POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Saadat Hasan Manto, um amante da liberdade!





Não digam que cem mil hindus ou cem mil muçulmanos foram massacrados. Digam que duzentos mil seres humanos foram assassinados. 

Manto




Índia sob o domínio britânico. Pouco mudou no quadro de abusos e sujeição da maior parte da população. Onde meninas (muitas ainda crianças) eram apenas uma posse da família, usadas como moeda de troca,  vendidas ou condenadas a um destino de submissão e desprezo, pouco mudava. 

O filme MANTO (2018) começa com a exposição crítica dessa "permissividade tradicional" indiana que facilitava abusos infantis, principalmente de jovens mulheres, ou apenas meninas. Encontrado no mundo hindu e muçulmano esse material humano fácil mas valioso para os pais podia, em alguns casos, ser a salvação, a saída de uma miséria familiar permanente. 

É, inicialmente apenas um roteiro de Canto, um filme dentro do filme, mas que já inicia denunciando o viés machista e permissivo encoberto e viabilizado por tais "tradições". 

Pois Canto também foi um reconhecido roteirista.

Antes de tudo um escritor de talento que reverbera suas queixas sociais, impensáveis para aquela época e região, por meio da película ou do papel. Talvez o eurocentrismo de então impedia o mundo de ver o valor desse homem das letras, comparável a qualquer grande escritor ocidental e superando muitos em verso, prosa ou criação literária. No roteiro que abre o filme com outro filme regional contundente, com base em um de seus contos, revelação inicial do porvir de uma obra e de uma vida de sucessos, medos e fracassos. A arte cinematográfica que também assinou lhe rendeu, mais que sua literatura, uma  amizade verdadeira com o ator principal daquela Índia que já começava a despontar com sua arte bollywoodyana. Amizade que se prolongaria por toda a vida do ator, até sua morte prematura aos 42 anos.

Saadat é muçulmano. É feminista, humanista, antifundamentalista e ainda tem outras destas qualidades dos que lutam no lado difícil da vida, quase impensáveis naquele mundo segregado e controlado por um pensamento predominantemente retrógrado e colonialista. Antifundamentalista e fundamental para aquela sociedade indopaquistanesa impregnada de desigualdades de toda sorte, e ainda vítima da praga do império britânico que exacerba e perverte-a sem piedade. “'As histórias de Manto eram radicais em seu próprio tempo e ainda são radicais ', diz o autor e acadêmico Preti Tanuja. 'Manto não foge da ideia de que as mulheres têm necessidades sexuais e sua própria visão sexual que não tem nada a ver com estar apaixonada por outra pessoa."1

Por isso sempre nas garras do judiciário. Como libertário, questionando os preconceitos e valores estabelecidos, os efeitos de governos de déspotas e de um  império falido que dava as ordens em uma casa antiga mas ao mesmo tempo em formação e em desintegração; uma sociedade ainda contaminada pelo pensamento de castas e de predominância religiosa que censura e persegue, e, portanto, confronta-o por sua letra crítica e combativa. Perseguição que se dá de varias formas, fosse pelos já existente “haters" nas críticas dos leitores de jornais, na vizinhança, nas atrocidades dos representantes britânicos e sua truculência. 

Manto estudou na Universidade Muçulmana de Aligarth e se mudou para Bombai, onde trabalhou como editor de uma revista de cinema "Musawwir (painter), quando também escreveu roteiros para cinema. Aos 22 anos quando chegou em Bombai já revelava na sua escrita indignação com os maus tratos dispensados  às mulheres, sobretudo àquelas marginalizadas,  como as que se prostituíam. Impensável para qualquer homem da classe média se preocupar com esses seres invisíveis. Perguntava-se porque somente aos homens era dado o direito de ser livre.  Pergunta que hoje parece ser óbvia, mas que então era revolucionária e conhecia o rechaço pela maioria. Mulheres eram apenas previsíveis nas suas virtudes e o seu lugar pré-determinado, um adereço que deveria se submeter ao homem e, descartada se não alinhada à rígida norma e aos preceitos religiosos e sociais. Não importa qual fosse a figura masculina que sobre ela exercesse autoridade: irmão, pai, avô, vizinho, Imã ou Guru e principalmente marido. Conflito cultural indo-britânico sobre o papel sexual feminino teve um amplo espectro e perdurou por todo o período colonial com influências até os dias atuais. "Tanto o colonialismo quanto o nacionalismo indiano predominante estavam envolvidos em projetos patriarcais distintos, mas inter-relacionados.”2 Qual seria, portanto, o valor da mulher prostituta em uma sociedade patriarcal no modelo indiano contaminada pela moral vitoriana?  

    Enquanto isso, Canto ousava apoiar pleitos impensáveis no imutável mundo das desigualdades prescritas e estabelecidas. Fosse o caso dos direitos de desvalidos, marginais, ou a liberdade de ação e de escrita de uma improvável amiga lésbica, sem esquecer de seu já insistente apoio à emancipação feminina em geral. Sim, já na sua escrita estariam esses seres invisíveis em lugar de destaque, e portanto, condenado a uma crítica ferrenha e perseguição implacável, inclusive judicial.

Com a mulher, filhas, amigos..., alguém na estação ao esperar seu trem; no cotidiano cru da metrópole, cria suas histórias; na observação do mundo que o cerca e a que pertence. Às vezes, pois crítico da sociedade indiana dividida e hiperconservadora faz dela poesia, onde só se espera o retrógrado, o óbvio e o concreto. A espontaneidade do criar em qualquer lugar, situação ou ambiente tem porém raízes na sua sensibilidade, perspicácia, inteligência e na leitura de grandes autores. Nada lhe escapa, ninguém de valor pode ser esquecido, nada lhe passa despercebido, ao longo de suas andanças, na amplitude de suas leituras e observações, ou no recôndito de sua alma, de sua vida familiar.


"Aqueles que querem que o império britânico saia são loucos, 

Graças a eles nós progredimos

Antes, os corpos só eram enterrados.

Agora, todos são numerados. É fácil de identificar.


Você também pode notar outros números.

Por exemplo, sapato número 36, número de telefone 444507, apólice de seguro 225689, túmulo da mãe 4817," diz com sua ironia habitual. 


Numa cena do cotidiano, com sua mulher numa sapataria de um muçulmano, se tem propriamente o inicio do filme com cenas sobre ao movimento de libertação da Índia do jugo britânico, bem como do alcance da sangrenta divisão entre hindus e muçulmanos, divisão essa que questiona e credita ao nefasto fundamentalismo religioso, do qual foge e combate. Não por menos, seu melhor amigo, por toda a vida é um ator hindu, que em pouco tempo, na altura dos grandes conflitos interreligiosos no país e também na cidade de Bombai em que vivem, testemunhará a fuga abrupta e indesejada de Manto para aquela que seria a república anfitriã dos muçulmanos perseguidos, independente se quem para lá foge, como ele, seja um libertário e antifundamentalista. Pois como chegaria a responder ao amigo, antes de deixar involuntariamente a pátria que preza, a cidade que ama, sua ida era uma atitude de autopreservação: ” — mas você não é um típico muçulmano! — Sim, mas sou o suficiente para ser perseguido e morto…”

Afinal de contas, queriam um Hindustão hindu, livre de muçulmanos, apesar do Gandhi pacifista e contra a divisão de um Estado por conta de diferenças religiosas. Irmãos, para Gandhi, antes de serem hindus ou muçulmanos, humanos; mas se transformariam em inimigos dentro de uma Índia independente.


"Você nascerá em uma Índia livre”, diz ao filho ainda no ventre da mãe, sem contar que iria experimentar, daqui a pouco, uma decepção de não poder viver onde queria. A Bombai, terreno fértil de sua literatura, precisava ser abandonada a tempo de poder sobreviver à ira dos independentistas. Viria a ser aquele “pássaro de asas partidas” como se queixaria mais tarde, pois já não mais pertenceria, integralmente, a nenhum dos dois mundos: um Hindustão que não lhe acolhia mais e um Paquistão que se tornaria, segundo o roteiro dramático da história filmada, pátria por convicção mas também hostil, perseguidora e sufocante. Como disse nosso escritor, a libertação da Índia e a criação do Estado muçulmano, o Paquistão, não significaram liberdade para nenhum dos dois povos. Ambos continuavam presos e perseguidos em seus novos países.

No primeiro aniversário da independência, em agosto de 1948, Manto já se sentia persona non grata nos estúdios indianos para quem trabalhava. Afinal de contas, como se dizia, havia muitos muçulmanos ali, e esses deveriam ser substituídos por hindus nessa nova Índia. Uma situação que ia se acirrando também nas ruas das cidades. Onde seria seguro passar se os bairros começavam a delinear fronteiras e “controle" de entrada e saída por religião, resultando em perseguições entre irmãos?

E tudo vira literatura de protesto: ”Onde os ossos serão queimados e enterrados depois das águias comerem a carne?" —Pelo amor de Deus, deixe de transformar tudo em literatura! Eles não são personagens de suas histórias. Eles são o meu povo. Eles vivem e respiram. — Ou a vida de todos é importante ou nenhuma é… —É muito fácil para você dizer… e escrever essas coisas. —Não. Não é. — Aqueles malditos muçulmanos! — Eu sou muçulmano também Shyam. Se houvesse uma rebelião aqui, é possível que você me mataria. —Sim, é possível…

 

—O que está fazendo? Ficou louco? Nem todos os muçulmanos estão fugindo para o Paquistão. Logo você… Meu amigo. Escute, você não pode ir. Não vou deixar. Você não é um muçulmano completo. —O suficiente para ser morto. (…) —Meu amigo…  Desculpe pelo que lhe disse. — Não se preocupe, Shyam. Você teria se arrependido mais se tivesse me matado.

 

E a seguir se juntou ao êxodo muçulmano de milhões  para o novo Estado, Paquistão, sob o olhar piedoso e arrependido do amigo Shyam.


Em Lahore, 1948, testemunha por um passante a notícia da barbárie do assassinato de Gandhi com três balas no peito, perpetrado, apesar de toda a tristeza causada, para seu alívio, por um hindu. As ondas de migrantes por todos os lados, os milhões de sobreviventes dos conflitos mortais, corpos depauperados pelas ruas, nenhum sinal de paz iminente. 


Na nova pátria, o Paquistão, continua sendo a matéria prima de sua escrita a paisagem e seus sobreviventes, a vida, os conflitos da alma e da sociedade. Afinal de contas, uma escrita carnal, intimista, para a qual a máquina de escrever, esse instrumento moderno não tem serventia, pois o barulho atrapalha seus pensamentos. Melhor usar a caneta, o lápis e caligrafar para poder voar com as palavras. Afinal, não se pode pensar que aquilo que escreve com lápis haverá de ser apagado por qualquer um…

— Não acredito que tenha se mudado para cá! — Bombai vive dentro de mim.

Mas em um país que vai se formando com uma política draconiana, sectária e reacionária, a fome será o destino dos que escrevem sobre liberdade e desejam a emancipação humana. Na construção desse novo Paquistão e seu projeto de Estado teocrático não cabem escritores que confrontem o estrito status quo, o modus vivendi muçulmano médio sem criatividade, sem tolerância e com pouco senso de liberdade. Difícil para Manto se fazer aceito, ser tolerado pelo sistema que já começa distópico. —Senhor Manto, as suas histórias sempre mostram empatia com as mulheres. Por quê? —Por todas as mulheres. Um pouco para aquela que não se vende, mas ainda está sendo comprada. Mas um pouco para as que trabalham toda a noite e dormem durante o dia e acordam assustadas… toda vez que sonham com a velhice batendo na porta. Essa prostituta pode ser minha heroína. 


Difícil é mesmo ser escritor em uma terra que vai se moldando à maneira de uma ditadura e seguindo os contornos e desenhos dos seus arquitetos fundamentalistas. Se na Índia britânica a perseguição lhe ocorria com frequência, no Paquistão ela vai se firmando e a cada texto que é publicado, se reafirmando. Perseguido e mal pago por seu trabalho, Manto, o escritor, é empurrado para crises existenciais, alcoolismo e pessimismo.


—Viva o Hindustão , Viva o Paquistão! No meio desses lemas, muitas perguntas foram levantadas. Quando éramos escravos, sonhávamos com a liberdade. Agora que somos livres com o que vamos sonhar? Qual é o meu país? Por que essas pessoas estão sendo mortas? Todas essas perguntas têm respostas diferentes. Uma resposta indiana e uma resposta paquistanesa. Uma resposta hindu e uma resposta muçulmana. Alguns buscam respostas nos escombros da revolta de 1857. Alguns culpam a Companhia das Índias Orientais. E outros vasculham os restos do Império Mongol. Todos buscam no passado enquanto os assassinos de hoje ainda estão matando. Vou aguentar as suas reclamações ao ler esse artigo e ficarei quieto. Mas na revolta hindu-muçulmana, se alguém fosse me matar, cada gota do meu sangue choraria. Eu sou um artista. Não gosto de feridas insignificantes e hematomas sem sentido. Quando mergulhei no mar de sangue  que homens derramaram de outros homens encontrei algumas pérolas: de lágrimas, arrependimento e vergonha. Eu as escrevi em meu novo livro e lerei três parágrafos: 


Enganado

“Você me vendeu gasolina com preço de mercado negro, mas era tão impura que não queimou nenhuma loja.” 


Perdão.

“Cortando a barriga, a faca deslizou abrindo o estômago. Cortou as cordas e as calças caíram. O assassino fez uma oração ao olhar para o homem nu. Eu cometi um erro“


E a última história é chamada de Necessidade de descanso.

“Ele não está morto. Ainda há um pouco de vida. Esqueça, meu amigo. Estou cansado.”


— Sr. Manto, acho que suas história são deprimentes e niilistas. Uma pessoa teria vontade de se matar ao lê-las. —Jovem, você não pode saber como os outros se sentem. Então a partir de agora, fale por si mesmo. 


Thanda Gosht, uma história que desperta o ódio dos extremistas e sua horda de seguidores iletrados (vide um excerto desta história no final do texto), revela apenas o que se passa na intimidade de um casal. A hipocrisia reinante não permite trazer à luz do dia sensações vivida numa alcova. Ou não a leram, ou não alcançam seu entendimento e seguem a turba de execráveis perseguidores de escritores e artistas, que como Manto pregam o conhecimento, a verdade e a liberdade. Nada disso deve parecer estranho para nós; nada disso é desconhecido para nós brasileiros, pois vivemos em um país com um governo fascista (vide a comprovada perseguição feita a movimentos e pessoas antifascistas); temos, dentre outros, uma ministra do obscurantismo (ocupando a pasta de Direitos Humanos), secretários de Estado com projetos de inspiração nazista (por exemplo, os sucessivos ocupantes da Secretaria de Cultura e seu atual subordinado, o presidente da Fundação Palmares) etc., todos agindo em consonância com regimes antidemocráticos a exemplo do Paquistão. Já vimos a prova de semelhante hipocrisia em diversos níveis e setores do nosso governo com respaldo de diversos extratos da população raivosa e alienada. 

    República Islâmica, o Paquistão deveria ter se moldado como um Estado muçulmano secular para evitar o domínio do fundamentalismo religioso em suas instituições.  No entanto a religião passou a fazer parte do Estado, da sua constituição e do seu judiciário, todos estão cercados pela demagogia islâmica, a exemplo do que vimos no julgamento de Canto. Hoje em dia, grande parte do currículo educacional também está influenciada pela ideologia islâmica: "até mesmo as teorias científicas conseguem de algum modo se inserir na religião. A religião tornou-se um modo de vida. Cada doação feita à caridade acaba nos cofres das instituições religiosas. A vida sem religião é impensável. Embora a única racionalidade para o Estado paquistanês seja ser um país muçulmano, este deveria ser um Estado muçulmano secular. Quando o Estado foi formado em 1947 a população não era fundamentalista, mas com o passar do tempo o Paquistão adotou uma ideologia islâmica que hoje dá a estes fanáticos uma base mais favorável para a promoção de seu sonho de ter um país islâmico".3 


No Paquistão, que significa “terra dos puros”, no mesmo idioma urdu que dá voz ao seu maior escritor, ainda em seu início como nação independente já não havia liberdade de expressão e mesmo alguns que se diziam progressistas vendiam a alma pela sobrevivência ou pagavam o preço por sua pouca inteligência e sensibilidade: ”Manto é um escritor humano, que viu a podridão da humanidade. Mesmo assim, ele escolheu o caminho do sensacionalismo. Em suas histórias no Siyah Hashiye, ele parece estar roubando tocos de cigarros e anéis de defuntos. Manto, os progressistas estão implorando que melhore a sua escrita e traga mais intensidade emocional.”


A um desses, Manto diz: -Nadeen, você é meu amigo, não a minha consciência…”


Ao se defender sozinho em tribunal, questiona um dos seus acusadores que se apresenta inebriado pelos ares rarefeitos de suas crenças primitivas: —Você disse que as pessoas deveriam ser poupadas de ler Thanda Gosht. — Exatamente. Se alguém se atrevesse em ler em público, cuspiriam na cara dele. Se lerem em particular, suas consciências ficarão impuras. — Quando leu o final da história… — A primeira parte foi tão repugnante que… Meu Deus do céu. — “Sua boca tocou na minha. Sua língua entrelaçou com a minha. Seu amor me engoliu. Seu abraço me apertou. (…). O que acha desse verso? — Onde você achou essa sujeira? — O poema também é obsceno? — Certamente. —Então o poeta também é? —Claro. O que está querendo que eu diga? —Que, para entendermos a literatura, devemos entender o contexto. Um escritor não pode ser julgado por uma palavra ou linha, mas por seu trabalho completo. É importante que a literatura mude com o tempo. Para sua informação o verso era de Khwaja Mir Dard. 


"Quer estivesse escrevendo sobre prostitutas, cafetões ou criminosos, Manto queria impressionar seus leitores, [queria dizer] que essas pessoas de má reputação também eram humanas, muito mais do que aqueles que ocultavam suas falhas com um véu espesso de hipocrisia” (Ayesha Jalal).



"Eu nasci em um lugar que agora é a Índia. Minha mãe está enterrada lá. Meu pai também. Meu primeiro filho, Aarif, também está enterrado lá. Mas a Índia não é mais o meu país. Meu país agora é o Paquistão. Como meu país, fui dividido pela liberdade. Você pode imaginar o que é a liberdade para um pássaro com as asas cortadas.”


O reencontro com Shyam só o revela um sentimento de fracasso pessoal comparado ao êxito do grande amigo. Isso aprofunda ainda mais sua crise existencial. Pior: Está por vir um veredito de culto à pornografia no seu romance e isso poderá ser seu fim. Há o alcoolismo que compensa a espera e aplaca o desespero pelo fracasso do artista que cultua a liberdade e está na iminência de perde-la. 

—Eu me sinto impotente, Safia. “Não sou uma música ou uma melodia. Sou a voz da minha derrota.” —Toda a sua empatia é para seus personagens? —No fim, tudo o que resta são histórias e seus personagens. 


"E o escritor, Saadat Hasan Manto, também não é desprovido de humanidade. Ao invés de entenderem isso me submetem a um julgamento ridículo. O escritor francês Gustave Flaubert, por Madame Bovary e o irlandês James Joyce, por Ulysses, tiveram acusações parecidas. Minhas histórias são espelhos para que a sociedade se veja. Se alguém não gosta do que vê, por que a culpa é minha? Folhas de Nim são amargas, mas purificam o sangue…”


Beber para lidar com a dor e silenciar a consciência, serve para alguns mas não funcionava para si. Por que? Pode ser que a psiquiatria funcione, foi o que pensou em uma tentativa extremada e uma busca de saída para a culpa do fracasso! No hospital, um roteiro cinematográfico que mostra a experiência de ser exilado mais uma vez, de saber que o cerco se fecha, que o ator Shyam Chaddha, seu amor fraterno maior morre em consequência de uma queda de cavalo em uma gravação de cena. Naquela aflição, dois, três anos após a divisão, os governos da Índia e do Paquistão continuavam com seu nefasto projeto separatista e transferiam os loucos como se fossem criminosos: os muçulmanos na Índia foram mandados para o Paquistão. E os Hindus e Sikhs que estavam no Paquistão eram enviados à Índia. É a história que se passa no asilo mais antigo da Índia, no qual os pacientes foram deixados para trás por seus familiares, e isso serve de enredo para o filme Toda Ter Singh: “Independente de quem se foi e em que situação mental se encontrava, a divisão não trouxe nada além de dor para as pessoas que experimentaram-na e isso é o que este filme conta, este filme que se baseia na pungente história do grande escritor Saadat Hasan Manto”. Este se trata, portanto, de um outro filme, que tem seus fundamentos integrando o filme atual. 


Como seu amigo Shyam, Saadat Hasan Manto nascido em Ludhiana, Índia em 11 de maio de 1912 em uma família muçulmana da Cachemira, também morreu jovem, em 1955 em Lahore, com 42 anos. Manto deixa uma obra que o fez o maior escritor indiano (tornado indo-paquistanês), da sua época. Polêmico e não datado deve ser alçado ao nível dos grandes escritores universais. No início dos anos 1920 já tinha traduzido vários textos literários do russo, francês e inglês para o urdu, sua língua materna. Conseguia, de uma vez, escrever uma pequena história completa com os personagens inspirados em pessoas marginalizadas e rejeitadas pela sociedade da época.

O filme biográfico na Netflix que deu origem ao nosso texto atual, uma produção indiana, tem em seu elenco os atores Nawazduddin Siddiqui, como Manto; Tasika Dugal e Tahir Raj Bhasin. Na direção, Nandita Das. 


   

Fortaleza, 20 de agosto de 2020.


 

THANDA GOSHT 4


SAADAT HASAN MANTO

(1963)


Ishwar Singh tirou o paletó, olhou para Kalwant Kaur com amor e disse: "Vamos jogar cartas".

Os lábios de Kalwant Kaur umedeceram, ela revirou os olhos charmosamente e disse: "Cai fora!”

Ishwar Singh beliscou sua nádega. Kalwant Kaur afastou-se com dor, "Não faça isso, querido Ishwar, dói."

Ishwar Singh lambeu os lábios dela e mordeu. Kalwant Kaur se derreteu como cera quente. Ele retirou sua camisa. “Então, vamos dar as cartas.”

Os lábios de Kalwant Kaur tremeram. Ishwar Singh tirou suas roupas como a pele de uma cabra. Ele a olhou para seu corpo nu, beliscou seu braço e disse: "Juro por Waheguru, você é uma mulher!"

Kalwant Kaur olhou para a marca vermelha em seu braço deixada por seu beliscão. "Você é tão cruel, querido Ishwar."

Ishwar Singh sorriu por baixo de seu bigode preto e grosso, "Deixe a crueldade começar.”

Ele começou sua crueldade beijando seus lábios e mordendo os lóbulos de suas orelhas. Ele apertou seus seios, bateu em suas nádegas, beijou suas bochechas e chupou seus mamilos. Kalwant Kaur começou a ferver de desejo como uma panela quente no fogão em chamas. Mas, apesar de todas aquelas preliminares, Ishwar Singh não conseguiu se excitar. Como um lutador que está levando a melhor, ele empregou todos os truques que conhecia para acender o fogo em seus quadris, mas nenhum funcionou. Kalwant Kaur, que estava transbordando de desejo sexual, estava ficando irritada com os movimentos desnecessários do parceiro. 

"Ishwar querido", ela sussurrou languidamente, "você me embaralhou o suficiente, é hora de produzir seu trunfo."

Ishwar Singh sentiu como se todo o baralho de cartas tivesse escorregado de suas mãos para o chão. Ele afrouxou o abraço apertado e caiu ao lado de Kalwant Kaur ofegante. Sua testa suava em cascata. Kalwant Kaur tentou muito fazer ele se excitar, mas sem sucesso. Decepcionada e enfurecida, Kalwant Kaur saiu da cama, pegou o chador pendurado no prego da parede e se enrolou.

Suas narinas se expandiram, ela disse furiosamente, "Ishwar querido, quem é essa vadia com quem você passou todos esses dias e que te sugou até secar."

Ishwar Singh continuou deitado na cama, ofegante, sem dizer uma palavra.

Kalwant Kaur estava enfurecida. "Eu perguntei quem é assa puta!"

"Ninguém, Kalwant, ninguém." Ishwar Singh parecia muito cansado.

Kalwant Kaur colocou as mãos nos quadris largos e disse com total determinação: “Ishwar querido, eu tenho que saber a verdade, juro por Waheguru. Existe outra mulher? ” (...).

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1)Disponível em:  <https://www.theguardian.com/books/2016/jun/11/saadat-hasan-manto-short-stories-partition-pakistan>. Acesso em agosto de 2020.

2) Sreenivas, M. Creating Conjugal Subjects: Devadasis and the Politics of Marriage in Colonial Madras Presidency. Feminist Studies, Vol. 37, No. 1, CONJUGALITY AND SEXUAL ECONOMIES IN INDIA (Spring 2011), pp. 63-92, p. 68.

3)Tariq, F. Paquistão: o que fazer em relação ao Fundamentalismo Religioso? Disponível em: <http://links.org.au/node/1422>. Acesso em: agosto de 2020

4) Excerto do conto original em urdu "THANDA GOSHT" traduzido para o inglês. Tradução livre a partir do inglês. Esse trecho faz parte do filme Manto.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Moldávia é um país viável?

 




Moldávia, o país com o maior declínio populacional na Europa, luta para sobreviver e se manter como um Estado viável. O país que surgiu como uma nova república emergente do bloco soviético busca se estabelecer política e economicamente em meio ao desassossego e pressões de seus vizinhos hostis e dos desenlaces da sua própria e conturbada história. Mesmo internamente, essa instabilidade continua pois a Oeste, dentro das próprias fronteiras, há outro país, a Transnídia. Embora não reconhecido internacionalmente, declarou sua independência em 1990 e conta com moeda própria, exército, instituições públicas e até mesmo passaportes. De região separatista da Moldávia passando a país autodeclarado formou um Estado não reconhecido por nenhum outro país do mundo. Para a ONU continua sendo uma parte integrante da Moldávia. A Transnídia integra o grupo dos nomeados “países que não existem”1, aqueles que de facto se colocam como independentes mas sem reconhecimento externo. Alguns dos países que integram esse grupo conquistaram soberania, como é o caso do Kosovo, que se proclamou independente em 2008 embora, ainda dez anos após essa declaração, continue sendo reconhecido apenas por parte dos países da comunidade internacional. 

A Moldávia pertenceu ao Império Russo até período posterior à Primeira Guerra Mundial para, a partir daí, integrar a Romênia. Logo a seguir, após a Segunda Guerra Mundial, voltou a ser controlada pela Rússia. Anexada como República Socialista Soviética Autônoma da Moldávia e, posteriormente formando a República Socialista Soviética da Moldávia só veio conhecer autonomia política após o colapso da União Soviética em agosto de 1991 quando declarou sua independência como República da Moldávia (Republica Moldova) e já se tornando, em 1992, um novo membro das Nações Unidas.  República parlamentarista, tem uma área total de 33.846 km², tendo quase o tamanho do estado do Rio de Janeiro ou do território da Suíça, conta com uma população de cerca de 3.600.000 habitantes. Sua capital, Chisnau, tem cerca de 730 mil habitantes.  A língua oficial do país é o romeno, ou moldavo, como localmente denominada. A língua romena da Moldávia era, na época do domínio soviético, escrita em alfabeto cirílico. Voltou a ser escrito em alfabeto latino desde 1989, ainda antes de sua independência. 

Nesse mês de agosto em que comemora o 29. aniversário de sua independência, ainda há muitos desafios que o jovem país tem que enfrentar. Esses desafios decorrem de muitas situações pré-existentes no curso de sua história. Algumas delas podem ser destacas: 


Primeiro, o país procurou estabelecer um estado viável onde nenhuma tradição de autogoverno e soberania existia antes. Em segundo lugar, sem uma tradição política local, era difícil para a Moldávia chegar a acordo sobre uma constituição e encontrar líderes políticos não contaminados pela associação com a União Soviética altamente centralizada e autoritária. Terceiro, a transição de uma economia controlada para uma economia de mercado livre foi difícil. Uma economia amplamente agrícola baseada em fazendas estatais e coletivas foi desenvolvida sob o domínio soviético. Quando muitas dessas fazendas foram desmembradas e entregues a indivíduos após a independência, o resultado foi um deslocamento considerável, perda de produtividade e alegações de corrupção. Finalmente, a transição econômica foi ainda mais impedida pelo fato de que grande parte da indústria da Moldávia estava localizada na região separatista da Transnístria, que havia proclamado sua independência da Moldávia em 1990, resultando em uma breve guerra civil. Embora um cessar-fogo tenha sido declarado em 1992, as relações entre a Moldávia e a Transnístria permaneceram tensas e as tropas russas ainda estão presentes na zona de segurança. A Transnístria também é a fonte de grande parte da eletricidade da Moldávia, que foi cortada várias vezes. Assim, o caminho da Moldávia para a nacionalidade permaneceu acidentado - desde os primeiros esforços de construção da nação até a busca do país por paz e prosperidade no século 21”. 2


O caso Transnístria (ou Transnídia), um dos países que não existem, é muito diferente do Kosovo. A Transnístria se situa dentro de território moldavo, um país soberano. Apesar de ter vencido a guerra com o apoio da Rússia e se tronado de facto uma república independente não obteve reconhecimento de nenhum país membro da ONU, tampouco tem sido alvo de interesse internacional para resolver suas questões remanescentes que implicariam em algum incentivo a sua desejada autonomia.

A Moldávia, mesmo depois de declarar sua independência, continuou, para tentar assegurar a sua manutenção, com esse tema no debate nacional como uma pauta permanente, juntamente com outras de igual importância como a da resolução de conflitos étnicos e territoriais e da heterogeneidade cultural e étnica que fazem parte do país: "Quando se considera a persistência destes debates, em combinação com outros fatos bem conhecidos como, por exemplo, os repetidos e profundos fracassos da transição econômica que valeu à Moldávia o título de nação mais pobre da Europa, uma visão cética sobre as perspectivas de os moldavos desenvolverem uma forte lealdade ao país recém-estabelecido pode parecer justificada”.3

Além de aspectos geopolíticos de peso para retratar o país, há outras características presentes na sociedade e cultura moldavas que são um diferencial no mundo europeu e ao mesmo tempo contribuem para o aprofundamento de seu isolamento e involução. O acentuado declínio demográfico já é considerado o pior da Europa; um sentimento desenvolvido pela população de viver em um país fracassado e de não pertencimento são, simultaneamente, consequências e causas de uma pátria de emigrantes e de uma população de insatisfeitos. O declínio no crescimento populacional e a falta de um orgulho nacional que se sobreponha aos muitos problemas percebidos e vivenciados se somam a outros fatores já listados e podem ser incluídos no rol de conceitos centrais para se cunhar uma definição de Estado inviável para o qual pode se encaminhar a Moldávia: "Do Mar Negro ao Adriático, a questão da queda da população é um drama. Na Moldávia, é um trauma. Desde 1989, sua população diminuiu quase um terço e em 15 anos pode ser apenas um pouco mais da metade do que era naquela época”.4 É uma combinação degradante para qualquer nação: com uma população decrescente combinada a um crescente êxodo e com uma grande parcela dos moldavos que permanece e se considera infeliz: 


Os moldavos são as pessoas mais infelizes do mundo. Isso é de acordo com dados da World Values ​​Survey, cujos pesquisadores entrevistaram dezenas de milhares de pessoas em mais de 60 países durante a última década. Apenas 44% das pessoas na Moldávia disseram estar felizes, a proporção mais baixa de todos os países pesquisados. A Moldávia é realmente um lugar tão infeliz e por quê? Essas estatísticas da World Values ​​Survey são frequentemente citadas em um crescente corpo de pesquisas acadêmicas sobre o que causa felicidade e quais suas implicações para as políticas públicas. Muitas vezes, as respostas para a pergunta "você está feliz?" são calculadas com as de outra pergunta ligeiramente diferente - "você está satisfeito com sua vida?" - para produzir uma medida mais ampla chamada bem-estar subjetivo. A Moldávia também fica por último nesta contagem.5

 Acrescente-se aos ingredientes desse mal estar, o declínio da economia da Moldávia, totalmente despreparada para a pandemia de COVID-19. Mais do que em outros países europeus, as medidas de contenção da propagação da pandemia resultaram em grande impacto socioeconômico e aprofundaram ainda mais as desigualdades pré-existentes, um dos motores dessa insatisfação endêmica. Com uma grande parte da população trabalhando em setores de risco e muitas vezes na informalidade, pouco poderá fazer para seguir protocolos de proteção do governo: "A crise COVID-19 também está afetando os trabalhadores migrantes na Moldávia. A imposição de medidas de quarentena e o fechamento de empresas fizeram com que milhares de residentes na Rússia e na Europa perdessem empregos. Além disso, com os países aumentando o controle em suas fronteiras e introduzindo restrições à liberdade de movimento, os migrantes que trabalham não podem retornar aos seus países de origem. Isso já levou a uma queda nas remessas, um fator-chave no apoio econômico a muitas pessoas[…] O período prolongado de subinvestimento, informalidade e mudanças demográficas exacerba as tensões sobre a proteção social, saúde e outros sistemas de assistência.”6

    Certamente poucos já devem ter ouvido falar ou se interessaram, espontaneamente, pelos acontecimentos e o destino desse distante e desconhecido país, pois nem mesmo seus vizinhos de fronteira parecem se importar com ele. Trata-se, pois, de um dos países mais pobres da Europa, distante e fora do mapa turístico, sem qualquer poder de influencia na política regional ou global, com problemas internos e externos. No entanto, União Europeia e Rússia se alternam nas ingerências locais e mantém curioso interesse em exercer o poder sobre o minúsculo país que se encontra em lugar nenhum no imaginário popular; além da Europa e aquém da Ásia. Enquanto nações poderosas mostram suas garras e ameaçam aquela região, as evidências do cotidiano de seus moradores que atualmente acrescentaram a pandemia na sua lista de inimigos a serem combatidos vão revelando tristeza, falta de otimismo, ceticismo e um movimento e consequente desejo em deixar o país para trás em busca de outros horizontes mais promissores, passando aos lobos o cuidado de suas ovelhas, perdendo assim a chance de continuar contribuindo com a construção de sua própria nação.

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1) Termo utilizado por Guilherme Canever em seu livro “Uma viagem pelos Países que não existem”: Canever, G. Uma viagem pelos países que não existem”. Curitiba: Pulp Edições, 2016.

2) Sukhopara, F. N. Moldova.   Disponível em: <https://www.britannica.com/place/Moldova>. Consultado em: agosto de 2020.

3)Iavorschi, A.  The Problem of National Identity in the Republic of Moldova: Moldovanism and Romanianism . Rivista di etica e scienze sociali / Journal of Ethics & Social Sciences. Roma: Angelicum University Press (AUP). Anno 11 Numero 3, Ottobre 2012, p. 34.

4)  Latham, E. Moldova. Disponível em: https://www.britannica.com/place/Moldova>. Consultado em: agosto de 2020.

5)  Disponível em: <https://www.welcome-moldova.com/articles/moldova-unhappiest-country.shtml>. Consultado em agosto de 2020.

6) COVID response: Social. Disponível em: <protectionhttps://www.md.undp.org/content/moldova/en/home/covid-19-pandemic-response/national-response-to-COVID19/socialprotection.html>. Acesso em agosto de 2020.