http://adufc.org.br/2020/06/10/memorias-de-quarentena-23-o-racismo-nosso-de-cada-dia/>. Acesso em: out.  2021.

(2) Traduzido do original em inglês de Frederick Douglass. EMANCIPAÇÃO NA ÍNDIA OCIDENTAL, discurso proferido em Nova York, em 3 de agosto de 1857. Disponível em: <https://rbscp.lib.rochester.edu/4398>. Acesso em: 10 mai. 2020. 

(3) STARLING, S. (2020). A nigger que me mostrou a neve. Os Divergentes. Disponível em: <https://osdivergentes.com.br/outras-palavras/a-nigger-que-me-mostrou-a-neve/>. Acesso em: jun. 2020.

(4) idem

(5) Baldwin, J. A Report from Occupied Territory. Disponível em: <https://www.thenation.com/article/archive/report-occupied-territory/>. Acesso em: 2019.

(6) idem

(7) James Baldwin. Ninguém sabe o meu nome. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/james-baldwin-ninguem-sabe-o-meu-nome/>. Acesso em: 2019.

(8) Solis, S. Bob Zellner took stand against his white community's values. Disponível em: <https://www.usatoday.com/story/news/nation/2013/08/19/march-on-washington-bob-zellner/2646627/>. Acesso em: 2019.

(9) Strauss, V. FYI, Alabama’s constitution still calls for ‘separate schools for white and colored children’. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/news/answer-sheet/wp/2017/03/10/fyi-alabamas-constitution-still-calls-for-separate-schools-for-white-and-colored-children/>. Acesso em: 2020.

(10) Solis, S. Bob Zellner took stand against his white community's values. Disponível em: <https://www.usatoday.com/story/news/nation/2013/08/19/march-on-washington-bob-zellner/2646627/>. Acesso em: 2019.

(11) idem

(12) ibidem

(13) ibidem

(14)  Expressão criada por Stockley black power (poder negro) após sua 27ª detenção, em 1966: “Estamos gritando liberdade há seis anos… O que vamos começar a dizer agora é poder negro”.

(15) Os Panteras Negras (Black Panther Party for Self-Defense) foi criado em 1966 pela comunidade negra para a sua proteção em face das arbitrariedades a que era submetida na sociedade racista e segregacionista norte-americana.

(16) GOULART, H. R. de P. Entre os Estados Unidos e o Atlântico Negro: o Black Power, de Stokely Carmichael (1966-1971). Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo: 2019, p. 15.

(17) O banco de dados americano mais compreensivo sobre assassinatos por policiais. Disponível em: <https://mappingpoliceviolence.org>. Acesso em: 10 mai. 2020.

(18) STARLING, S. A nigger que me mostrou a neve. Os Divergentes, 2020. Disponível em: <https://osdivergentes.com.br/outras-palavras/a-nigger-que-me-mostrou-a-neve/>. Acesso em: jun. 2020.

(19) idem

terça-feira, 17 de agosto de 2021

A incerteza no país dos Talibãs

 

Tropas afegãs nas ruas das principais cidades do país (foto: HOSHANG HASHIMI / AFP).




Pode-se falar de boa intervenção ou de guerra justa? Guerra deve sempre ser evitada e, se inevitável, deve ser abreviada e o menos traumática possível. Intervenções são atos colonizadores e imperialistas que nunca trazem benefícios a curto, médio ou longo prazo para as populações e nações atingidas. Um dos maiores problemas dos Estados Unidos ao invadir países como o Afeganistão, além do próprio ato de agressão que pressupõe a invasão, é a indiferença e o desconhecimento que têm do povo e da cultura locais. Não foi diferente com o que causaram ao Vietnã e em consequência tiveram a grande e merecida derrota. Aliás, toda invasão é pretensiosa, arrogante, desumana e tem interesses essencialmente políticos e econômicos. Tampouco foi diferente com a invasão russa nos anos 1980 (A invasão russa  ao Afeganistão em 1979 resultou em uma guerra que durou por dez anos — até 1989) no país que atualmente produz 90% das drogas de ópio do mundo e criou uma multidão de viciados. Essas nações poderosas invasoras desconhecem, portanto, os países que invadem e mentem ao afirmar que o objetivo da invasão é humanitário ou visando à recuperação ou promoção da democracia local. Trata-se de ações imperialistas, um imperialismo que se "torna um empreendimento reduzido à violência física, expansão ilimitada e subjugação sem limites”.(1) 

O jogo na geopolítica mundial que envolve o Oriente deve sofrer drásticas mudanças com a retomada de poder pelos talibãs no Afeganistão. A entrada da China nesse jogo será mais rápida e certa do que se imagina. É claro que a ajuda ao novo regime no Afeganistão passará por várias dimensões e exigências de Pequim. Uma delas será assegurar a estratégica de continuar oprimindo o povo Uigure. A pequena fronteira chinêsa mais ocidental com o país tem do seu lado esse povo separatista, também muçulmano. A China não quer nem pensar que os Uigures venham a receber qualquer apoio ou estímulo talibã para sua legítima vocação separatista. Por outro lado, a agenda estadunidense mais atual de conter a ascensão do poderio da China parece estar ameaçada com o novo papel da superpotência asiática em face do vácuo deixado pelos rivais americanos. O combate ao terrorismo e o controle dos países produtores de petróleo que dominavam os interesses e ações dos Estados Unidos foram substituídos pelo objetivo de tirar da China o protagonismo mundial e o crescimento de sua influência no mundo em contrapartida à onipresença americana. Ademais, não se pode ignorar a zona de influência de Moscou que deve surgir paralelamente a essa entrada dos chineses diretamente no jogo dos talibãs. Ao contrario da China, que tem apenas alguns quilômetros de fronteira com o Afeganistão, a Rússia tem várias de suas ex-repúblicas dividindo largas fronteiras com o país. Há, portanto, que temer o terrorismo islâmico e a potencial influência talibã nessa região e nesses países fronteiriços. Isso seria um problema real para a Rússia que tem grande influencia sobre esses países, inclusive com presença e suporte militar. Um talibã fortalecido com influência nessas repúblicas é tudo o que a Rússia quer evitar. 

As guerras e os desmandos que nasceram da intervenção britânica, seguida pela soviética e finalmente pela americana geraram o progressivo e atual caos do país e a presença determinante do exército religioso fundamentalista talibã.  Não por menos é o Afeganistão conhecido como o "cemitério dos impérios”, pois ao longo do tempo, essa "sucessão de potências estrangeiras tentou e não conseguiu estabelecer influência e controle sobre o país e transformá-lo em um trunfo:  o Reino Unido (Século XIX), a ex-URSS ( Século XX) e os EUA (século XXI). Todos tentaram domar e transformar o país em um ativo estratégico. Todos, sem exceção, sentiram um alto grau de decepção no final".(2) Saem os Estados Unidos, entram os chineses, voltam os russos e uma única certeza: uma grande insegurança e pavor sobre o futuro do país e de sua população. Principalmente aquela esperança, mesmo que limitada, de mudanças para uma vida minimamente segura e sem as ameaças fundamentalistas dos ditadores talibãs, o que poderia compensar as perdas pela presença dos invasores, foi posta em cheque e está cada vez mais remota com a derrota americana, com a retomada do controle talibã e com o abandono da população pelos governos do Ocidente.

Apesar de se dizerem vitoriosos e de serem os atuais senhores da nação por terem derrotado os americanos, há outros temas que não podem ser esquecidos ou negados. No vale de Panjshir, a noroeste do país, formou-se uma resistência anti-talibã liderada por Ahmad Massoud. Quase 9.000 combatentes, incluindo membros de milícias locais e pessoal oriundo das forças de defesa afegãs que foram dissolvidas se reunem sob a liderança de Ahmad Massoud e Amrullah Saleh em sua base no vale de Panjshir. Além de ainda haver focos pontuais como este de não reconhecimento da vitória taleban, o ex-vice-presidente Amrullah Saleh afirmou ser, por direito, o presidente interino do Afeganistão na ausência de Ashraf Ghani. Salhe cita a constituição do Afeganistão e diz que na ausência, fuga, renúncia ou morte do presidente, torna-se o presidente interino. Além de continuar no país, tem feito esforços para manter-se em contato com diferentes líderes locais para garantir o apoio necessário e o consenso para sua difícil mas desejada missão de substituir o presidente que já se encontra fora do país.

  Assim como ocorreu com a presença indesejada da Grã-Bretanha e da União Soviética, os EUA não deixam um país melhor do que aquele que encontraram antes da invasão. A pergunta que todos fazem é: o que vai acontecer após a retirada das forças militares estadunidenses? A triste e assustadora resposta é que ninguém sabe, com clareza, o que virá. Uma grande incerteza tomou conta do país. Some-se a essa incógnita o temor da população que, por experiência anterior, receia o que pode resultar de um governo capitaneado por um grupo de fanáticos que já se provou brutal, violento e opressor. Resta saber se há espaço para alguma esperança de mudança e progresso em líderes que se guiam por leis religiosas fundamentalistas e sempre desconheceram civilidade e humanismo. O que significa, por exemplo, para o porta-voz do Talibã, Zabihullah Mujahid a promessa de proteger os direitos das mulheres "dentro dos limites" da lei islâmica? Além de um discurso público, pouco tem sido feito para garantir esses direitos. A primeira e única prefeita do país, Zafira Ghafari relatou seu medo de ser perseguida e assassinada pelos extremistas que agora governam o país e afirmou estar à espera da sua chegada para possivelmente matar pessoas como ela. É, para mulheres como a prefeita e milhões de outras no país, desesperador, pois não há quem as possa ajudar e tampouco têm para onde ir para evitar uma iminente tragédia.


Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, 17 de agosto de 2021.

______________________

1)"Gradualmente a opinião pública associou guerra, conquista, violência e subjugação à prosperidade e ao bem estar social. Firma-se na década de 1920 uma memória coletiva sobre um passado glorioso de conquistas heróicas. Essa memória induziria guerras e invasões dentro do próprio continente europeu, decisões políticas impulsivas e irracionais que causariam crises econômicas internas e luta de classes". (Abu-El-Haj, J. Os dilemas da democracia representativa na era digital: será que a nova direita é uma forma embrionária do totalitarismo?).

2)Vasconcelos, S. O futuro incerto do Afeganistão. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/colunistas/sueli-vasconcelos/2021/08/02/noticia-sueli-vasconcelos,1291974/o-futuro-incerto-do-afeganistao.shtml>. Acesso em: 17. Ag. 2021.

sábado, 10 de julho de 2021

Em dez anos de independência há muito pouco a se comemorar no Sudão do Sul

                                             BZ Bildische Zeitung


    A mais nova nação do planeta se separou do Sudão predominantemente muçulmano em 9 de julho de 2011 e se constituiu como um país  soberano e majoritariamente cristão. A tão sonhada independência veio após a realização de um plebiscito com resultados esmagadores a seu favor: de um universo de 3.793.572 votantes, 3.734.280 votaram pela independência, 44.830 pela permanência no Sudão unido, além de 6.194 votos em branco e 8.268 nulos. Após proclamada sua independência, o Sudão do Sul vai cada vez mais mergulhando em uma interminável guerra civil que já lhe custou mais de 400.000 vidas. Guerra e fome ameaçam a grande maioria da população da jovem e antes, esperançosa nação. Logo depois de ratificada a independência se iniciam os confrontos entre o exército nacional e as milícias levando os sul-sudaneses à situação de penúria atual. Essa guerra de milícias está nas mãos de vários grupos étnicos e obriga as pessoas a fugir aos confrontos. Para tentar se salvar da violência e do caos, milhares atravessam as fronteiras para países vizinhos ou se deslocam internamente.

        Há também a incapacidade governamental de proteger a população, o que muitas vezes leva algumas milícias a ocupar esse espaço de defesa. Foi o que ocorreu na cidade de Yambio, ao sul do país, cujos moradores se organizaram em forma de milícia para se defender de um grupo religioso evangélico armado que atacou a cidade e sua população em nome de um fanatismo religioso importado de além fronteira. 


Em 2005, o Exército de Resistência do Senhor (ERS) –uma violentíssima milícia cristã vinda da República Centro-Africana– cruzou a fronteira e atacou os moradores.[…] "Foi terrível. Eles queimaram as casas. Estupraram as mulheres e obrigaram as crianças a matar seus pais. Muita gente teve a boca e as orelhas cortadas […] Eles levaram muita gente, crianças e mulheres, que nunca mais voltamos a ver desde aquele ano.” (1) 


        A cidade quase foi extinta pela guerra. De 8.000 habitantes que lá viviam restaram menos de 2.000. A milícia que conseguiu expulsar o ERS da região se integrou ao exército e protege a cidade para onde, aos poucos, parte da população sobrevivente retorna. Como resultado dessa guerra tribal e genocida ainda restaram muitas crianças soldados. “'Aqui temos uma geração inteira de crianças soldado'. É outra característica dessa cidade. 'Quando você cruza com uma criança na rua, é bem provável que tenha sido soldado até recentemente.' Cerca de 60% das crianças que vivem nesta localidade do Sudão do Sul participaram da luta armada".(2)

        Na guerra entre o exército sudanês e diferentes milícias quem mais perde são as crianças. Como uma praga que se espalha por diferentes regiões e tira a paz dos sul-sudaneses, cresce a ação dessas gangues/milícias que disseminam a prática de transformar crianças em idade escolar em soldados. Geralmente são recrutadas e até mesmo sequestradas de suas famílias para integrar as milícias locais e assim ajudar esses mercenários nos combates, principalmente contra as tropas do governo. 

        A cidade de Wau Shilluk fica na região norte do estado do Alto Nilo e tem parte significativa da população formada por pessoas que se deslocaram internamente fugindo de conflitos. Soldados armados cercaram a comunidade de Wau Shilluk e indo de casa em casa  removeram à força todos os meninos com mais de 12 anos para integrar seus exércitos milicianos.(3) Em Yambio, que foi o centro de confrontos armados e deslocamentos generalizados em 2016 não é muito diferente. Muitos menores continuam sendo forçados a lutar com o grupo armado Movimento de Libertação Nacional. No entanto não se trata de algo particular dessas cidades ou região, este é um cenário muito comum pelo país. Meninos, meninas e até mesmo famílias inteiras (quando não são mortas para deixarem as crianças sozinhas) são recrutados ou sequestrados. "Em muitas ocasiões as crianças aderem voluntariamente à guerrilha. 'Embora essa palavra, voluntariamente, deva ser colocada entre aspas', diz o funcionário do Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância]. 'As crianças que aderem o fazem como uma saída, em busca de um futuro. Elas ficaram sozinhas ou não têm meios para comer e são obrigadas a ser soldados para uma milícia.'”(4)

        A luta para libertar essas crianças das milícias e reintegra-las na sociedade é lenta e complicada. Recentemente mais de uma centena delas foram libertadas com apoio do Unicef. Desde o início do conflito foi registrado o desligamento de mais de três mil menores de grupos armados. A libertação é apenas o primeiro passo e apesar de fundamental para essas crianças soldado, elas ainda terão que passar por muitos desafios até conseguir superar o passado sombrio e se recuperar dos traumas que viveram na guerra. Algumas, ainda com apenas 10 anos, enfrentarão muitos desafios ao tentar voltar a uma vida comum em cidades destruídas e sem ter mais suas famílias. Muitos estigmas que as pessoas constroem e fazem questão de manter sobre quem elas são por conta do seu passado junto às milícias, além de muitas vezes continuarem dependentes dos seus antigos comandantes, mesmo depois de se desligarem das milícias, são algumas das batalhas a serem vencidas para esse retorno à vida que toda criança merece ter. 


Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, 10 de julho de 2021.

___________________________

(1) Carretero, N. “Eu sou uma criança soldado”. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/10/internacional/1533901618_963321.html>. Acesso em 10 jul. 2020.

(2) idem.

(3) Hunderte Kinder im Südsudan gekidnappt. Disponível em: <https://www.dw.com/de/hunderte-kinder-im-s%C3%BCdsudan-gekidnappt/a-18287833>. Acesso em 10 jul. 2021.

(4) Carretero, N. “Eu sou uma criança soldado”. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/10/internacional/1533901618_963321.html>. Acesso em 10 jul. 2020.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Violência e desespero no Reino de eSwatini.

              
  Mapa do Reino de eSwatini



Na África, a última monarquia absolutista se chama Reino de eSwatini. No pequeno Estado que se localiza na fronteira entre Moçambique e África do Sul e que até há poucos anos tinha o nome de Suazilândia raramente se viam protestos nas dimensões dos que ocorrem atualmente. Em eSwatini não são permitidos partidos políticos, "a dissidência política e o ativismo cívico e trabalhista estão sujeitos a punições severas sob a lei de sedição e outras. Mais problemas relacionados aos direitos humanos incluem impunidade para as forças de segurança e discriminação contra mulheres e pessoas LGBT +".(1)

Todo esse cerco não evitou a organização de protestos nas últimas semanas que têm se tornado cada vez mais violentos, principalmente nos dois principais centros urbanos do país, Mbabane (a capital) e Manzini (a maior cidade), com cerca de 76 mil e 110 mil habitantes, respectivamente. Em consequência dos protestos, as duas cidades se encontram sob controle militar e com acesso restrito à internet.

Nessa última monarquia absoluta da África também reina a intolerância. As manifestações que iniciaram em maio após a morte de um estudante de direito de 25 anos por membros da força de segurança nacional sinalizam um futuro sombrio para os cerca de 1,3 milhão de habitantes de um reinado coroado de corrupção e desmandos patrocinados pela corte. A enorme família real de Mswati (15 esposas, 23 filhos e cerca de 200 irmãos) enriquece às custas da corrupção e dos “métodos inescrupulosos da monarquia”. No poder desde 1986, Mswati não consegue evitar as críticas que vêm de todos os lados por conta do seu punho de ferro e por seu estilo de vida luxuoso num país em que dois terços da população vivem abaixo do limiar de pobreza. Um pedido reforçado pela ONU para promover e proteger os direitos humanos, "incluindo a garantia do direito às liberdades de expressão, reunião e associação pacíficas e participação na condução dos assuntos públicos”(2) soa para o déspota como algo inaceitável. Os confrontos que se alastram pelo reino já causaram várias mortes e dezenas de feridos, segundo relatos de ativistas pró-democracia. "Oito manifestantes foram mortos a tiro em Manzini, a cerca de 40 quilómetros da capital, Mbabane, disse o porta-voz da Rede de Solidariedade da Suazilânia, Lukcy Lukhele, citado pela agência France-Presse, acrescentando que 28 manifestantes foram atingidos por tiros".(3) 

O monarca não quer ver seu poder absoluto sendo questionado. Para mante-lo, se utiliza de força desproporcional, com a liberação de soldados e policiais armados atacando civis desarmados; lança mão de toda sorte de assédio e intimidação por meio das forças de segurança, garantindo a repressão a protestos que reivindicam mudanças no reino e no Estado. A meta da realeza é manter privilégios a qualquer custo: enquanto seus súditos amargam salários de fome "'o monarca aproveita a receita do Estado como se fosse seus benefícios pessoais' como explica Mario Masuku, presidente do Movimento Democrático do Povo Unido (Pudemo), que, como todos os partidos políticos do país, está proibido desde 1973”.(4)  Criar as condições necessárias para dificultar a vida dos manifestantes e da população e manter o status quo estão como principais pautas da agenda do rei e seus asseclas.

Uma das últimas monarquias absolutistas no mundo e a última na África, eSwatini enfrenta essa acentuada disparidade de riqueza entre autoridades do governo (incluindo o rei Mswati III) e o povo. 


Cinquenta anos atrás, em 6 de setembro de 1968, o ex-protetorado britânico da Suazilândia conquistou sua independência. As comemorações foram antecipadas para 19 de abril, aniversário de 50 anos de Mwsati. Estima-se que 8,8 milhões de dólares foram gastos no festival (o produto interno bruto de 2016 foi de 3,3 bilhões de dólares). Taiwan fez uma doação de US $ 1,3 milhão (a Suazilândia é o último país africano a ter relações diplomáticas com a nação insular). O grande restante vem dos fundos públicos e dos fundos de pensão dos súditos.(5)


Os gastos astronômicos com o Jubileu de Ouro só expôs as diferenças que existem entre a exploração do nacionalismo e da cultura local, motivo de orgulho da população e sua grande frustração com um governo que oprime e rouba as chances de futuro de uma população majoritariamente jovem. 


"Há um imenso orgulho da cultura suazi e as pessoas pareciam ansiosas em compartilhá-lo [no Jubileu de Ouro]" […] "Mas elas também estavam ávidas para compartilhar sua fúria com um governo que prioriza gastos e enriquecimento pessoal em detrimento da prosperidade do país". O país proíbe a criação de partidos políticos de oposição, e os cidadãos podem ser punidos por criticar o governo ou o rei.(6)


Enquanto a família real ostenta e uma porção de empresários se beneficia de mão-de-obra barata e facilidades econômicas para os negócios no país, o escasso acesso a empregos formais e a falta de oportunidades econômicas empurram a população para uma pobreza da qual dificilmente sairá. Trabalho forçado, inclusive de crianças é parte do dia a dia do reino, sem descartar a sua vasta presença em atividades diversas nas comunidades ou nos campos que pertencem à realeza. 


“Ele tira o dinheiro do povo. Ao mesmo tempo, as nossas ruas estão em ruínas, as crianças não vão à escola, os aposentados recebem uns poucos 35 euros cada três meses - quem pode viver com isso? Precisamos de hospitais. Nossas clínicas não possuem nenhum medicamento. Se você for lá, você não pega nenhum remédio. Mas o rei quer construir um novo prédio do parlamento. Não precisamos de edifícios grandiosos - precisamos de infraestrutura para as pessoas,” afirma Meluleki Simelane, um comerciante local.(7)


Espera-se que a descontrolada violência de Estado, que arranca  das ruas e de suas casas principalmente pessoas jovens, levando-as muitas vezes à morte ou a prisões arbitrárias, receba o repúdio internacional, e seja combatida também pelo governo sul-africano, maior parceiro comercial de eSwatini, que também desempenha grande poder político e econômico no país com o qual divide amplas fronteiras. É urgente o apoio a projetos como a "Rede de Solidariedade na Suazilândia” comandada por Lucky Lukhele, que faz campanha pela democracia e corajosamente age no país avesso a organizações políticas, inimigo dos direitos humanos e que se encontra há tempos sitiado pela arrogância de uma família real predadora. Somente com essas várias frentes de ação nacional e internacional pode-se evitar que uma solução para a crise de governabilidade não seja artificial e brutalmente  alcançada com métodos autocráticos; pela mão de ferro da realeza e do governo corruptos.


                                    Dançando em homenagem ao rei. 

                                    Tanzen für den König. (Foto: Siphiwe Sibeko/ap)


Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, 7 de julho de 2021.

___________________________

(1) Freedom in the world 2020. Eswatini. Disponível em: <https://freedomhouse.org/country/eswatini/freedom-world/2020>. Acesso em: 7 jul. 2021.

(2) Violência em  Eswatini é “profundamente preocupante”, diz escritório da ONU. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2021/07/1755772>. Acesso em 7 jul. 2021.

(3) Protestos no Reino de eSwatini deixam vários mortos e feridos, dizem ativistas. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/protestos-no-reino-de-eswatini-deixam-v%C3%A1rios-mortos-e-feridos-dizem-ativistas/a-58112936>. Acesso em: 7 jul. 2021.

(4) Vicky, A. Absolutismus in Swasiland Mswati III. feiert, seine Untertanen leiden. Disponível em: <https://monde-diplomatique.de/artikel/!5521720>. Acesso em: 7 jul. 2021.

(5) idem.

(6) Galloway, L. O país que ganhou um novo (porém antigo) nome. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/vert-tra-47273303>. Acesso em: 7 jul. 2021.

(7) Genth, J. Wut auf Eswatinis König wächst. Disponível em: <https://www.tagesschau.de/ausland/proteste-eswatini-101.html>. Acesso em: 7 jul. 2021.