POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

O livro e a guerra










 (Jessica Brown Findlay, Tom Courtenay, Katherine Parkinson, Penelope Wilton e Michiel Huisman em  A  Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata - The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society, 2018).



       O que seria mesmo essa Sociedade Literária que intitula o filme de Mike Newell? Como conseguiu existir uma sociedade literária no meio das adversidades de uma guerra desigual; durante uma invasão que provocou fome e tornaria a luta pela sobrevivência o único desafio esperado? Tudo isso no centro de uma ocupação nazista em uma pequena e idílica ilha inglesa. Antes de tentarmos pensar sobre isso, um pouco da história dessa guerra e dessas pessoas que souberam a ela resistir com a ajuda dos livros.
    Bem próximo à Costa da Normandia, no Canal da Mancha está o arquipélago britânico, que foi palco de uma invasão das tropas nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. A ocupação que se estendeu por quase cinco anos, entre 1940 e 1945, deixou não apenas rastros de destruição física, as minas das praias continuaram matando ingleses e alemães no pós-guerra, mas também destruição social, cultural e psicológica, vidas e famílias desfeitas, destroçadas naqueles momentos sombrios.
    As atrocidades tinham um fim: propaganda nazista, treinos militares e armação de uma invasão à Inglaterra, que de fato nunca ocorreu. Famílias em fuga, abandonando suas casas e pertences, mas também se esfacelando; os que não saíam continuavam juntos mas sob a tirania dos nazistas; fome, destruição e submissão era o que lhes aguardava. Fome e jugo para os que ficaram vivendo lado a lado do inimigo. Foram cinco anos de miséria física e mental, para quase metade da população da ilha Guernsey, que não abandonou, por diferentes motivos, suas casas. Em 28 de junho de 1940, quando o Porto de St. Peter foi bombardeado pelas forças nazistas alemãs, quase todas as crianças e muitos adultos tinham sido postos em embarcações  para fugir rumo à Inglaterra, em busca de um porto seguro nesses dias sem horizonte. Falamos de Guernsey, especificamente, porque lá se passou a história de uma certa Comunidade Literária, transformada em filme de 2018. Uma obra cinematográfica acerca da vitória do livro sobre as armas, do testemunho da supremacia da linguagem da literatura sobre a linguagem da guerra. Essa mesma linguagem cuja força tentamos mostrar também sempre ter existido no Brasil e mais recentemente, desde e a despeito do golpe de 2016 continua resistindo. Força que se torna o oposto do belicismo e da opressão, vencendo-os, cedo ou tarde. Há no filme o retrato da esperança de que nenhuma arma pode ser de tão forte efeito quanto a leitura e a educação. Tinta sobre papel resistindo a bombas e ignorância.
    Em 9 e 10 de maio de 1945 todas as ilhas britânicas do Canal da Mancha foram libertadas pelas Forças Aliadas. Rastros de destruição que deixaram para trás os nazistas não ficaram registrados apenas nas anti-poéticas construções de guerra que podem ser avistadas desde longe, contrastando com a paisagem local, mas também nas vidas perdidas por minas terrestres, pela fome provocada, e pela destruição de famílias, amizades e autoestima.     
    Duncan Barrett no livro autoral "Ilhas Britânicas de Hitler” aponta que a invasão das tropas do Führer às ilhas do Canal tinha endereço certo e serviria de trampolim para uma invasão à Inglaterra, o que para o bem dos ingleses, nunca chegou a se concretizar.(1)
    Apesar do mal que significou a invasão para a vida dos ilhéus, havia quem enxergasse alguns dos intrusos alemães como homens que apenas vestiam uniforme, sem alma ou personalidade; às vezes, até mesmo com alma, sem propósitos e marionetes.  Entretanto terminavam por desistir de vê-los além da condição de nazistas reais - indivíduos comprometidos com o nacional-socialismo e com seu mal maior, o Führer. Os alemães na ilha que eram apenas soldados comuns, ansiosos para voltar a suas casas e para suas famílias, para que a guerra ou sua missão chegasse a um termo não conseguiam refrear o mal estar junto aos locais, que era resultante da presença nazista e da indesejada figura de Hitler. Alguns procuravam ativamente oportunidades para formar relacionamentos amigáveis ​​com os ilhéus e provar que não eram "o tipo de monstro que havia sido pintado pela propaganda dos Aliados". No entanto ali estavam indissociáveis da representação nazista, de Hitler e de sua ideologia, o que acirrava o ceticismo e afastava a população de qualquer desejo ou tentativa de aproximação. Não haveria como não deslegitimar e deixar de punir qualquer aproximação com os algozes. Ajudado por muitos eventos desagradáveis, desumanos e muitas injustiças, o clima era de animosidade, tornando a convivência distante daquela que os invasores queriam fosse mais “civil.” Ademais houve resistência de natureza humanitária também, pois a construção dos fortes de guerra para uso alemão ocorreu a custa do trabalho escravo. Muitos Europeus foram trazidos à ilha e tratados como subumanos (Untermenschen) pelos nazistas, o que revoltava a população local remanescente. Voltando ao filme, é exatamente nesse enredo que a personagem Elizabeth, central no desfecho da trama, se vê perseguida ao tentar salvar um menino escravo das garras nazistas. 
    Um aspecto de relevo explorado pelo diretor é simbólico para o grande mal que significava a convivência ou qualquer relação de amizade ou tentativa de interação de outra natureza pelos habitantes locais com qualquer um elemento do lado inimigo. É na sociedade fundada para vencer a guerra pela letra que isso se deixa revelar. Daí se origina essa grande revelação no final da trama; o pomo da discórdia, a razão do mal estar que circunda os membros da Sociedade Literária e a dificuldade em aceitar a presença da escritora visitante, que busca acolhimento. Esse acolhimento seria a custa da honra, exigiria revelações, ferindo os brios de quem viveu uma história ainda sem desfecho final. Há, portanto, segredos que pertencem só aos locais; lembranças reprimidas que assim devem continuar; inacessíveis ao testemunho de uma estranha, uma não convidada. A afinidade da leitura termina no incômodo da exigência em revelar as consequências da guerra, nos remanescentes do sofrimento e da esperança combalida. Já para outros, essa revelação deveria ocorrer pois poderia ser o fio de Ariadne.  
    Aqui voltamos à pergunta que fizemos no início: O que seria mesmo essa Sociedade Literária? Como conseguiu existir no meio das adversidades da guerra naquela remota e esquecida ilha da Normandia? 
    Eventos que dão vida à plástica e bem narrada história do grupo fundante de uma sociedade literária visando fugir das agruras e dos tempos sombrios trazidos pela invasão nazista em Guernsey têm, em parte, eco na realidade. Também pode ter eco no passado. A beleza das leituras de trechos de livros regadas a culinária cuidadosamente improvisada em tempos de escassez, no calor da cumplicidade dos que não se rendem fácil ao trágico destino. O calor, o amor, a lealdade de amigos e familiares ao redor do livro e da leitura trazem a comprovação do poder civilizatório como libertador da barbárie. A certeza de que dias melhores sempre virão para os que acreditam no ato humanizado, aqui simbolizado pelo livro e a leitura. A constatação de que apesar deles, "amanhã sempre será outro dia”, e o foi em Guernsey!
    A adaptação para filme do romance escrito por Mary Ann Shaffer e Annie Barrows, com o mesmo nome, traz-nos a crença na força das almas boas; mesmo esgarçadas pela brutalidade da guerra, se ilustram e, no recuo iluminado e estratégico buscam e conseguem a superação do mal externo invasor. 
    Lançado em 2018, A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata tem Lily James e Michiel Huisman em seus papeis principais. Os dois protagonistas que, no início da trama, ainda desconhecidos, trocam cartas sobre livros são, a seguir, com os pés em terra firme, alçados a um voo literário para muito mais longe do que até então pensariam ser possível e desconheciam em suas vidas. Explicando: Tudo começa quando Juliet, escritora bem sucedida que vive em Londres do pós-Segunda Guerra, recebe uma carta de um desconhecido da ilha de Guernsey, o rústico e sensível fazendeiro Dawsey. Ao final, já vislumbrando que seu destino ficaria preso ao mundo de Guernsey e ao coração do ilhéu que acabara de conhecer, constata como esse pequeno artefato de papel e letras conseguiu feze-la trocar a vida segura em Londres por uma aventura em um mundo desconhecido e às vezes agreste, pondo em cheque costumes e expectativas.  A leitura de algumas cartas e livros, a fé na escrita e em quem a admira, a convivência e vivência da história lhe salvam de uma vida perfeita,  previsível, mas que nunca teria sido a sua, jamais tocaria sua alma como o fez a ilha e seu povo até então remota e desconhecido.
    Apesar de não ter existido uma Sociedade Literária nos moldes relatados, o filme se inspira em fatos que marcaram as vidas da ilha e as histórias de seus ilhéus. A sensação que nos deixa é de uma ficção que foi extraída da força que têm o livro e a leitura na transformação das pessoas e do mundo a seu redor. Sob os desvarios nazistas, a dança das letras vêm em um ritmo de alento e superação. Nas páginas e na tela, a ficção podendo ser, de algum modo, tão real quanto a história que a inspirou:

Um site turístico de Guernsey também explica ainda quanto do romance e filme é baseado na vida real. Diz: “Como no filme, muitas famílias foram separadas durante a guerra, enviando seus filhos para a segurança na Inglaterra. No entanto, muitos ilhéus seguiram seus filhos e também conseguiram evacuar de barco antes da chegada dos alemães. Quando os alemães desembarcaram em Guernsey, quase metade da população da ilha já havia fugido para a Grã-Bretanha continental… Ele também observa que, embora os personagens sejam fictícios, alguns são possivelmente inspirados por pessoas reais - particularmente Elizabeth, a fundadora da sociedade. “O personagem de Elizabeth, em particular, parece inspirar-se em uma história verdadeira. Marie Ozanne era uma mulher de Guernsey que enfrentou bravamente as forças de ocupação durante a Ocupação, pois desafiou a proibição do Exército de Salvação do qual era membro e também protestou contra o tratamento dado aos trabalhadores escravos. Como Elizabeth, Marie foi presa e morreu tristemente em 1943”.2

    E, ainda segundo Duncan Barrett havia, realmente, a torta de casca de batata no cardápio dos moradores de Guernsey. A mesma torta que dá o título ao filme e ao livro e era servida nas reuniões da Sociedade Literária. Um prato que se comia naqueles tempos em que durou a invasão, período em que grassava a fome. Batata era o que se tinha para comer.

Antonio C. R. Tupinambá
23 de junho de 2020.

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1) Dinning, R. Life under Nazi rule: the occupation of the Channel Islands, consultado em junho de 2020: https://www.historyextra.com/period/second-world-war/life-under-nazi-rule-the-occupation-of-the-channel-islands/.
2) Tenreyro, T. Is 'The Guernsey Literary And Potato Peel Pie Society' A True Story? 9 de agosto de 2018. Consultado em junho de 2020: https://www.bustle.com/p/is-the-guernsey-literary-potato-peel-pie-society-a-true-story-the-netflix-movie-spotlights-a-heroic-group-9967590.

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