POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

O ataque do Azerbaijão à Armênia

 






Em amarelo, a região chamada Nagorno-Karabakh. Em verde e branco, região autoproclamada República de Artsakh (ou República de Nagorno-Karabakh) (Foto: Wikimedia Commons).


A república de Artsakh ou Nagorno-Karabakh reivindicava reconhecimento internacional desde os anos 1990 para poder se tornar um Estado independente e soberano. Artsakh (assim chamada em alusão a um dos reinos antigos da Armênia) ou Nagorno-Karabakh, cuja capital é Stepanakert fica em região montanhosa colonizada por armênios mas localizada em território hoje reivindicado pelo Azerbaijão. Local em que se travaram os últimos conflitos que resultaram na fuga da maioria dos seus habitantes, tornando-o um país quase fantasma. A brutal invasão foi efetuada pelas forças militares comandadas por Ilham Aliyev, o ditador do Azerbaijão, que sempre teve, para seus planos expansionistas, o apoio de outro ditador, o presidente turco Recep Erdoğan. O conflito na região sempre existiu mas nunca tinha chegado ao nível atual. Há tempos, muitos de seus habitantes perdem a vida em razão de tiroteios na fronteira com o Azerbaijão, fazendo com que aqueles territórios se tornem cidades-fantasmas, com um rastro de destruição que se estende a outras províncias desse país, que só existe para a população armênia local. Não bastou que os separatistas se rendessem e desistissem da criação da nova nação, a República de Nagorno-Karabakh; os algozes azerbaijanos continuaram atacando até que metade dos seus habitantes abandonassem aquelas terras em busca de abrigo além de suas fronteiras, na direção do território armênio. Nagorno-Karabakh foi, repetidas vezes, submetido ao jugo das grandes potências e teve que deixar de fazer parte da Armênia para se tornar, no stalinismo, parte da República Socialista Soviética do Azerbaijão apesar de sua população, já naquela época, ser formada quase que totalmente por armênios étnicos. Em épocas mais recentes, entre 1988 e 1994, Armênia e Azerbaijão voltaram a disputar  Nagorno-Karabahk. A quebra unilateral do atual cessar-fogo pela ditadura do Azerbaijão permitiu, mais uma vez, a destruição de milhares de vidas armênias sem que a comunidade internacional tomasse qualquer medida para evitar essas agressões. Conta-se cerca de 50 mil refugiados que em desespero cruzam a fronteira em direção à Armênia, ou seja quase 50% da população local. Como afirmou o Primeiro-Ministro armênio, Nikol Pashinyan, está em curso mais uma limpeza étnica contra o povo armênio. A guerra desproporcional que se reinicia tem o ditador azerbaijano como líder e o patrocínio da Turquia, a mesma nação que perpetrou um dos maiores genocídios da história, daquela feita contra o povo armênio. Enquanto isso, com sua inação, o governo de Vladimir Putin que deveria ajudar a Armênia na proteção da região se soma aos cúmplices de mais um desastre humanitário.


Antonio CR Tupinambá


Fortaleza, 2 de outubro de 2023.




Vila de Garni na província de Kotayk, na Armênia





                    Yerevan -- Capital da Armênia.



terça-feira, 29 de agosto de 2023

Os dilemas do novo Brics

 


        Bandeiras dos países membros atuais dos Brics: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.


Brasil, Índia e África do Sul juntamente com Rússia e China se somarão à Argentina, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Irã e Etiópia para dar corpo ao que se conhecerá pelo Brics em sua nova formação a partir de janeiro de 2024. A sigla adotada continuará a mesma adicionada de um sinal +, Brics+, referindo-se ao grupo de origem e à sua sua última formação antes do ingresso dos novos membros. O que daí virá, no entanto, não deixa de aportar dúvidas, ainda que se esteja falando de um bloco não apenas de natureza econômica que visa se consolidar como um dos atores de relevância no cenário internacional e com o objetivo de se tornar um contraponto ao G7, o grupo formado pelas 7 maiores economias do planeta, que hoje dita as regras do jogo no cenário mundial praticamente sozinho. 



Mapa com os membros atuais do Brics (destacados em cor azul).

Depois do anúncio do grupo em formação e atualizado com seus dez membros, questiona-se como lidar com esse novo Brics quando o assunto em pauta seja  “Direitos Humanos”. O que se esperar da posição de cinco dos seus novos integrantes, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Irã e Etiópia, nesse debate? 



O anúncio foi realizado pelo presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, em entrevista a jornalistas em Joanesburgo (África do Sul).
Ele estava acompanhado de Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Xi Jinping (China), Narendra Modi (Índia) e Sergey Lavrov (Rússia).


E quanto aos anteriores: Rússia, China e India?  As dificuldades atuais em decisões nessa área por conta das posições questionáveis de Rússia e China são conhecidas, e de certo modo um campo em negociação, dada sua relevância econômica e uma vez estarem numa relação de dois para três nesse quesito “garantia de direitos humanos” nos países do bloco. Para que lado penderá a balança nas decisões de Órgãos como o Conselho de Direitos Humanos da ONU se o Brics terá em seu quadro mais cinco ditaduras, a maioria delas conhecidas por suas práticas sanguinárias no tratamento de seus cidadãos e na preponderância do fundamentalismo religioso nas decisões de Estado? Sabe-se que até mesmo a diplomacia brasileira observa na entrada desses novos membros um grande dilema para suas estratégias na política externa, que se afirma progressista no quesito Direitos Humanos e tem se posicionado nessa perspectiva interna e externamente. Uma declaração a que foi signatário o novo grupo poderia não passar de uma encenação pública, um agrado à comunidade internacional e mesmo aos diplomatas brasileiros céticos sobre as intenções “humanitárias” do grupo. Seriam críveis essas intenções mencionadas pelo bloco em defesa de direitos humanos e da democracia? Com que legitimidade regimes totalitários como Irã, China, Rússia, Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes ou Etiópia apoiarão necessárias resoluções em defesa dos direitos humanos se procedem como contumazes violadores desses direitos no cotidiano de sua politica de Estado?





            O que é o Brics?(1):

Brics é um grupo de países formado por cinco grandes economias emergentes: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. A partir de 2024 o bloco acrescentará ao rol de países integrantes atuais seis novos membros: Argentina, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã. O Brics não é um bloco econômico e funciona como um mecanismo internacional de cooperação. Deve contribuir para a maior inserção das economias emergentes na economia mundial e no contexto geopolítico internacional. O objetivo do Brics é a promoção de medidas de crescimento econômico e desenvolvimento socioeconômico sustentável entre países emergentes. Reuniões de cúpula são realizadas anualmente (a Cúpula dos Brics) visando ao alinhamento de políticas de desenvolvimento social e à reafirmação da cooperação entre os países em diferentes áreas de interesse. Um novo Banco de Desenvolvimento (NDB), mais conhecido como “banco dos Brics” foi criado em 2014 para o financiamento de projetos de infraestrutura e desenvolvimento nos países emergentes. A criação do Banco do Brics significou um aumento na integração de seus países e ocorreu na 6a. reunião de cúpula em Fortaleza (Ceará-Brasil). Atualmente o Banco é dirigido pela ex-presidente Dilma Rousseff, que também esteve presente na reunião que criou o banco em Fortaleza.


Antonio C. R. Tupinambá

Professor titular. UFC

Agosto de 2023.

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(1) A partir do texto disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/geografia/bric.htm>. Acesso em: ago. 2023.

domingo, 27 de agosto de 2023

O 27 de agosto é, no Brasil, o Dia d@ Psicólog@.





Hoje, 27 de agosto, comemora-se o Dia d@ Psicólog@. Ao longo de mais de seis décadas houve tempo para se refletir sobre como a Psicologia, ciência e profissão, vem contribuindo para melhorar experiências humanas em diversas situações, inclusive após a experiência extrema e atual vivida no quadro de pandemia que assolou o Brasil e o mundo. A Psicologia vem se construindo por meio de estudos e práticas cada vez mais engajados com os problemas pessoais e sociais, contribuindo, dessa forma, para a promoção da qualidade de vida e para a emancipação humana. Em certa medida, como ocorreu durante a pandemia, busca adaptar-se para poder cumprir sua missão de conciliadora entre o sofrimento e sua superação. Além da atuação clássica e mais conhecida nos consultórios, outros cenários exigem uma readaptação do seu modus operandi, para que cumpra o papel de aliada na superação dos problemas humanos tradicionais e emergentes, principalmente em situações extremas como ocorreu durante a pandemia de covid 19. Nesse caso específico, com o esforço científico comum conseguiu-se desenvolver formas inovadoras de abordagem, virtuais e remotas, que ao lado dos modelos tradicionais e presenciais se tornaram meios eficientes de intervenção, viabilizando a abordagem e o amparo de pessoas que precisavam lidar, também psicologicamente, com a crise resultante da experiência traumática da pandemia. Há, portanto, a busca de constante atualização da Psicologia para que continue cumprindo sua missão original de ciência e profissão indispensável ao bem estar humano e social independente das circunstâncias e atrelada ao momento histórico em que se vive. Conhecimentos e aplicações da psicologia são, portanto, amplos e sempre melhorados para atender às atuais e emergentes necessidades humanas. A relevante experiência de Psicólogos, por exemplo em contexto de guerras e seus desdobramentos, implicam em novos paradigmas de ação para ajudar na superação dessas vivências indesejáveis e traumáticas. Muito do conhecimento psicológico foi recuperado e readequado para o enfrentamento de desafios gerados pelos atuais conflitos internacionais causadores de um novo mal estar na civilização, qual seja, a volta do êxodo e das inúmeras perdas em consequência desses conflitos/guerras, que ao contrário do que se pensava, não foram superados e tendem a aumentar no mundo hodierno. Tais ações dos profissionais de psicologia ainda pouco conhecidas são reveladoras dos esforços permanentes de uma ciência, que nasceu e evoluiu com a missão de ajudar a compreender e lidar com o sofrimento humano. Esses problemas mundiais emergentes e suas consequências desestabilizadoras para, principalmente, a parte mais fraca do elo social, o cidadão comum, são hoje parte do rol de preocupações e tarefas que vêm sendo acolhidas e tratadas pelos psicólogos de diferentes áreas. Com o reconhecimento da grandeza do profissional de psicologia, aproveitamos a data simbólica do “27 de agosto”, na qual foi regulamentada a profissão de Psicólogo no Brasil, para nos congratular com todos esses profissionais que contribuem com a difícil e nobre missão de promoção da saúde e do bem-estar humano em diversas situações e condições. Ao cumprir sua missão com a enorme responsabilidade e o comprometimento exigidos pelo seu trabalho, viabilizam uma busca contínua de compreensão da natureza humana, o que traz seus consequentes benefícios ao homem e à sociedade.


Antonio C. R. Tupinambá

Psicólogo


27 de agosto de 2023

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

O Haiti também é aqui






A parte ocidental da ilha caribenha, La Española, obteve a independência dos seus colonizadores franceses e só então passou a ser chamada de Haiti. As políticas de exploração e sabotagem dos ex-colonizadores em conluio com os Estados Unidos impossibilitaram a construção da nova nação. A tentativa de implementação de um regime democrático nunca teve bons resultados. Sempre mergulhado em períodos de profunda instabilidade política, teve que trocar vários presidentes e passar por golpes de Estado, culminando com a deposição de seu principal nome na política que sucedeu a diferentes regimes brutais e ditaduras, o ex-padre católico Jean-Bertrand Aristide, presidente eleito democraticamente em 2001. Hoje o país se vê mergulhado em uma onda de violência e caos com policiais rebelados sendo vítimas de gangs, que assolam sua capital, Port-au-Prince. Com o aumento do número de agentes mortos, inclusive após ataques a esquadras policiais, a sociedade se vê refém e órfã. As Nações Unidas estimam que 60% de Port-au-Prince são controlados por diferentes gangs.  


                                                        Foto: Richard Pierrin / AFP

Talvez já estejamos nos acostumando às cenas intermitentes de profunda miséria seguidas por outras fugazes ondas de bondade e dedicação” de forças internacionais enviadas para aquela parte da ilha. Testemunha-se uma sequência de desmandos, incluindo o desrespeito a sua soberania, como em 2004, quando Jean-Bertrand Aristides foi deposto por um golpe militar. O terremoto que devastou o país e a desastrosa atuação da "tropa de paz" do exército brasileiro também liderada com atos de barbárie e terror pelo general Augusto Heleno aprofundaram os problemas vividos no país com sua já conhecida decadência social, política e econômica. Com a iminência de uma guerra civil após a queda de Aristides, foi criada a Minustah — Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti — pelo Conselho de Segurança da ONU em junho de 2004. Nomeada missão foi liderada pelo Exército brasileiro e tinha como objetivo principal  restabelecer a ordem social e levar ajuda humanitária no país. Quase 37 mil militares brasileiros comandados, inicialmente, pelo general Heleno integraram a missão, que terminou por ocasionar um grande crime humanitário em Port-au-Prince durante a invasão de um de seus maiores assentamentos de pobres, a Cité Soleil: “Em julho de 2005, segundo testemunhas, cerca de 300 soldados fortemente armados invadiram o bairro e teriam assassinado 63 pessoas além de deixar outros 30 feridos. A operação ´Punho de Ferro`, sob o comando do general Augusto Heleno, teria disparado 22 mil tiros, conforme investigação jornalística a partir do WikiLeaks”. Houve também muita violência dirigida contra estudantes e pobres que moravam nas favelas. Estupros de mulheres e homens e até mesmo uma responsabilização pelo agravamento da situação de epidemia de cólera resumem o quadro de desastre resultante da Minustah. Com esse histórico de mal feitos e mesmo tendo sido um caso de denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Heleno foi contemplado com o posto de ministro de Estado, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República no governo de Jair Bolsonaro. O general a serviço de Bolsonaro foi um dos suspeitos de, no final do seu mandato, integrar o bando que conspirava contra a democracia e apoiava um golpe de Estado após sua derrota eleitoral nas urnas. 

O ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) no governo de Jair Bolsonaro (PL), o general Augusto Heleno, participou de um grupo de WhatsApp no qual foram discutidas ações golpistas, segundo o coronel aviador reformado Francisco Dellamora, em entrevista ao UOL… O grupo denominado "Notícias Brasil" foi excluído em 8 de janeiro deste ano, quando bolsonaristas invadiram e depredaram os prédios dos Três Poderes, em Brasília. Também faziam parte o general da reserva Sérgio Etchegoyen, que comandou o GSI no governo Michel Temer (MDB), e outros 40 militares, entre oficiais da ativa e reserva. O grupo foi criado em 2016, durante o processo de impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff (PT).


  Manifestação organizada por moradores do Guarujá e parentes de mortos contra Operação Escudo —  Foto: Maria Isabel Oliveira/ Agência O Globo 


O Haiti é aqui

A ação desastrosa da força composta por soldados brasileiros no Haiti, uma “pacificação” de favelas de modo semelhante ao que acontece no Brasil e com militarização das forças policiais da ONU, pretensamente para  proteção da população, resultou em mais de 2 mil denúncias de abuso e exploração sexual, por parte dos soldados do general Heleno. 300 dessas denúncias também envolvem crianças (segundo a Associated Press). A Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti) foi comandada pelas tropas do Brasil por 13 anos e deixou, segundo informações, um cenário com vítimas de cólera, abusos sexuais, miséria e instabilidade política”. Vale a pena ressaltar que entre os altos postos de comando dessa tropa também fazia parte o hoje governador de São Paulo, o capitão do exército Tarcísio de Freitas. A ação policial que ocorre atualmente em São Paulo, não por acaso sob a batuta do seu atual governador reedita sua perversa participação na experiência do exército brasileiro na missão de paz no Haiti, que entre 2004 e 2017 viu como resultado dessa desastrosa atuação mais de 30 mil mortos no país. Um perfil que cabe muito bem no governo de Bolsonaro do qual fez parte e em sua continuidade que é cultivada, atualmente em nível estadual em São Paulo, por seu discípulo Tarcísio. Além de Tarcísio, mais sete dos militares integrantes da missão no Haiti receberam honrarias e fizeram parte do governo de Jair Bolsonaro. Como aconteceu no país caribenho, o governador Tarcísio não viu excesso na atuação da sua Polícia Militar nas favelas do Guarujá em São Paulo, que já resultou em mais de 16 mortos e muitos feridos. Após os graves ocorridos, a Defensoria Pública oficiou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) do estado um pedido para que a operação policial no Guarujá seja interrompida imediatamente. O órgão também solicita que os policiais militares envolvidos em mortes sejam afastados temporariamente das ruas mas, segundo o governador, a operação denominada “Operação Escudo” deve seguir até o dia 28 de agosto. A terceira operação mais letal no estado só fica atrás, em número de vítimas fatais, do 'Massacre do Carandiru’, que em 1992 deixou 77 mortos e dos “Crimes de maio”, que resultaram em 108 pessoas mortas em 2006.

Em São Paulo cumprir a legislação para evitar os excessos capitaneados pelas tropas de Tarcísio e sua equipe seria o começo da busca de uma solução momentânea à matança policial no estado. Já no Haiti, para frear o desastre atual, seria necessária a ajuda internacional imediata que esteja comprometida e seja respeitosa com os pleitos locais para o apoio às forças de segurança e não repitam os erros cometidos pelas forças de paz brasileira em meados dos anos 2000 ao escolherem líderes incompetentes e sanguinários.  Essa seria, no caso haitiano, a única saída em vista. Uma intervenção que poderia contribuir, efetivamente, a combater a dramática situação humanitária no país que acumula histórias de desmandos e manobras de forças externas mal sucedidas. O ministro de Planejamento e Cooperação Externa haitiano Ricard Pierre já havia declarado que está clara a inevitável deflagração de uma guerra civil caso essa ajuda não chegue a tempo. “A ONU segue expressando preocupação com a extensão da violência das gangues, o aumento dos assassinatos e sequestros e a violência sexual no Haiti. Diante da presença policial escassa, moradores começaram a cuidar da própria segurança. Em abril, por exemplo, um grupo de civis se apoderou de membros de gangues detidos, agrediu os mesmos até a morte e queimou seus corpos na rua”. Parece irônica mas é verdadeira, a comparação feita por Tarcísio em 2022 quando concorria ao governo de São Paulo. Um perfil “genocida” já estava claro na sua candidatura, o que levou o povo de São Paulo a cair nessa emboscada só pode ser explicado pela falsa ilusão de combate ao crime com o recurso do próprio crime, o que é uma falácia perigosa. 

O ex-ministro da Infraestrutura Tarcísio de Freitas (Republicanos) publicou nesta 4ª feira (1º.jun.2022) um vídeo relacionando a missão de paz no Haiti com o dia a dia da polícia de São Paulo. O político é a aposta do presidente Jair Bolsonaro (PL) na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes. No vídeo, Tarcísio, que participou da missão de paz no Haiti, afirmou que primeiro é preciso conquistar a paz, para depois mantê-la com ações sociais. “A experiência de enfrentamento no Haiti, de certa forma, nos ajuda a se colocar na situação do policial que está na rua todos os dias enfrentando a criminalidade.

Desta feita a tarefa de salvar um Haiti em vias de uma auto-destruição pode estar nas mãos da Organização das Nações Unidas. A crise humanitária em níveis até hoje não vistos no país pode ser estancada com o envio dessa força internacional coordenada pela ONU para evitar a completa falência do país afundado em mais uma terrível crise humanitária. Que esse Haiti não seja mais lá ou aqui.

 


  Porto Príncipe-Haiti. Moradias construídas em morro da capital do Haiti, Porto Príncipe (Joe Raedle/Getty Images)




Guarujá-SP. Foto: Lazaro Jr./Hojemais Aracatuda/AFP


Antonio C. R. Tupinambá

Professor — UFC

Julho de 2023.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Niger: uma aposta perdida

 



A tomada do poder pelos militares no Niger leva o Ocidente a rever sua aposta em transforma-lo num país democrático em meio ao caos de tantas outras nações que o cercam. O país que tem cerca de 25 milhões de habitantes se localiza na faixa de transição no continente africano, uma região semiárida conhecida por Sahel. Com três terços de seu território formados por deserto, tem à margem do rio Níger suas principais cidades e aglomerações urbanas. Assim como ocorre com muitos dos seus vizinhos, enfrenta uma luta permanente contra terroristas jihadistas, que empurram, com seus atos de extrema violência, centenas de milhares de pessoas para fora de suas casas. A grande presença ocidental no Níger não impediu mais um golpe que compromete sua frágil democracia, desestabilizando ainda suas instituições e forçando mais cidadãos a fugir e emigrar. O país é vítima desse novo golpe militar que se soma a quatro outros, além das muitas tentativas de golpe na sua recente história pós independência. O atual presidente Mohamed Bazoum representava a única esperança de se estabelecer um governo que viabilizasse a construção de uma democracia em uma região acostumada a movimentos golpistas e à imposição de regimes totalitários. Eleito há apenas dois anos, Bozoum foi a primeira experiência no país de uma transição de poder pacífica desde sua independência da França em 1960. O país que já travava uma difícil luta contra a violência jihadista deve agora sofrer as consequências da iminente saída de forças de apoio formadas por militares estrangeiros, principalmente europeus. Níger era um dos últimos aliados do Ocidente na região do Sahel, enquanto os vizinhos Mali e Burkina Faso sempre recorreram a outros parceiros, incluindo a Rússia. Várias autoridades já protestam contra a ação golpista militar e continuam tendo o presidente Bazoum como o legítimo mandatário no país. Organismos internacionais também apelam para que o presidente seja libertado e o estado de direito restaurado. A tomada de poder pela Guarda Presidencial e militares comprometerá o futuro da nação envolta em sérios problemas políticos e econômicos, que vinham sendo enfrentados pelo governo democraticamente eleito mas brutalmente deposto. Governo que tinha na França sua maior aliada, tendo em vista os interesses mútuos em combater a crescente onda de terrorismo jihadista na região. Já se observa, como oportunista, uma presença cada vez maior da Rússia em países africanos, o que vem de encontro ao fracasso dos ex-colonizadores que mantiveram sua influência no país, muitas vezes percebida como predatória. Hoje a França também paga o preço por conta de sua política colonialista equivocada e vê sua presença cada vez mais enfraquecida e questionada por parte da população local. O grupo de mercenários russo “Wagner” se diz satisfeito com a destituição do presidente nigerino e oferece ajuda aos golpistas, afirmando que aquilo que aconteceu nada mais foi do que uma luta do povo contra seus colonizadores, que querem mantê-los no mesmo estado em que se encontravam há centenas de anos. A França não reconhece o governo imposto pelo golpe liderado pelo general Abdourahamane Tchiani. Paris tem Mohamed Bazoum,  o presidente eleito, como  o verdadeiro presidente da República do Níger. A deposição de Bazoum se configura, para a França e outros países ocidentais, um poder ilegítimo e perigoso para o Niger e outros países naquela região.  A retomada de relações diplomáticas e a continuidade das colaborações econômicas e militares internacionais só acontecerão, segundo antigos parceiros, após a libertação do presidente Bazoum e o restabelecimento da ordem constitucional no país. Vozes na África também se levantam para mostrar a insatisfação com o golpe militar ocorrido no Níger. Vários líderes de países da África Ocidental emitiram um ultimato  aos militares que derrubaram o presidente e não descartam o uso da força para restabelecer a ordem constitucional no país, além da imposição de sanções financeiras. O presidente do Quênia, William Ruto, criticou duramente a insubordinação dos militares, considerando-a um ato inconstitucional em seus termos mais fortes, afirmando ainda que com esse golpe a África sofre um sério retrocesso em seu progresso democrático: "exortamos todas as partes a se engajar em um discurso construtivo para restaurar a paz nesta nação fraterna que se manteve firme como um baluarte contra o terrorismo e seus agentes na região do Sahel”, foram essas suas palavras ao condenar o golpe. 


Apoiadores das forças de defesa e segurança nigerianas atacam a sede do PNDS, o partido do presidente deposto Mohamed Bazoum, em Niamei  - Foto: AFP


Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, 1 de agosto de 2023.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Em Uganda, liberdade para matar!

 

            Foto: Dai Kurokawa/dpa/picture alliance.


Na Letônia Edgar Rinkevics foi eleito presidente pela maioria dos membros do parlamento em 31 de maio próximo passado, exatamente dois dias após o decadente regime falso moralista ugandense, que percorre o caminho inverso dessa emancipação histórica, introduzir a pena de morte para homossexuais no país africano. Rinkevics é o primeiro político abertamente gay a se tornar presidente da nação báltica. Agora em Riga, capital do país, alguém que promete lutar pela garantia de direitos de todos os modelos de casamento, inclusive entre pessoas do mesmo sexo. Enquanto alguns países como a Letônia demonstram, com esse exemplo, avanços na questão gay, outros se afundam no atraso e na barbárie. Esse é o caso de Uganda e sua nova legislação homofóbica. A lei que prevê a pena de morte para homossexuais por serem "culpados de crimes graves” tomou corpo no país africano, que já teve a frente de seu governo o folclórico e perigoso presidente, com rumores de prática de canibalismo, Idi Amin Dada. Hoje, um presidente também "canibal dos direitos humanos" continua a tradição de desrespeito a minorias no país, onde pensávamos havia sido superada a história perversa cultuada pelo seu antecessor inclassificável. Os parlamentares não definiram quais seriam esses crimes mas na letra da tal lei estão comportamentos atribuídos ao círculo de pessoas homossexuais que, talvez naquele mundo machista, seja uma ameaça para suas frágeis identidade masculina e integridade psíquica. Não se pode descartar que a motivação desse grupo de extremistas tenha por vezes em sua base princípios religiosos fundamentalistas e equivocados. Em vez de terapia ou democracia, perseguição; em vez  de uma religião que se empenhe em promover a paz e a amizade entre os povos, o fundamentalismo e o ódio. “'Somos vítimas dos evangélicos, todos os dias, diz Victor Mukasa... Em uma sala de conferências na Catedral Nacional em Washington, D.C., ele relata experiências em seu país natal, Uganda. Nesta noite, o homem de 37 anos veste uma túnica africana branca decorada com uma borda preta e um chapéu combinando. Por muitos anos, Mukasa lutou com o conflito entre sua fé e sua orientação sexual. Na época, procurava ajuda em uma igreja em Uganda. 'Pedi para ser curado da minha homossexualidade e acabei sendo abusado pelos chamados "homens de Deus" - os evangélicos', lembra. Em um dos eventos, teve que se despir. Os pastores impuseram as mãos sobre ele, incluindo seus órgãos genitais, 'para expulsar o espírito da homossexualidade’”.(dw.com). Os evangélicos estadunidenses querem exportar o ódio que cultuam, para o continente africano. "[Eles] acreditam que perderam a 'guerra cultural' em casa — estado após estado permitindo o casamento gay ou o aborto. Eles ainda veem oportunidades na África — e investem seu dinheiro aqui… Em 2009, houve um clamor global quando foi revelado que o Parlamento de Uganda estava considerando aprovar uma 'lei anti-gay'. Como a lei previa até mesmo a pena de morte em casos de 'homossexualidade agravada', ficou conhecida e condenada mundialmente como a 'Kill the gays bill'. O que quase ninguém sabia: a iniciativa não foi um surto indiscriminado de homofobia africana, mas o resultado de muitos anos de 'trabalho de proselitismo' de cristãos evangélicos americanos em Uganda”. (Matern Boeselager, FYI.de). No país não há distinção entre líderes religiosos ou políticos no discurso de ódio anti-gay. Declarações homofóbicas e apoio à legislação nacional que puna os homossexuais está na pauta do dia, seja no parlamento ou no púlpito das igrejas contaminadas pela população colonizada por evangélicos fascistas e homofóbicos e por mais uma onda de ódio importada dos Estados Unidos. O povo de Uganda se uniu aos pseudo-religiosos fascistas estadunidenses, algozes históricos de sua etnia, para combater um inimigo imaginário comum.  "O discurso de ódio contra homossexuais está na ordem do dia no país da África Oriental com cerca de 45 milhões de habitantes. Líderes religiosos e políticos às vezes superam uns aos outros em suas declarações homofóbicas — muito antes de a lei ser aprovada. Embora já existam leis anti-gays, a nova lei é ainda mais intrusiva à privacidade”. (obermain.de). O projeto previa até dez anos de prisão para relações homossexuais. As pessoas que conscientemente abrigam homossexuais, prestam-lhes assistência médica ou assistência jurídica podem ser condenadas a até dez anos de prisão; projeto de lei que na altura ainda não incluía a pena de morte, o que ocorreu durante o debate desencadeado por ele. Houve parlamentar que chegou a pedir que os homossexuais fossem castrados ou esterilizados. A pior lei desse gênero no mundo está para ser realidade no país que tem problemas socioeconômicos graves, sob um governo de déspotas, mas prefere punir um grupo específico da população e assim fugir de seus próprios demônios e da realidade macabra em que vive. Em 2011 O ativista gay mais famoso de Uganda foi assassinado. David Kato foi atacado em sua casa no subúrbio de Mukono, em Kampala, na tarde de uma quarta-feira. Ainda foi levado com ferimentos a um hospital, mas não resistiu e morreu. O controverso projeto de lei havia sido apresentado no parlamento há cerca de um ano dessa tragédia. Essa violência impune contra Mukono já simbolizava, de certo modo, a viabilização da pena de morte pelas mãos de populares sendo legitimada na esfera governamental. A nova legislação quer, ainda que isso seja um paradoxo, deixar mais rígidas as punições anti-homossexuais existentes. Esse paradoxo foi atualizado quando os extremistas chegaram a incluir a pena de morte, provocando indignação nas organizações de direitos humanos que, mesmo sendo proibido, fizeram várias demonstrações de protesto. Do exterior vieram muitas  críticas. Na Áustria um tweet ministerial diz: "Estamos chocados com a lei anti-homossexualidade aprovada pelo Parlamento em #Uganda. Essa legislação discriminatória, que criminaliza pessoas #LGBTIQ e prevê prisão perpétua e até pena de morte, viola #direitoshumanos básicos. Pedimos ao Presidente Museveni que não assine!”.  Enquanto isso, a União Europeia mostrou-se preocupada e rejeitou peremptoriamente a pena de morte em qualquer circustância. Já a ONG de direitos humanos Human Rights Watch reagiu com indignação. A ONU, através do seu comissário de Direitos Humanos descreveu a lei como uma das “piores do gênero no mundo”. A lei só entraria em vigor caso fosse assinada pelo presidente quase “vitalício” de Uganda, Yoweri Museveni, o que de fato aconteceu. Apesar das críticas internacionais, na segunda-feira, dia 29 de maio de 2023, a legislação anti-homossexual foi assinada numa versão ligeiramente modificada da "Lei Anti-Homossexualidade 2023", da forma como havia sido apresentada pelo Parlamento no início de maio. Os governos que doam dinheiro para ser aplicado em setores diversos da economia do país ameaçaram parar de fornecer ajuda. Essa ilusão dos países que injetam dinheiro na ditadura ugandense de que, por causa de suas ameaças, haveria um retrocesso na draconiana lei, como esperado, não ocorreu. 










Hoje foi ratificada e validada para provar que a história não ensinou nada aos que no passado foram presas fáceis daquela Europa invasora, racista e escravagista. Repetem em dose cavalar os erros dos seus colonizadores no tratamento a quem não é igual, antes na cor, hoje na orientação sexual. Que sejam tomadas medidas extremas pela ONU e pelos países que se dizem “civilizados", para forçar o presidente ditador e seus asseclas a retroagir imediatamente com a medida que põe esses detratores ugandenses no topo dos incivilizados, cruéis e desumanos do planeta. É inegável que vivemos em uma sociedade global cada vez mais interdependente que não deve aceitar aberrações como as que praticam os políticos e religiosos ugandenses de matiz fascista contra um grupo específico da população local. Pelo bem do nosso futuro comum, temos a obrigação de combater essa assombrosa afronta aos direitos humanos universais em Uganda. O mesmo pode ocorrer como no passado com o comércio internacional de escravos, que deixou marcas indeléveis e consequências duradouras em nossas histórias, até hoje insuperáveis. Não queiramos que isso se torne mais uma dívida irreparável; combatamos juntos e supra-nacionalmente esse descalabro em Uganda antes que muitas vidas sejam ceifadas em nome do egoísmo e da intolerância. 




Antonio C. R. Tupinambá

Berlim, 30 de maio de 2023.


terça-feira, 9 de maio de 2023

No meio do caminho tinha um muro



              Foto de Sara Piteira (https://www.rtp.pt/noticias/mundo/do-muro-de-berlim-as-fronteiras-vedadas-na-europa_i1166914)


A imigração deve, assim, ser entendida como um grito contínuo de manutenção da sobrevivência frente a uma ordem hegemônica que invade, arde e maltrata a condição básica da existência-sobrevivência humana.

Karen Honório



Utilizaremos a seguir os termos “migrante, migração e correlatos”, contudo deixando claro que os utilizamos no sentido empregado por Omar Aktouf de "pessoa que foge”. O correto seria chama-los de pessoas que fogem de condições injustas, adversas nas quais foram lançadas e abandonadas. Os governos dos países procurados por essas pessoas preferem a elas atribuir toda a culpa e responsabilidade pelo seu ato de fuga. É crescente a tentativa de isolamento e da construção de mecanismos para deixa-las longe e, se possível, devolve-las imediatamente ao lugar de onde vieram para não ter que com elas conviver. Quando inevitável ou ineficazes em suas tentativas de expulsão/devolução, um novo problema surge: como integra-las pois são personae non gratae e melhor seria tentar nelas evocar o sentimento de desejar o retorno ao lugar de origem? Talvez nos tempos atuais a única experiência humanitária verdadeira de abordagem de migrantes ocorreu na Alemanha em 2015, quando a chanceler Angela Merkel, com sua força política e à revelia da opinião pública, conseguiu lidar com mais de dois milhões de pedidos de asilo apresentados por migrantes que chegaram ao país de forma clandestina. Após a chegada muitos deles puderam aprender a língua e se aproximar da cultura do país, obtiveram imediatamente o direito de procurar trabalho e de por seus filhos nas escolas. Muitos provenientes desse grupo de imigrantes clandestinos passaram a contribuir para a prosperidade alemã, indo na contramão do estigma imposto em outros países europeus. Hoje se vêem exemplos de recrudescimento da rejeição de experiências como a alemã, apesar de seu relativo êxito, levando-se em conta o número de imigrantes e a situação de pressão social e política que uma suposta “invasão” teria gerado no país, inclusive fortalecendo partidos e agrupamentos políticos de extrema-direita. O Governo sueco pretende expulsar cerca de 80 mil estrangeiros que venham a ter seus pedidos de asilo negados. Em 2015, a Suécia veio logo após a Alemanha como destino de refugiados. Os migrantes que pedem asilo no país escandinavo devem ser expulsos para países que não fazem parte da União Europeia. Ao longo da fronteira da Polônia com o enclave russo de Kaliningrado uma cerca de arame farpado deve ser ainda mais reforçada. Entre a Lituânia e Belarus vigora um estado de exceção para viabilizar a retirada dos imigrantes; Entre Polônia e Belarus, por seu turno, milhares de migrantes que tentam atravessar a fronteira podem intensificar um conflito entre as duas nações vizinhas. A União Europeia acusa o ditador belarusso Aleksandr Lukashenko, um aliado de Vladimir Putin, de ser o responsável pela situação na fronteira, criando o imbróglio como represália por sanções que sofre de países ocidentais. A Coligação Nacional da direita e o Partido dos Finlandeses se unem para barrar a imigração em seu país. A Dinamarca defende um acordo entre países da União Europeia para a criação de centros de refugiados fora do continente. Uma prática chamada de “pushback" vigora em diversas fronteiras europeias para ser aplicada aos que chegam por terra ou por mar em busca de asilo. Trata-se na prática de promover a expulsão das pessoas que estão chegando na fronteira por meio de intimidação ou até mesmo praticando maus tratos e humilhações, para obstruir a continuidade da jornada. Este também é no atual momento, o caso da Itália, sob a Primeira Ministra Giorgia Meloni, declarada fã do regime de Mussolini e representante de um movimento de cariz fascista. Meloni é a primeira mulher a liderar um governo italiano e declarar estado de emergência no país, para criar as condições de facilitar a expulsão dos que chegam em busca de asilo. Em 9 de novembro de 1989 caía o muro de Berlim, símbolo da divisão do mundo e da Europa no período pós-Segunda Grande Guerra. Desde então, novos muros — físicos ou políticos estão sendo construídos. 

Nas décadas posteriores à demolição, o ocidente europeu percorreu um caminho quase contínuo de integração e paz. Horst Köhler, antigo Presidente alemão, definiu mais tarde o que aconteceu no dia 9 de novembro como o fim de um “edifício do medo” e o início de um “espaço de alegria”. Pedaços físicos de pedra viajam pelo mundo como lembrança da vitória da democracia, mas também como amuleto para a queda de outras barreiras.Os últimos trinta anos consolidaram a imagem do Muro de Berlim como símbolo de libertação. Mas foi também durante esse tempo que se construíram novos muros na Europa. Desde então, a União Europeia ergueu quase mil quilómetros de fronteiras físicas no seu território.(1)


O propósito é vedar o território europeu, tornar a Europa uma Fortaleza segura apenas para os seus. Seria essa a maneira de controle das formas de imigração ilegal? A resposta é sim para os que formam o grupo de Visegrado — Eslováquia, Hungria, Polônia e República Checa com o apoio da Áustria, Itália e Grécia. “Há décadas que barreiras físicas protegem as fronteiras físicas da Europa. Os muros de Ceuta (1993) e Melilla (1996) foram os primeiros a ser erguidos, mas outros multiplicaram-se posteriormente, cobrindo agora mais de dois mil quilômetros de território. A Bulgária, por exemplo, o país mais pobre da UE [na qual entrou em 2007], instalou uma vedação de 97% da sua fronteira com a Turquia”.(2) A fabricação de um discurso contra esses seres humanos que fogem e "migram" tem o objetivo de a eles imputar toda a culpa pelo ato de deixar seu lugar de origem em busca de dias melhores alhures, muitas vezes como única possibilidade de sobrevivência. No entanto, há de se pensar que mesmo o conceito de pessoas que migram, como se fossem aves de arribação, não corresponde ao que de fato ocorre com essas pessoas. Para Aktouf (3), um dos exemplos mais odiosos do mecanismo de fabricação da falsa consciência pode ser resumido nessa palavra, tão diluída e tão dramática:  

…aquela pela qual designamos essa nova espécie humana vagando, errante e em desespero, por todos os lugares, chamada de “migrantes”. Não passa um dia sem que nossos ouvidos sejam alcançados pelos sons estridentes desses movimentos das multidões cada vez maiores, chamadas de "migrantes", que tentam de mil e uma maneiras, cada uma mais trágica que a outra, escapar da  angústia, do terror, da morte, das carnificinas organizadas, de guerras por procuração, da devastação de multinacionais, da fome extrema, da decadência absoluta ... Eles enfrentam muros e muralhas, arame farpado e minas, balas de metralhadoras e cercas... para, como dizem ... “migrar". Mas existem apenas algumas espécies animais que migram, nenhum humano o faz. Alguns humanos podem emigrar, circular, transumar, viajar ... mas “migrar” não! Estamos perante o mais sinistro eufemismo público da história: esses pobres coitados, destituídos de tudo e ameaçados até na carne e na vida, não migram. Eles fogem! Eles fogem de condições tornadas além do desumano pela voracidade das multinacionais, pelas guerras petroimperialistas (o caso de todo o Oriente Médio, por exemplo), pelas desigualdades insuportáveis, pela ganância dos dominantes. Não se pode chamar isso de “migrar”. Mas se faz isso por um mecanismo que o meu irmão argelino Nobel de Literatura, Albert Camus, já havia denunciado na sua época: “Nomear mal é contribuir para a infelicidade da humanidade”. Hoje em dia, essa falsa nomeação se tornou um instrumento de desinformação e deformação sistemática da realidade: em vez de  chamar essas pessoas pelo que realmente são, isto é, verdadeiros "resíduos mortificados vivos", segregados por um mundo assassino de ordem econômica, por suas múltiplas consequências, por suas guerras de expansão infinita, se utiliza de um eufemismo asqueroso "tranquilizador", fazendo-os passar por caprichosos resmungões insatisfeitos com sua situação original, invejosos do sucesso alheio…Esses pobres, quase "restos humanos ambulantes”, não são e nunca foram "migrantes": eles não são mais que vítimas das consequências das ações (pilhagem, devastação climática e ecológica, guerras, saques de terras e mares…) dos partidários desta ordem mundial neoliberal agora tão insustentável quanto criminosa, cujos governantes são tão loucos e cruéis quanto insaciáveis.

 De todo modo o problema social da migração continuará pelo mundo. Tampouco é uma questão apenas europeia. Ocorre em consequência dos efeitos de desigualdades sociais, governos corruptos, guerras, catástrofes da natureza em decorrência do aquecimento do planeta, somadas à ausência de ações para mitigar os problemas locais, os verdadeiros propulsores da mobilidade voluntária e involuntária, a maioria das vezes à margem da legalidade, aos olhos nus de autoridades locais corruptas e coniventes e com a ajuda calculada de gangues de traficantes. É avassalador o crescimento do número de pessoas nessa situação desumana. Se fosse contada em termos da população de um país, seria o quarto maior das Américas, perdendo apenas para os Estados Unidos, Brasil e México. Seria um país com quase o dobro dos habitantes da Argentina, mais que o dobro do Canadá e trinta milhões a mais que a Colômbia. Fosse a população de uma nação européia, se colocaria imediatamente após a Alemanha, ocupando o segundo lugar em número de habitantes no velho mundo. Caso consideremos todos os países no mundo seriam apenas dezenove com maior número de habitantes. Essas comparações revelam a dimensão da tragédia social e humanitária de grande parte dos oitenta milhões de imigrantes, um número crescente a cada ano. Há uma década havia a metade dessa cifra atual. A quantidade de pessoas que fogem ao redor do planeta nunca foi tão grande. Muitas estão em fuga dentro do próprio país, abandonam zonas de conflito, em guerra, assolados pela fome, ou perseguição religiosa e doutras causas que têm principalmente na ação (des)humana seus fundamentos. Ressalte-se que a situação se agravou em proporções de alarme sanitário, face à pandemia em escala mundial. Somente durante o ano 2019 se somaram quase nove milhões de pessoas refugiadas, segundo a ACNUR, agência da ONU para refugiados. Esse crescimento vertiginoso da população migrante impediu qualquer comemoração em 20 de junho, Dia Mundial do Refugiado. Em lugar de comemoração apenas uma questão deve ser colocada: O que fazer  frente ao crescimento vertiginoso da população de migrantes? Dentre os muitos países que contam para esse aumento pode-se destacar a República Democrática do Congo, o Iêmen e a Síria, além da região conhecida como Sahel, uma faixa de transição no continente africano, região semiárida se estendendo da Mauritânia ao Sudão, compreendendo partes do Senegal, Mali, Burkina Faso, Argélia, Níger, Nigéria, Chade, Camarões, Sudão do Sul, Etiópia e Eritreia. Em Burkina Faso, cerca de 80 mil pessoas foram forçadas a se deslocar dentro do próprio país em 2019, número que se elevou para quase 850 mil nos dias de hoje, nesse caso, a maioria foge de milícias jihadistas. A ACNUR calcula que apenas em Burkina Faso houve um total de 300 mil novos deslocamentos internos em 2020. Nas Américas, foi na Venezuela, onde se teve a grande maioria de pessoas fugindo para outros países. Calcula-se que mais de 3,7 milhões de venezuelanos abandonaram suas casas em busca de asilo em países com os quais divide suas fronteiras ou alhures. A ACNUR também constatou que mais de dois terços dos refugiados internacionais vêm de apenas cinco países: além da Venezuela, há 6,6 milhões da Síria, 2,7 milhões do Afeganistão, 2,2 milhões do Sudão do Sul e 1,1 milhão de Mianmar. No país asiático o povo rohingya é vítima de uma limpeza étnica que resultou no êxodo em massa. Na cidade Cox’s Bazar na fronteira de Mianmar, no Bangladesh, vive cerca de um milhão de rohingyas que fugiram da repressão orquestrada pelos sanguinários militares birmaneses, o que já foi considerado mais um caso de genocídio. Antes de serem expulsos perderam a cidadania e aqueles que não lograram sair, têm a liberdade tolhida e são vítimas de atos de violência. No entanto, a maioria dos que fogem dos seus países de origem ao redor do mundo não chega tão longe: um grande número passa a viver no país mais próximo, o vizinho cuja fronteira é alcançada por longas caminhadas ou meio de transporte mais acessível, mesmo que perigoso ou muito dispendioso para os já depauperados migrantes. "E assim é que a vasta maioria - 85 por cento - de todos os refugiados procuram proteção em países pobres. 80% de todas as pessoas deslocadas estão em regiões ou países afetados pela desnutrição”.(4) Há países que receberam muitos refugiados que já não contam mais com um retorno para suas pátrias, diferentemente do que ocorria décadas atrás quando muitos retornavam. Essa nova realidade de sempre novos refugiados e deslocados, enquanto poucos retornam a suas pátrias termina por complicar a equação.

Era diferente para os refugiados nos anos 1990, quando a guerra grassava nos Bálcãs, havia uma disputa pela fronteira entre Mali e Burkina Faso ou uma guerra civil na República do Congo. Naquela época, 1,5 milhão de pessoas podiam voltar para casa todos os anos, agora são apenas 400.000 os que conseguem voltar”.(5)

A guerra na Síria dura há mais de onze anos e transformou cerca de treze milhões de pessoas em refugiados requerentes de asilo, além de outras que se deslocam dentro do seu próprio país. De um lado Venezuela, Síria, Afeganistão, Sudão do Sul e Mianmar, os cinco países que representam dois terços dos refugiados no mundo e do outro, na lista de países que mais recebem refugiados, a Alemanha, ocupando uma posição de destaque. No entanto, outros países que diferentemente dos privilegiados do Primeiro Mundo, têm sérios problemas políticos e econômicos também se vêem na contingência de abrigar muitos dos que não tiveram escolha e adentraram seus territórios. Para eles a única saída foi trocar a pobreza do seu país por outra pobreza, além fronteira. O pouco que têm os anfitriões, não chega para ser dividido, gerando intolerância e xenofobia em uma população pouco esclarecida e já cansada das próprias mazelas domésticas, o que complica ainda mais a vida dos novos moradores. Muitos transitam entre países fronteiriços, outros entre regiões; nesse caso deslocamentos dentro das fronteiras nacionais. Grandes fluxos de estrangeiros terminam ficando nos países que deveriam ser abrigo temporário como Turquia, Colômbia, Paquistão e Uganda; desses, poucos conseguem um dia retornar ao país ou região de origem. Na Turquia mais de 3,6 milhões de sírios; na Colômbia venezuelanos buscam abrigo depois de empurrados para fora de sua pátria em razão da complicada situação política e econômica: "A Colômbia é a mais atingida pela crise da Venezuela. Devido às grandes incertezas socioeconômicas e aos surtos regulares de violência no país vizinho, acolhe um grande número de refugiados venezuelanos. Em abril de 2020, havia mais de 1,8 milhão. Além disso, até setembro de 2019, quase 500.000 venezuelanos usaram a Colômbia como país de trânsito para chegar ao Equador ou outros países do sul”.(6) A saga venezuelana continua atual. Em dezembro de 2020 pelo menos vinte e um venezuelanos refugiados morreram ao tentar chegar de barco a Trinidad e Tobago. Pode haver ainda mais vítimas no grupo que saiu da cidade de Güiria, no estado venezuelano de Sucre, rumo à ilha caribenha a  apenas cerca de 15 km da costa venezuelana. Em solo paquistanês e iraniano já se encontram quase 2,4 milhões de refugiados afegãos enquanto 1,14 milhão de refugiados vivem em Uganda, país africano que recentemente passou por complicado processo eleitoral presidencial e se encontra com sérios problemas na política local. Em época de pandemia de covid-19 os problemas se multiplicaram e tornaram a luta contra o vírus ainda mais desafiadora. Como lidar com a necessidade de cuidados exigidos pela pandemia em situação de fuga, e na vida, em acampamentos de refugiados, abrigos lotados ou até mesmo na rua? Em países mais pobres, acampamentos são erguidos em regiões muitas vezes de difícil acesso para grupos de apoio, sem água potável, alimentação escassa e a falta de outros recursos básicos para a sobrevivência, já difíceis de se obter mesmo em outros tempos anteriores à pandemia. Pergunta-se sobre quem deve pagar para que esses países anfitriões possam continuar seu trabalho junto aos refugiados que recebem.

Os refugiados estão atualmente "enfrentando uma emergência dupla e inimaginavelmente grande: conflito e deslocamento, bem como a pandemia Covid-19 e a crise econômica global que ela desencadeou, disse David Miliband, presidente do Comitê Internacional de Resgate (IRC). Os países onde vive a maioria dos refugiados e pessoas deslocadas internamente estavam lutando contra a Covid-19 com recursos extremamente limitados. "Os novos números de refugiados devem, portanto, ser um sinal de alarme para todos”.(7)


A realidade dos refugiados em um cenário de pandemia acrescentou outras dificuldades aos órgãos que tentavam ajudar os atingidos e também os países anfitriões, muitas vezes já sobrecarregados com problemas domésticos. Baseado no que afirma Filippo Grandi(8), Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, não se trata mais, como em outros anos, de uma situação temporária e reversível, principalmente por conta dos conflitos nas regiões de origem que forçam a fuga, não serem debelados a tempo, impedindo qualquer tentativa ou plano de retorno. Em países do chamado Terceiro Mundo que recebem grandes contigentes de imigrantes a sobrevivência mínima é o desafio maior. E mesmo em países mais estruturados, raras experiências trazem bons resultados por meio da implementação de uma política de integração satisfatória para os que chegam já desesperançosos, sofridos e com pouca fé no futuro. Sem lar, sem trabalho e muitas vezes deixando para trás entes queridos têm que enfrentar novas barreiras no território desconhecido, uma torre de Babel, um mundo repleto de desafios e medo e a dúvida se haverá acesso à educação, à saúde e ao trabalho. A saga continua mesmo depois de ter, a duras penas, sobrevivido a longa e arriscada jornada. Uma experiência que deve ser lembrada ocorreu na segunda década deste século e vem da Europa, mais especificamente da Alemanha. Milhares de pessoas passaram por várias fronteiras até aportar no que consideravam o solo mais seguro para conquistar e superar o horror da guerra que haviam deixado para trás. Algo novo ocorria e parecia uma alternativa aos muitos fiascos da política de imigração em diferentes países, ainda que ricos e desenvolvidos. Levando-se em conta o que ocorreu com o grande fluxo migratório na Europa em consequência da guerra na Síria, a reação da Alemanha, com sua chanceler Angela Merkel, difere das experiências ruins, mal sucedidas, como por exemplo aquela que ocorreu com a onda de imigração de uma Iugoslávia em colapso nos anos 1990.

Naquela época, o pressuposto era: as pessoas vão embora de novo, se for necessário vamos deportá-las. Um erro que mais tarde teve suas consequências. Muitos ficaram, mas ninguém se importou com o que acontecia com eles. E muitos lutaram para encontrar trabalho. Se encontrassem algum, raramente ganhavam o suficiente para viver ou tinham uma pensão decente. Afinal, esse erro não se repetiu depois de 2015. Uma verdadeira indústria de integração foi construída para uma parte considerável dos recém-chegados, o que é particularmente útil na sua entrada no mercado de trabalho: cursos de línguas, pós-qualificação e formação adaptativa, promoção do reconhecimento de competências formais e informais — um conjunto de ferramentas com as quais os primeiros recém-chegados só poderiam sonhar. E assim, cinco anos após sua chegada, dois terços dos refugiados de 18 a 64 anos conseguiram emprego. Mais de 55.000 pessoas dos oito países de origem de emigração mais importantes estão concluindo um estágio, cerca de 270.000 frequentam a escola e quase 20.000 estudam em um universidade.(9)

O governo conseguia, apesar dos imbróglios políticos, a estabilidade necessária para superar os erros dos anos 1990 com a acolhida dos imigrantes majoritariamente oriundos da antiga Iugoslávia. Um novo paradigma foi criado para os recém-chegados, principalmente os que vinham das longas e perigosas jornadas por terra desde uma Síria em guerra civil, via Turquia, passando ainda por mares e fronteiras. Enquanto o país desenvolvia essas novas estruturas para a integração dos imigrantes, principalmente visando a uma consequente entrada no mercado de trabalho para uma vida futura mais sólida, outros países ainda patinavam com suas tentativas repetidas ou amadoras de fazer com que os imigrantes fossem pelo menos aceitos, evitando ataques da população cética e influenciada pelos movimentos e partidos de extrema-direita. Muitos países do Leste europeu, como Hungria, Romênia, Bulgaria, Polônia etc. recusaram-se a receber refugiados e parte deles construiu inclusive barreiras físicas para impedir a entrada ou passagem dos refugiados desesperados por seus territórios. Aqueles que conseguiam entrar eram, de preferência, enviados em comboios para outros países, principalmente Alemanha. Também em outras nações europeias como a Grã-Bretanha e países escandinavos houve barreiras físicas e resistência política à acolhida desses estrangeiros. Como a situação piorava dramaticamente na Síria em 2015, mais de quatro milhões de pessoas fugiam rumo à Europa, incluindo nesse contingente aqueles vindo de regiões como Eritreia, Iraque ou Norte da África cuja rota era pelo Mediterrâneo. 

À falta de consenso para a distribuição de migrantes através de cotas, soluções mais imediatas foram implementadas. A Hungria foi pioneira. Embora já existissem outros muros no território europeu, Viktor Orbán [Primeiro Ministro húngaro] foi o grande impulsionador da Europa Fortaleza, nome com que ficou conhecida a estratégia de fortificação das fronteiras terrestres e que engloba, agora, agências europeias, polícias fronteiriças nacionais e quilómetros de barreiras físicas. Ao mesmo tempo que os governos dos países mais afetados pela crise migratória se voltaram para o encerramento das fronteiras, a Comissão Europeia reforçou a patrulha das mesmas através da Agência Europeia para o Controlo da Costa e das Fronteiras (Frontex). A Frontex é responsável por monitorizar as fronteiras europeias e repatriar migrantes sem documentos que não sejam requerentes de asilo. O orçamento da polícia fronteiriça europeia aumentou de 6,2 milhões de euros para 333 milhões entre 2005 e 2019. Em paralelo, aumentou também o orçamento para as deportações, de 80 mil euros para 63 milhões durante o mesmo período.(10)




Na contramão dessas experiências traumáticas, a experiência positiva com a imigração de ucranianos em 2022 em diversos países europeus após a invasão russa. Quando cerca de quatro milhões fugiam em várias direções, recebiam, onde chegavam, tratamento especial e o estatuto de “proteção temporária”; uma decisão política que foi elogiada pela Comissão Europeia que, em contrapartida, proporcionou imediato apoio financeiro para os Estados-Membros acolhedores. Esta proteção temporária permitiu aos "ucranianos trabalhar, estudar, ter uma casa e se beneficiar de cuidados de saúde, sem terem de esperar anos e anos por uma resposta aos seus pedidos de asilo”(11):

 Con sus hijos en un brazo y sus pertenencias en el otro, cientos de miles de refugiados ucranianos llegan a países vecinos, donde han sido bien recibidos por los gobernantes de naciones como Polonia, Hungría, Bulgaria, Moldavia y Rumania. Si bien la hospitalidad ha sido elogiada, también ha hecho resaltar las enormes diferencias en el trato que se les da a los migrantes y refugiados de Medio Oriente y África, en especial a los sirios que llegaron en 2015. Algunas de las palabras de estos gobernantes les resultan perturbadoras y dolorosas. "Estos no son los refugiados a los que estamos acostumbrados... estas personas son europeas”, dijo el primer ministro de Bulgaria, Kiril Petkov, esta semana al referirse a los ucranianos. “Estas son personas inteligentes y educadas... No es la oleada de refugiados a la que hemos estado acostumbrados, personas de las que no estábamos seguros de su identidad, personas con pasados poco claros, que incluso podrían haber sido terroristas..."(12)

Essa afirmação claramente de cariz racista e xenófobo revela a opinião de certos líderes europeus sobre como se portar frente a diferentes grupos de refugiados, o que traz consequências práticas e soluções diferenciadas em função de suas origens.  

Sendo assim, o que podemos concluir através do comportamento europeu sobre o acolhimento a refugiados? Apesar dos discursos de paz, essa acolhida ainda é extremamente seletiva. Tal análise não parte da noção errônea de que uma vida importa mais que outra. Mas, sim, que todas as vidas importam independentemente de qual país o refugiado seja oriundo. Negar asilo a uma pessoa em situação de ameaça é negar as bases dos direitos humanos sobre garantia de vida a toda e qualquer pessoa. Nesse ponto, a invasão da Ucrânia elucidou como as soberanias europeias historicamente berço dos direitos humanos, tratam aqueles que consideram “inferiores” aos europeus e o quanto ainda precisam avançar para que de fato, os direitos humanos sejam praticados. A pergunta que fica é, por que a nacionalidade define quem tem mais chances de viver e quem tem menos? A resposta para isso, pelo o que podemos analisar no comportamento europeu, é estritamente por motivos econômicos e geopolíticos e não humanitários.(13)

Por que aquilo que pareceu ser bom para um grupo de migrantes não pode ser para um outro? Ainda que se trate de realidades distintas, esses outros fugitivos, são, como afirma Aktouf(14), igualmente vítimas das consequências das ações (pilhagem, devastação climática e ecológica, guerras, e/ou de saques de terras e mares…) de partidários da ordem mundial neoliberal e injusta, agora tão insustentável quanto criminosa, cujos governantes são tão loucos e cruéis quanto insaciáveis.

Berlim, 8 de maio de 2023.

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(1) Pinto, D. Do Muro de Berlim às fronteiras vedadas na Europa. Disponível em: <https://www.rtp.pt/noticias/mundo/do-muro-de-berlim-as-fronteiras-vedadas-na-europa_i1166914>. Acesso em: maio de 2023.

(2) Martin, M.; Ayuso, S.; Clemente, Y. El País, Madri. Estes muros que nos dividem. Courrier Internacional. Portugal: TIN, n. 327, p. 20 — 22.

(3) Aktouf, O. Prefácio. In: A. C. R. Tupinambá. Sobre Pessoas e Lugares Distantes. Polis & Plebeu. Fortaleza, 2022.

(4) Jakob, C. Fast 80 Millionen auf der Flucht. Disponível em: <https://taz.de/Jahresbericht-UNHCR/!5696225/>.  Acesso em: dez. 2020.

(5) Christoph, M. “Es scheint, als ob wir verlernt haben, Frieden zu schliessen”. Disponível em: <https://www.br.de/puls/themen/welt/weltweit-menschen-auf-der-flucht-100.html>. Acesso em: dez. 2020.

(6) UNO Flüchtlingshilfe. Dispon.vel em: <https://www.uno-fluechtlingshilfe.de/hilfe-weltweit/kolumbien/>. Acesso em: dez. 2020.

(7) Jakob, C. Fast 80 Millionen auf der Flucht. Disponível em: <https://taz.de/Jahresbericht-UNHCR/!5696225/>. Acesso em: dez. 2020.

(8) idem.

(9) Deutschland und die Flüchtlinge: Wie 2015 das Land veraenderte. Dispon.vel em: <https://www.dw.com/de/deutschland-und-die-flüchtlinge-wie-2015-das-land-ver.nderte/a-47459712>. Acesso em: dez. 2020.

(10) Pinto, D. Do Muro de Berlim às fronteiras vedadas na Europa. Disponível em: <https://www.rtp.pt/noticias/mundo/do-muro-de-berlim-as-fronteiras-vedadas-na-europa_i1166914>. Acesso em: maio de 2023.

(11) Carreta, D. A ilusão da Fortaleza europeia. Il Foglio, Milão. Courrier Internacional. Portugal: TIN, n. 327, p. 22-23.

(12) Brito, R. Europa recibe a refugiados ucranianos; a otros, no tanto. Disponível em: <https://apnews.com/article/noticias-e380e6eca92a44400d011bb8fda9b137>. Acesso em: maio de 2023.

(13) MigraMundo Equipe. Guerra na Ucrânia evidenciou preconceito étnico e acolhida seletiva a refugiados. Disponível em: https://migramundo.com/guerra-na-ucrania-evidenciou-preconceito-etnico-e-acolhida-seletiva-a-refugiados/ , 24 de fevereiro de 2023. Acesso em: maio de 2023.

(14) Aktouf, O. Prefácio. In: A. C. R. Tupinambá. Sobre Pessoas e Lugares Distantes. Polis & Plebeu. Fortaleza, 2022.