POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

domingo, 30 de abril de 2023

O sultanato de Erdogan

 

                Recep Tayyip Erdogan






As eleições marcadas para 14 de maio tem pela frente como candidatos o velho conhecido Recep Tayyip Erdogan, atual presidente e Kemal Kilicdaroğlu, representando os seis principais partidos da oposição que se uniram na tentativa de romper com a hegemonia do seu opositor. A pergunta que se faz é se Kemal Kilicdaroğlu, conhecido como o"Gandhi" da Turquia, conseguirá derrotar Erdogan e, para o bem da Turquia e da região, evitar que permaneça mais cinco anos no poder.




Tudo aponta para que se conheça o fim da era Erdogan em 2023. O homem que venceu as eleições nacionais turcas de 2002 era então tido como uma esperança para a modernização e aproximação do país até a Europa. Hoje definha politicamente e parece ser lentamente soterrado pelos escombros do último terremoto que devastou o país. Ainda que tenha o apoio da população mais pobre e rural, a reação demorada e o tratamento ineficaz dos efeitos do terremoto que custou a vida de mais de 50 mil pessoas, com 214 mil prédios desabados em cerca de 11 diferentes províncias abalou seu prestígio. A devastação atingiu em cheio seus planos para se reeleger. Eleições desafiadoras para o autocrata turco, que já se encontra desgastado pela inflação descontrolada que afeta a economia do país e agora, face ao terremoto, tem mais um ponto negativo que se soma ao seu já combalido mandato. As críticas ao governo só aumentaram em sequência à incompetência das autoridades e instituições no enfrentamento desse grande desastre. A corrupção se escancara ao se constatar que pouco resultou do imposto criado e que deveria ser destinado a arrecadar milhões de euros para investimento na prevenção e ajuda às vítimas de desastres naturais. Um governo altamente centralizado impede que as cidades e organizações de ajuda possam atuar direta e localmente com mais eficiência, por exemplo, nas operações de resgate. Erdogan é tido por muitos como um novo ditador, sobre quem pesa, juntamente com seus familiares e correligionários, escândalos vários de corrupção e desmandos. A política intervencionista de controle do judiciário e da imprensa comprometem a já fraca e questionável democracia turca, mais uma barreira para a viabilização da entrada do país no seleto clube de nações que formam a União Europeia. A tentativa de aproximação da Europa continua atual e objeto de desejo, principalmente, da população mais jovem. No entanto, parece cada vez mais remota, tendo em vista políticas antidemocráticas e com requintes de abuso de poder no modelo Erdogan de governar. Em 1963 havia sido assinado um acordo de associação com a recém-criada Organização de países europeus e somente em 1987 veio o pedido formal para adesão do país, que tenta construir uma nova identidade, mais próxima do velho mundo e mais distante da Ásia. Essa virada para a Europa também poderia “livrar" o país do estereótipo de atraso que é preconceituosamente atribuído a certas regiões de maioria curda, o que é sustentado por Erdogan e parte da população mais conservadora. Preferem deixar os curdos distantes dos centros de poder como Ancara e Istambul, cidades mais modernas e, portanto, tidas como mais próximas do padrão europeu. Quando Mustafa Kemal Atatürk, o grande líder da Independência, pioneiro nas revoluções e reformas que fundaram a Turquia como se conhece hoje tornou seu país mais republicano, fê-lo também laico e com maior igualdade entre homens e mulheres, modernizando-o, chegando inclusive a trocar seu alfabeto árabe pelo latino. Já Erdogan, que surgiu como uma alavanca para a continuação desse progresso e modernização para levar a Turquia à Europa, enfrenta a amarga realidade de quem já não é mais a principal referência para a população jovem tampouco unanimidade no jogo político, como aconteceu na altura da sua primeira vitória em 2002. Por conta da  incapacidade de fortalecer a frágil democracia turca, as promessas de levar o país ao "clube europeu" parece cada vez mais distante. Esse desejo, que é da maioria da população, não tem data para ser realizado. A vitória da aliança formada para derrotar Erdogan traria a possibilidade de transformar o regime da Turquia em parlamentarista, substituindo o atual regime presidencialista por ele estabelecido. O receio da Turquia se tornar uma ditadura islâmica cresceu nos últimos tempos não por acaso mas em consequência de muitas ações governamentais de repressão da oposição e de mudanças legais que conseguiu fazer na legislação para poder se perpetuar no poder. O certo é que ao fim dessas duas décadas, Erdogan enfrenta seu maior desafio político. Uma coligação de seis partidos da oposição elegeu Kemal Kılıçdaroğlu como o candidato único para enfrentar e tentar vencer Erdogan nas próximas eleições marcadas para este maio. Líder do Partido Republicano do Povo (CHP), de centro esquerda, e agora uma "Aliança Nacional", coligação que aproveita-se da maior fragilidade de Erdogan, em consequência da insatisfação da população com os acontecimentos pós-terremoto. Em suas redes sociais Kemal Kılıçdaroğlu deixou claro seu otimismo para o difícil pleito que se aproxima: ”Gostaria de agradecer aos honoráveis presidentes da Aliança Nacional pela confiança. Agora temos um longo caminho a percorrer de mãos dadas, ombro a ombro. Coroaremos a nossa república com a democracia. Aqui vamos nós”. Em 14 de maio próximo a oposição pode conseguir, por meio de um candidato de consenso, desbancar esse "novo sultão" e dar outro rumo ao país que é considerado estratégico para o futuro das relações entre as nações da região e do mundo.


Antonio C. R. Tupinambá

Istambul (Turquia), 20 de abril de 2023.

sábado, 29 de abril de 2023

O Sudão se desfaz!


"Mapa das estratégias, divisões e recursos do Sudão e Sudão do Sul" (1)


Um país com história de instabilidade política na África sofre, desde sua independência em 1956, o efeito de governos autocráticos e muitas disputas entre militares, líderes e milícias. Até o ano 2011 havia somente um Sudão, cujo nome tem origem em dialetos árabes e significa “terra dos homens negros". Já fez parte do Reino Unido e do Egito, de quem obteve sua independência em 1956. Como no Egito, também corre no seu solo o rio Nilo e tem à fronteira oriental o Mar Vermelho. Depois de muitas disputas internas e um referendo nascia um novo país nas terras ao sul do Sudão e, não por acaso, se chamaria Sudão do Sul. Este novo Sudão que corresponde a um território que era parte do antigo Sudão, é agora um Estado soberano na África, o 193o membro da sociedade internacional. Destino semelhante que teve a Eritreia, sua vizinha de fronteira e antiga colônia italiana que havia sido incorporada à Etiópia. Após o resultado de um referendo, a Eritreia também obteve o reconhecimento formal da sua independência em 24 de Maio de 1993.  "Tal como no caso da Eritreia e da Etiópia, as relações entre o Sudão e o Sudão do Sul longe de estarem normalizadas, são caracterizadas por retrocessos e avanços relativamente às negociações sobre as questões pendentes: a partilha dos recursos, a questão fronteiriça, a questão monetária e a definição e direitos de cidadania”.(2) O atual Sudão se localiza no centro-norte africano, com geografia de regiões desérticas e tropicais, sendo detentor de uma história rica e antiga apesar de não tão conhecida como a do seu vizinho ao norte, o Egito. O Sudão abriga milhares de construções antigas que pertenceram ao reino de Cuche, uma superpotência da África com ampla influência regional. Este reino chegou a conquistar o Egito, governando-o por décadas. Diversas tribos, dentre elas aquelas formadas pelos povos mais conhecidos, os núbios, iniciaram o processo de habitação da região sudanesa. O país, como é conhecido atualmente, nunca experimentou estabilidade econômica ou política que valesse a pena ser registrada, nem antes e nem depois da divisão. Com uma população eminentemente jovem resultante de uma elevada taxa de natalidade, depende quase totalmente da exploração de petróleo para a geração de emprego, renda e sobrevivência. Povoado por muitas diferentes tribos, tornou-se um país multiétnico e multilinguístico. A divisão do antigo Sudão em dois países independentes, um ao norte, Sudão e outro ao Sul, Sudão do Sul não conseguiu trazer paz para a região. O referendo que criou o mais novo país foi realizado em 2011 e teve um resultado acachapante a seu favor, com a aprovação de 98,8% dos votantes. A separação do país com fronteiras imprecisas e conflitos permanentes pelas disputas por regiões ricas em petróleo fez com que uma guerra civil nacional se tornasse um conflito internacional. Apesar do Sudão já ter experimento a realidade cruel de outros distúrbios violentos, hoje Cartum, sua capital, protagoniza confrontos ininterruptos que assolam a vida dos seus habitantes, incluíndo aqueles que ali estão temporariamente por razão de trabalho ou estudo. Por trás das ações destruidoras estão as forças do exército lideradas pelo seu atual presidente, o general Abdel Fattah al-Burhan e um grupo paramilitar conhecido por Forças de Apoio Rápido (FAR) com a sigla do seu nome em inglês RSF. Esse grupo paramilitar é liderado pelo vice-presidente, o general Mohamed Hardan Dagalo ou, como é mais conhecido, Hemedti. Abdel Fatah al-Burhan entrou em cena em 2019 quando o Exército derrubou o ditador Omar al-Bashir, que vinha enfrentando uma onda de protestos contra seu (des)governo no país. Desde 2022, quando deu um golpe e derrubou o primeiro-ministro civil Abdalla Hamdok, Buhran pôs fim a qualquer plano de transição democrática, reforçando seu controle autocrático sobre o país. Os combates começaram após meses de tensões entre esses dois líderes militares rivais. Interesses econômicos também estão por trás do atual conflito, ou seja, entra no jogo do poder o controle de recursos minerais. O Sudão possui consideráveis reservas de ouro, que interessam, por exemplo, à Rússia. O ditador Bashir já havia afirmado anteriormente ao presidente russo, Vladimir Putin, que o Sudão poderia ser "a chave da África" para seu país. Não por acaso a milícia russa privada conhecida por “Wagner" é acusada de desenvolver operações militares no Sudão, o que em vez de ajudar a resolver, acirra o conflito. Há uma empresa de fachada desse grupo miliciano russo, que segundo autoridades norte-americanas, recebeu o direito de exploração de minas sudanesas em parceira com as FAR. O resultado dessa guerra que destrói qualquer chance de retorno a um governo civil e democrático no Sudão é que nenhum estrangeiro, nem mesmo as centenas de funcionários das Nações Unidas deseja permanecer no país e correr o risco de virar mais uma vítima desse conflito insano. Combates ininterruptos em Cartum, capital do país, além de colocar os cidadãos no meio do tiroteio, destroem rede elétrica, inviabilizam a distribuição de alimentos e tornam precário o funcionamento da internet e dos meios de comunicação. A maioria dos países já retira seus funcionários de embaixadas enquanto muitos estudantes estrangeiros, inclusive de outros países africanos e do Oriente Médio vivem horas de desespero por não terem os meios de deixar o Sudão para qualquer outro país que lhe pareça mais seguro nesse momento. 

Cartum sob ataque (Foto: AFP)


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1) Veja mais sobre "Independência do Sudão do Sul" em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/independencia-sudao-sul.htm"

2) Sudão do Sul: independente e inevitavelmente ligado ao Sudão. Alexandra Magnólia Dias. https://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/799/1/Alexandra%20Dias.pdf.