POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Crise, caos e desgoverno



Pedrada1,
Chico Cesar

“Cães danados do fascismo
Babam e arreganham os dentes
Sai do ovo a serpente
Fruto podre do cinismo
Para oprimir as gentes
Nos manter no escravismo
Pra nos empurrar no abismo
E nos triturar com os dentes
Ê república de parentes pode crer
Na nova Babilônia eu e você
Somos só carne humana pra moer
E o amor não é pra nós
Mas nós temos a pedrada pra jogar
A bola incendiária está no ar (vai voar)
Fogo nos fascistas
Fogo, Jah!”
Fogo Jah! 


O povo é maior que seus governos. Assim foi em Timor Leste, quando superou a ditadura Suharto da Indonésia e proclamou sua vitória em forma de uma nova nação. O caminho que trilham os tibetanos em busca de autodeterminação é cheio de emboscadas e desvios, mas nada os tem detido rumo à superação dos desmandos dos algozes chineses, seus opressores.  O ultraje da discriminação de Estado que sofriam os sul-sudaneses foi superado pela separação definida em um referendo realizado em janeiro de 2011, quando 99% dos votantes foram favoráveis à divisão do país, marcado por conflitos sectários… Podíamos continuar mostrando que, mesmo sob a mira de ameaças e armas, populações em diferentes cantos da terra não abrem mão do sonho da autonomia e liberdade. 
É libertário o sentimento desses diferentes povos cujos movimentos acompanhamos ao redor do mundo, reivindicando um lugar ao sol que lhes vem sendo negado. As mais absurdas intervenções e os mais inaceitáveis desmandos não são capazes de destruir sua anima e desvirtuar seu desejo legítimo de autodeterminação. Tomar as rédeas do próprio destino é o que almejam. Ainda que se vejam perdas de rumo temporárias nas suas trajetórias, seguem inabaláveis em busca de seus objetivos. Tal não é uma exclusividade de povos em terras remotas ou em mundos desconhecidos. Em nossa casa-nação vivemos, em diferentes medidas e regiões, ataques de governos que remontam aos períodos mais obscuros do nosso passado. Tomemos como exemplo o Rio de Janeiro, símbolo de brasilidade. Na Cidade Maravilhosa se testemunhou uma das mais cruéis páginas de sua história. Banhada pelo sangue da vereadora executada Marielle Franco, engajada "com pessoas ameaçadas pelas 'políticas da morte' e pela 'lógica bélica e militarizada' de gestão das populações indesejadas pelos arautos do neoliberalismo e do fascismo”2, a cidade viveu uma intervenção militar patrocinada por um governo ilegítimo, que se utilizou de poderio bélico, uma vez não ter sido escolhido ou determinado pelo povo brasileiro para governar, apenas estabelecido para satisfazer as ganâncias políticas de governantes de mãos sujas e financeiras do Deus mercado. De Temer a Bolsonaro, apenas governos antidemocráticos continuados ou “irmãos siameses em termos de fomento da barbarie e do ódio, constituíram-se em verdadeiros vilões da destruição da democracia…”3. Um governo eleito e construído  sobre mentiras, as mesmas fake news que levaram o medíocre ex-deputado a ganhar as eleições, ainda imperam nas estratégias governamentais, sem as quais, seguramente, já teria caído e visto desmoronar o pérfido, injusto e hostil sustentáculo que ainda permite afrontar o Estado laico e a democracia: "A trama criminosa de Bolsonaro e de seus comparsas relegou à educação um papel de ‘mercadoria’, de banalidade; e ao trabalho, para sustento do direito dos ricos, atribuiu um caráter ‘escravagista’, supérfluo e precário. Nesse processo, os direitos humanos são cotidianamente desrespeitados e interpretados por meio de preceitos nazifascistas. A suposta laicidade do Estado vem sendo violada pela fusão entre o neopentecostalismo e a direita liberal, para o desmando falso e moralista das igrejas evangélicas"4. Mas o Rio e o Brasil são mais que isso; são luta e resistência, que crescem a cada dia e resultarão na queda da ditadura fascinazista que querem mas não vão conseguir instalar. Os gritos nas ruas já  se fazem ouvir e começaram a ecoar nos corações dos brasileiros, que em grande maioria, seus 70% não compartilham com esse governo do descaso, mentira e maldade. O Brasil atual, sem ministros da saúde, educação e cultura é uma fotografia do desgoverno. Mas o Brasil é bem maior que isso e tem força e desejo de mudança. Não por menos, desde sempre se prova uma terra inspiradora e com energia para se superar e mudar vidas, mesmo nas mais inusitadas situações. Por isso recorremos ao que nos relatou em 1985, o artista James Taylor sobre essa visão de um Brasil que é forte e reage. Atualizemos, em meio à implantação deliberada dessa desesperança,  a força que orgulhou Taylor e sempre nos orgulhará. James Taylor relata uma experiência bem "brasileira e carioca”, deslumbrante e “redentora”, quando passou pela cidade em 1985. A epifania do artista reforça um sentimento atual que emerge no caos: a ousadia de um povo que busca ser feliz a despeito de um lado da política suja e da exploração a que são submetidos. Há várias formas de insubmissão e essa é uma delas. Insubmissão que vale a pena e é vital, necessária; molda, contorna a vida em meio a desastres e desafios, é esperança e resistência, mesmo em cenários tão sombrios e desesperançosos. Continuemos, portanto, insubmissos, lutadores sem desânimo para nos redimir com a força que encontramos no nosso espírito guerreiro. Não é piegas a esperança na energia de um povo que pode se unir em nome de uma nobre causa que visa à preservação da liberdade e da democracia, conquistadas a duras penas.    


Alcançado pelos raios do sol nascente 
Fugindo da arma do soldado 
Gritando em voz alta da multidão enfurecida 
A criança branda, selvagem e faminta 
Vou te dizer que há mais do que um sonho no Rio 
Eu estava lá naquele dia 
E meu coração voltou vivo 
Havia mais, mais do que as vozes cantando 
Mais do que os rostos me olhando
E mais do que os olhos brilhantes
(Trecho da música Only a Dream in Rio - em português: somente um sonho no Rio - de James Taylor)


James Taylor retrata nessa música sua experiência incomparável que teve na Cidade Maravilhosa no Rock in Rio 1985; revela o amor fácil e inesperado que daí brotou e o redimiu da desesperança que assolava um homem perdido e sem perspectivas:

"Eu tinha entrado em outra reabilitação, para me livrar da metadona depois de um par de "jackpots" realmente desagradáveis, que é onde você se humilha e humilha também as pessoas que te amam. Tentei me desintoxicar em um lugar em Connecticut, mas recusei o tratamento e continuei a usá-la. Não deu certo até que [o saxofonista] Michael Brecker me envolveu com o método dos "Doze Passos” que consegui ficar sóbrio. Mas mesmo depois de estar limpo, não sabia
se havia vida do outro lado do vício para mim. Eu também não tinha certeza de que eu poderia voltar a compor.
Então eu fui ao Rio de Janeiro para tocar no festival Rock in Rio. [O compositor brasileiro] Gilberto Gil tinha deixado uma guitarra para que eu tocasse. Eu entrei no palco, e 300 mil pessoas conheciam minhas músicas. Eles têm essa tradição de cantar no Brasil, tão alto, tão forte e tão em sintonia e, no tempo certo, é como se pegassem uma música que eles conhecem e cantassem de volta para você, é extremamente poderoso. Então eu estava, como, com os dois pés acima do chão levitando no palco, realmente senti como se eu tivesse pousado em meus pés. Foi um ponto de virada na minha vida”6.

O Brasil, o Rio provando-se especial e inspirador, resistente e capaz de superar os males imputados por seus carrascos internos e externos. O Brasil do Movimento “Ele Não”, que mesmo sob ameaça de armas foi à urna portando sim uma arma, mas contra a ignorância, um livro. O Brasil, como o próprio Rio, vitrine para as pedras que são lançadas maldosamente das mãos de sádicos que apostam no “quanto pior, melhor”, que produz um candidato, a partir de um doente expulso do quadro do exército, um fascista declarado. Esse Brasil e esse Rio, maiores que desmandos e corrupção encalacrados nos seus (des)governos. Infortúnios não detém o Rio, não detém o Brasil, pois sabem superar suas mazelas. Esse Brasil, é parte de um mundo cheio de ameaças semelhantes mas também de lutas que a elas correspondem. Infortúnios de igual dimensão ou maiores tentam mas não conseguem deter os povos em tão distintas plagas, que, assim como no Rio e no Brasil não desistem de lutar por autonomia e respeito, mostrando aquela força original que muito bem soube captar Taylor para o combate necessário, indispensável. Afinal de contas, são quase 500 anos de busca de alguma mudança nas forças hegemônicas e na perversa e predatória realidade compartilhada em capitanias e governos. Esforços valiosos que renderam poucas, irregulares mas significativas mudanças, interrompidos com o golpe político de 2016 contra a presidente Dilma Roussef, ratificado em 2018 pelo golpe das fake news contra a população que levou ao poder o já considerado, pior presidente da história do Brasil.  
Há uma certa ousadia em nossas palavras, qual seja, a prontidão para denunciar tantos desmandos: sua veiculação nesses momentos oportunos para que acontecimentos não caiam no esquecimento nem fiquem sem reação; para despertar a curiosidade e conquistar o engajamento nas lutas e também a participação na celebração de vitórias, pequenas que sejam, de brasileiros e de diferentes povos ao redor do mundo. 
Fazemos, portanto, o convite para que compartilhem conosco essas inquietações, que apesar de nascerem do medo e do desassossego apontam para um futuro que quer ser de dignidade e conquistas.  Uma certa vez foi perguntado a Chomsky se ainda se pode ser otimista sobre o futuro da humanidade, no que respondeu, a seu modo, querendo dizer que sim: “…podemos ser pessimistas, desistir e esperar que o pior aconteça. Outra opção é aproveitar as oportunidades que de fato existem e ajudar a fazer o mundo um lugar melhor para se viver. Assim como a raiva e a agressão são expressões da natureza humana, a simpatia, a solidariedade, a gentileza e preocupação com os outros também são. Há muita resistência contra a brutalidade humana e contra o autoritarismo. Tal resistência, segundo ele, precisa crescer e se tornar uma fonte de esperança para a nossa espécie"7.
Afirmamos isso, apesar de ter consciência do muito que sempre ainda haverá para ser feito em nome da iluminação das inúmeras nações encobertas pelas sombras da maldade, como a nossa. Essas nações sofrem constantes ataques, muitas vezes cíclicos: nós, por exemplo, mal despertamos do pesadelo de uma ditadura e já vivendo a iminência das trevas e do fascismo, em uma espécie de "retorno do recalcado". O nosso motor é a esperança e a certeza de sempre estarmos a buscar saídas, cultivarmos e implementarmos ideais antifascistas e pró-democracia. Deixem-se, portanto, levar por esses ares otimistas, pois mesmo que não tragam em si soluções imediatas, apontam caminhos e semeiam esperança. É com esse espírito que a gente segue na luta e contribui com a vitória da civilização sobre barbárie.8
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1) Chico César faz “crítica esperançosa” e enfrenta o fascismo. Consultado em junho de 2020: https://www.cartacapital.com.br/cultura/chico-cesar-faz-critica-esperancosa-e-enfrenta-o-fascismo/
2)VIANNA, Adriana. Políticas da morte e seus fantasmas. Le Monde Diplomatique, [S. l.], Ano 12, no 140, Dossiê Estado de Choque, mar. 2019, p. 20, apud Motrivivência, (Florianópolis), v. 31, n. 57, p. 01-16, janeiro/março, 2019. Universidade Federal de Santa Catarina. ISSN 2175-8042. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-8042.2019e62751 , p. 3.
3) Motrivivência, (Florianópolis), v. 31, n. 57, p. 01-16, janeiro/março, 2019. Universidade Federal de Santa Catarina. ISSN 2175-8042. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-8042.2019e62751 , p. 8.
4) Motrivivência, (Florianópolis), v. 31, n. 57, p. 01-16, janeiro/março, 2019. Universidade Federal de Santa Catarina. ISSN 2175-8042. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-8042.2019e62751 , p. 8.
5) Link para o video no youtube: https://m.youtube.com/watch?v=JWRlaYkIKgM
6)Tradução livre do original em inglês consultado em
"Only a Dream in Rio" (1985).
7)‘Pinheiro-Machado, R. (2019) A esperança é o único antídoto contra o que nos sufoca’, consultado em junho de 2020: ttps://theintercept.com/2019/11/26/esperanca-antidoto-extrema-direita-amanha-vai-ser-maior/
8) Alusão ao livro de Viviane Fecher “Onde a humanidade vence a barbárie”. São Paulo: Paco Editorial, 2017.

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