POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Os dilemas do novo Brics

 


        Bandeiras dos países membros atuais dos Brics: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.


Brasil, Índia e África do Sul juntamente com Rússia e China se somarão à Argentina, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Irã e Etiópia para dar corpo ao que se conhecerá pelo Brics em sua nova formação a partir de janeiro de 2024. A sigla adotada continuará a mesma adicionada de um sinal +, Brics+, referindo-se ao grupo de origem e à sua sua última formação antes do ingresso dos novos membros. O que daí virá, no entanto, não deixa de aportar dúvidas, ainda que se esteja falando de um bloco não apenas de natureza econômica que visa se consolidar como um dos atores de relevância no cenário internacional e com o objetivo de se tornar um contraponto ao G7, o grupo formado pelas 7 maiores economias do planeta, que hoje dita as regras do jogo no cenário mundial praticamente sozinho. 



Mapa com os membros atuais do Brics (destacados em cor azul).

Depois do anúncio do grupo em formação e atualizado com seus dez membros, questiona-se como lidar com esse novo Brics quando o assunto em pauta seja  “Direitos Humanos”. O que se esperar da posição de cinco dos seus novos integrantes, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Irã e Etiópia, nesse debate? 



O anúncio foi realizado pelo presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, em entrevista a jornalistas em Joanesburgo (África do Sul).
Ele estava acompanhado de Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Xi Jinping (China), Narendra Modi (Índia) e Sergey Lavrov (Rússia).


E quanto aos anteriores: Rússia, China e India?  As dificuldades atuais em decisões nessa área por conta das posições questionáveis de Rússia e China são conhecidas, e de certo modo um campo em negociação, dada sua relevância econômica e uma vez estarem numa relação de dois para três nesse quesito “garantia de direitos humanos” nos países do bloco. Para que lado penderá a balança nas decisões de Órgãos como o Conselho de Direitos Humanos da ONU se o Brics terá em seu quadro mais cinco ditaduras, a maioria delas conhecidas por suas práticas sanguinárias no tratamento de seus cidadãos e na preponderância do fundamentalismo religioso nas decisões de Estado? Sabe-se que até mesmo a diplomacia brasileira observa na entrada desses novos membros um grande dilema para suas estratégias na política externa, que se afirma progressista no quesito Direitos Humanos e tem se posicionado nessa perspectiva interna e externamente. Uma declaração a que foi signatário o novo grupo poderia não passar de uma encenação pública, um agrado à comunidade internacional e mesmo aos diplomatas brasileiros céticos sobre as intenções “humanitárias” do grupo. Seriam críveis essas intenções mencionadas pelo bloco em defesa de direitos humanos e da democracia? Com que legitimidade regimes totalitários como Irã, China, Rússia, Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes ou Etiópia apoiarão necessárias resoluções em defesa dos direitos humanos se procedem como contumazes violadores desses direitos no cotidiano de sua politica de Estado?





            O que é o Brics?(1):

Brics é um grupo de países formado por cinco grandes economias emergentes: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. A partir de 2024 o bloco acrescentará ao rol de países integrantes atuais seis novos membros: Argentina, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã. O Brics não é um bloco econômico e funciona como um mecanismo internacional de cooperação. Deve contribuir para a maior inserção das economias emergentes na economia mundial e no contexto geopolítico internacional. O objetivo do Brics é a promoção de medidas de crescimento econômico e desenvolvimento socioeconômico sustentável entre países emergentes. Reuniões de cúpula são realizadas anualmente (a Cúpula dos Brics) visando ao alinhamento de políticas de desenvolvimento social e à reafirmação da cooperação entre os países em diferentes áreas de interesse. Um novo Banco de Desenvolvimento (NDB), mais conhecido como “banco dos Brics” foi criado em 2014 para o financiamento de projetos de infraestrutura e desenvolvimento nos países emergentes. A criação do Banco do Brics significou um aumento na integração de seus países e ocorreu na 6a. reunião de cúpula em Fortaleza (Ceará-Brasil). Atualmente o Banco é dirigido pela ex-presidente Dilma Rousseff, que também esteve presente na reunião que criou o banco em Fortaleza.


Antonio C. R. Tupinambá

Professor titular. UFC

Agosto de 2023.

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(1) A partir do texto disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/geografia/bric.htm>. Acesso em: ago. 2023.

domingo, 27 de agosto de 2023

O 27 de agosto é, no Brasil, o Dia d@ Psicólog@.





Hoje, 27 de agosto, comemora-se o Dia d@ Psicólog@. Ao longo de mais de seis décadas houve tempo para se refletir sobre como a Psicologia, ciência e profissão, vem contribuindo para melhorar experiências humanas em diversas situações, inclusive após a experiência extrema e atual vivida no quadro de pandemia que assolou o Brasil e o mundo. A Psicologia vem se construindo por meio de estudos e práticas cada vez mais engajados com os problemas pessoais e sociais, contribuindo, dessa forma, para a promoção da qualidade de vida e para a emancipação humana. Em certa medida, como ocorreu durante a pandemia, busca adaptar-se para poder cumprir sua missão de conciliadora entre o sofrimento e sua superação. Além da atuação clássica e mais conhecida nos consultórios, outros cenários exigem uma readaptação do seu modus operandi, para que cumpra o papel de aliada na superação dos problemas humanos tradicionais e emergentes, principalmente em situações extremas como ocorreu durante a pandemia de covid 19. Nesse caso específico, com o esforço científico comum conseguiu-se desenvolver formas inovadoras de abordagem, virtuais e remotas, que ao lado dos modelos tradicionais e presenciais se tornaram meios eficientes de intervenção, viabilizando a abordagem e o amparo de pessoas que precisavam lidar, também psicologicamente, com a crise resultante da experiência traumática da pandemia. Há, portanto, a busca de constante atualização da Psicologia para que continue cumprindo sua missão original de ciência e profissão indispensável ao bem estar humano e social independente das circunstâncias e atrelada ao momento histórico em que se vive. Conhecimentos e aplicações da psicologia são, portanto, amplos e sempre melhorados para atender às atuais e emergentes necessidades humanas. A relevante experiência de Psicólogos, por exemplo em contexto de guerras e seus desdobramentos, implicam em novos paradigmas de ação para ajudar na superação dessas vivências indesejáveis e traumáticas. Muito do conhecimento psicológico foi recuperado e readequado para o enfrentamento de desafios gerados pelos atuais conflitos internacionais causadores de um novo mal estar na civilização, qual seja, a volta do êxodo e das inúmeras perdas em consequência desses conflitos/guerras, que ao contrário do que se pensava, não foram superados e tendem a aumentar no mundo hodierno. Tais ações dos profissionais de psicologia ainda pouco conhecidas são reveladoras dos esforços permanentes de uma ciência, que nasceu e evoluiu com a missão de ajudar a compreender e lidar com o sofrimento humano. Esses problemas mundiais emergentes e suas consequências desestabilizadoras para, principalmente, a parte mais fraca do elo social, o cidadão comum, são hoje parte do rol de preocupações e tarefas que vêm sendo acolhidas e tratadas pelos psicólogos de diferentes áreas. Com o reconhecimento da grandeza do profissional de psicologia, aproveitamos a data simbólica do “27 de agosto”, na qual foi regulamentada a profissão de Psicólogo no Brasil, para nos congratular com todos esses profissionais que contribuem com a difícil e nobre missão de promoção da saúde e do bem-estar humano em diversas situações e condições. Ao cumprir sua missão com a enorme responsabilidade e o comprometimento exigidos pelo seu trabalho, viabilizam uma busca contínua de compreensão da natureza humana, o que traz seus consequentes benefícios ao homem e à sociedade.


Antonio C. R. Tupinambá

Psicólogo


27 de agosto de 2023

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

O Haiti também é aqui






A parte ocidental da ilha caribenha, La Española, obteve a independência dos seus colonizadores franceses e só então passou a ser chamada de Haiti. As políticas de exploração e sabotagem dos ex-colonizadores em conluio com os Estados Unidos impossibilitaram a construção da nova nação. A tentativa de implementação de um regime democrático nunca teve bons resultados. Sempre mergulhado em períodos de profunda instabilidade política, teve que trocar vários presidentes e passar por golpes de Estado, culminando com a deposição de seu principal nome na política que sucedeu a diferentes regimes brutais e ditaduras, o ex-padre católico Jean-Bertrand Aristide, presidente eleito democraticamente em 2001. Hoje o país se vê mergulhado em uma onda de violência e caos com policiais rebelados sendo vítimas de gangs, que assolam sua capital, Port-au-Prince. Com o aumento do número de agentes mortos, inclusive após ataques a esquadras policiais, a sociedade se vê refém e órfã. As Nações Unidas estimam que 60% de Port-au-Prince são controlados por diferentes gangs.  


                                                        Foto: Richard Pierrin / AFP

Talvez já estejamos nos acostumando às cenas intermitentes de profunda miséria seguidas por outras fugazes ondas de bondade e dedicação” de forças internacionais enviadas para aquela parte da ilha. Testemunha-se uma sequência de desmandos, incluindo o desrespeito a sua soberania, como em 2004, quando Jean-Bertrand Aristides foi deposto por um golpe militar. O terremoto que devastou o país e a desastrosa atuação da "tropa de paz" do exército brasileiro também liderada com atos de barbárie e terror pelo general Augusto Heleno aprofundaram os problemas vividos no país com sua já conhecida decadência social, política e econômica. Com a iminência de uma guerra civil após a queda de Aristides, foi criada a Minustah — Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti — pelo Conselho de Segurança da ONU em junho de 2004. Nomeada missão foi liderada pelo Exército brasileiro e tinha como objetivo principal  restabelecer a ordem social e levar ajuda humanitária no país. Quase 37 mil militares brasileiros comandados, inicialmente, pelo general Heleno integraram a missão, que terminou por ocasionar um grande crime humanitário em Port-au-Prince durante a invasão de um de seus maiores assentamentos de pobres, a Cité Soleil: “Em julho de 2005, segundo testemunhas, cerca de 300 soldados fortemente armados invadiram o bairro e teriam assassinado 63 pessoas além de deixar outros 30 feridos. A operação ´Punho de Ferro`, sob o comando do general Augusto Heleno, teria disparado 22 mil tiros, conforme investigação jornalística a partir do WikiLeaks”. Houve também muita violência dirigida contra estudantes e pobres que moravam nas favelas. Estupros de mulheres e homens e até mesmo uma responsabilização pelo agravamento da situação de epidemia de cólera resumem o quadro de desastre resultante da Minustah. Com esse histórico de mal feitos e mesmo tendo sido um caso de denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Heleno foi contemplado com o posto de ministro de Estado, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República no governo de Jair Bolsonaro. O general a serviço de Bolsonaro foi um dos suspeitos de, no final do seu mandato, integrar o bando que conspirava contra a democracia e apoiava um golpe de Estado após sua derrota eleitoral nas urnas. 

O ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) no governo de Jair Bolsonaro (PL), o general Augusto Heleno, participou de um grupo de WhatsApp no qual foram discutidas ações golpistas, segundo o coronel aviador reformado Francisco Dellamora, em entrevista ao UOL… O grupo denominado "Notícias Brasil" foi excluído em 8 de janeiro deste ano, quando bolsonaristas invadiram e depredaram os prédios dos Três Poderes, em Brasília. Também faziam parte o general da reserva Sérgio Etchegoyen, que comandou o GSI no governo Michel Temer (MDB), e outros 40 militares, entre oficiais da ativa e reserva. O grupo foi criado em 2016, durante o processo de impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff (PT).


  Manifestação organizada por moradores do Guarujá e parentes de mortos contra Operação Escudo —  Foto: Maria Isabel Oliveira/ Agência O Globo 


O Haiti é aqui

A ação desastrosa da força composta por soldados brasileiros no Haiti, uma “pacificação” de favelas de modo semelhante ao que acontece no Brasil e com militarização das forças policiais da ONU, pretensamente para  proteção da população, resultou em mais de 2 mil denúncias de abuso e exploração sexual, por parte dos soldados do general Heleno. 300 dessas denúncias também envolvem crianças (segundo a Associated Press). A Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti) foi comandada pelas tropas do Brasil por 13 anos e deixou, segundo informações, um cenário com vítimas de cólera, abusos sexuais, miséria e instabilidade política”. Vale a pena ressaltar que entre os altos postos de comando dessa tropa também fazia parte o hoje governador de São Paulo, o capitão do exército Tarcísio de Freitas. A ação policial que ocorre atualmente em São Paulo, não por acaso sob a batuta do seu atual governador reedita sua perversa participação na experiência do exército brasileiro na missão de paz no Haiti, que entre 2004 e 2017 viu como resultado dessa desastrosa atuação mais de 30 mil mortos no país. Um perfil que cabe muito bem no governo de Bolsonaro do qual fez parte e em sua continuidade que é cultivada, atualmente em nível estadual em São Paulo, por seu discípulo Tarcísio. Além de Tarcísio, mais sete dos militares integrantes da missão no Haiti receberam honrarias e fizeram parte do governo de Jair Bolsonaro. Como aconteceu no país caribenho, o governador Tarcísio não viu excesso na atuação da sua Polícia Militar nas favelas do Guarujá em São Paulo, que já resultou em mais de 16 mortos e muitos feridos. Após os graves ocorridos, a Defensoria Pública oficiou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) do estado um pedido para que a operação policial no Guarujá seja interrompida imediatamente. O órgão também solicita que os policiais militares envolvidos em mortes sejam afastados temporariamente das ruas mas, segundo o governador, a operação denominada “Operação Escudo” deve seguir até o dia 28 de agosto. A terceira operação mais letal no estado só fica atrás, em número de vítimas fatais, do 'Massacre do Carandiru’, que em 1992 deixou 77 mortos e dos “Crimes de maio”, que resultaram em 108 pessoas mortas em 2006.

Em São Paulo cumprir a legislação para evitar os excessos capitaneados pelas tropas de Tarcísio e sua equipe seria o começo da busca de uma solução momentânea à matança policial no estado. Já no Haiti, para frear o desastre atual, seria necessária a ajuda internacional imediata que esteja comprometida e seja respeitosa com os pleitos locais para o apoio às forças de segurança e não repitam os erros cometidos pelas forças de paz brasileira em meados dos anos 2000 ao escolherem líderes incompetentes e sanguinários.  Essa seria, no caso haitiano, a única saída em vista. Uma intervenção que poderia contribuir, efetivamente, a combater a dramática situação humanitária no país que acumula histórias de desmandos e manobras de forças externas mal sucedidas. O ministro de Planejamento e Cooperação Externa haitiano Ricard Pierre já havia declarado que está clara a inevitável deflagração de uma guerra civil caso essa ajuda não chegue a tempo. “A ONU segue expressando preocupação com a extensão da violência das gangues, o aumento dos assassinatos e sequestros e a violência sexual no Haiti. Diante da presença policial escassa, moradores começaram a cuidar da própria segurança. Em abril, por exemplo, um grupo de civis se apoderou de membros de gangues detidos, agrediu os mesmos até a morte e queimou seus corpos na rua”. Parece irônica mas é verdadeira, a comparação feita por Tarcísio em 2022 quando concorria ao governo de São Paulo. Um perfil “genocida” já estava claro na sua candidatura, o que levou o povo de São Paulo a cair nessa emboscada só pode ser explicado pela falsa ilusão de combate ao crime com o recurso do próprio crime, o que é uma falácia perigosa. 

O ex-ministro da Infraestrutura Tarcísio de Freitas (Republicanos) publicou nesta 4ª feira (1º.jun.2022) um vídeo relacionando a missão de paz no Haiti com o dia a dia da polícia de São Paulo. O político é a aposta do presidente Jair Bolsonaro (PL) na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes. No vídeo, Tarcísio, que participou da missão de paz no Haiti, afirmou que primeiro é preciso conquistar a paz, para depois mantê-la com ações sociais. “A experiência de enfrentamento no Haiti, de certa forma, nos ajuda a se colocar na situação do policial que está na rua todos os dias enfrentando a criminalidade.

Desta feita a tarefa de salvar um Haiti em vias de uma auto-destruição pode estar nas mãos da Organização das Nações Unidas. A crise humanitária em níveis até hoje não vistos no país pode ser estancada com o envio dessa força internacional coordenada pela ONU para evitar a completa falência do país afundado em mais uma terrível crise humanitária. Que esse Haiti não seja mais lá ou aqui.

 


  Porto Príncipe-Haiti. Moradias construídas em morro da capital do Haiti, Porto Príncipe (Joe Raedle/Getty Images)




Guarujá-SP. Foto: Lazaro Jr./Hojemais Aracatuda/AFP


Antonio C. R. Tupinambá

Professor — UFC

Julho de 2023.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Niger: uma aposta perdida

 



A tomada do poder pelos militares no Niger leva o Ocidente a rever sua aposta em transforma-lo num país democrático em meio ao caos de tantas outras nações que o cercam. O país que tem cerca de 25 milhões de habitantes se localiza na faixa de transição no continente africano, uma região semiárida conhecida por Sahel. Com três terços de seu território formados por deserto, tem à margem do rio Níger suas principais cidades e aglomerações urbanas. Assim como ocorre com muitos dos seus vizinhos, enfrenta uma luta permanente contra terroristas jihadistas, que empurram, com seus atos de extrema violência, centenas de milhares de pessoas para fora de suas casas. A grande presença ocidental no Níger não impediu mais um golpe que compromete sua frágil democracia, desestabilizando ainda suas instituições e forçando mais cidadãos a fugir e emigrar. O país é vítima desse novo golpe militar que se soma a quatro outros, além das muitas tentativas de golpe na sua recente história pós independência. O atual presidente Mohamed Bazoum representava a única esperança de se estabelecer um governo que viabilizasse a construção de uma democracia em uma região acostumada a movimentos golpistas e à imposição de regimes totalitários. Eleito há apenas dois anos, Bozoum foi a primeira experiência no país de uma transição de poder pacífica desde sua independência da França em 1960. O país que já travava uma difícil luta contra a violência jihadista deve agora sofrer as consequências da iminente saída de forças de apoio formadas por militares estrangeiros, principalmente europeus. Níger era um dos últimos aliados do Ocidente na região do Sahel, enquanto os vizinhos Mali e Burkina Faso sempre recorreram a outros parceiros, incluindo a Rússia. Várias autoridades já protestam contra a ação golpista militar e continuam tendo o presidente Bazoum como o legítimo mandatário no país. Organismos internacionais também apelam para que o presidente seja libertado e o estado de direito restaurado. A tomada de poder pela Guarda Presidencial e militares comprometerá o futuro da nação envolta em sérios problemas políticos e econômicos, que vinham sendo enfrentados pelo governo democraticamente eleito mas brutalmente deposto. Governo que tinha na França sua maior aliada, tendo em vista os interesses mútuos em combater a crescente onda de terrorismo jihadista na região. Já se observa, como oportunista, uma presença cada vez maior da Rússia em países africanos, o que vem de encontro ao fracasso dos ex-colonizadores que mantiveram sua influência no país, muitas vezes percebida como predatória. Hoje a França também paga o preço por conta de sua política colonialista equivocada e vê sua presença cada vez mais enfraquecida e questionada por parte da população local. O grupo de mercenários russo “Wagner” se diz satisfeito com a destituição do presidente nigerino e oferece ajuda aos golpistas, afirmando que aquilo que aconteceu nada mais foi do que uma luta do povo contra seus colonizadores, que querem mantê-los no mesmo estado em que se encontravam há centenas de anos. A França não reconhece o governo imposto pelo golpe liderado pelo general Abdourahamane Tchiani. Paris tem Mohamed Bazoum,  o presidente eleito, como  o verdadeiro presidente da República do Níger. A deposição de Bazoum se configura, para a França e outros países ocidentais, um poder ilegítimo e perigoso para o Niger e outros países naquela região.  A retomada de relações diplomáticas e a continuidade das colaborações econômicas e militares internacionais só acontecerão, segundo antigos parceiros, após a libertação do presidente Bazoum e o restabelecimento da ordem constitucional no país. Vozes na África também se levantam para mostrar a insatisfação com o golpe militar ocorrido no Níger. Vários líderes de países da África Ocidental emitiram um ultimato  aos militares que derrubaram o presidente e não descartam o uso da força para restabelecer a ordem constitucional no país, além da imposição de sanções financeiras. O presidente do Quênia, William Ruto, criticou duramente a insubordinação dos militares, considerando-a um ato inconstitucional em seus termos mais fortes, afirmando ainda que com esse golpe a África sofre um sério retrocesso em seu progresso democrático: "exortamos todas as partes a se engajar em um discurso construtivo para restaurar a paz nesta nação fraterna que se manteve firme como um baluarte contra o terrorismo e seus agentes na região do Sahel”, foram essas suas palavras ao condenar o golpe. 


Apoiadores das forças de defesa e segurança nigerianas atacam a sede do PNDS, o partido do presidente deposto Mohamed Bazoum, em Niamei  - Foto: AFP


Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, 1 de agosto de 2023.