POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

As extraordinárias viagens de Dan Eldon





A aventura não depende apenas do encontro com inusitado, 

ela é, antes de mais nada, uma disposição do espírito.

Contardo Calligaris



Em 1992 da-se início à derrocada do Apartheid na África do Sul. Frederik Willem de Klerk, então presidente do país, revoga leis racistas e inicia o diálogo com o Congresso Nacional Africano - CNA, apesar da reação e grande resistência da direita. Um plebiscito só para brancos, realizado neste mesmo ano, em que 69% dos votantes se pronunciam pelo fim do Apartheid foi seguido, em 1993 pela convocação de eleição multirracial para abril de 1994.
Fora do parlamento, onde estava sendo votada a continuidade ou não do regime de Apartheid, uma praça cheia de sul africanos negros, de punho erguido, protestavam à espera do resultado. Ali, em meio à multidão, se avista um jovem branco que fotografa, deixando escapar amadorismo, pegando ângulos que lhe interessavam daquela gente na expectativa dos resultados mais esperados ao longo de suas vidas. Naquele momento abria-se uma estrada que levaria o jovem fotógrafo muito além do que poderiam imaginar, ele próprio, uma jornalista que acabara de conhecer e a plateia. É o começo de uma jornada em que tomamos parte, queiramos ou não, pelo carisma do viajante, pela sedução da vida pulsante, jovem e descomprometida que vai descortinando, a cada quilômetro, inusitadas sensações, inesperados acontecimentos, paisagens, cores, cheiros, sabores mas também, violência medo e temor. Não há como ficar de fora da pujança de gestos, dos excessos de surpresas nos poucos anos de vida  do carismático Dan, retratados na tela. É da sua vida que vêm os motivos para inquietar, fazer rir, chorar, amar e, nesses tempos de quietude e sedentarismo obrigatórios, nos tornar os maiores globetrotters do planeta. A África é o mundo todo nas mãos e nos pés e no coração desse jovem, que continua esculpindo-a com o talento de quem ama a vida e quer todos, como ele, felizes, até mesmo no rincão mais distante e massacrado do continente. Um jovem bom, apaixonado e feliz que com doçura se revolta e combate o racismo, despreza o nazismo, e luta por igualdade. The Journey is the Destination, a Jornada é o Destino [em si]. Nada pode melhor definir o que foi Dan Eldon do que o próprio título do filme. O que foi, o que viveu. Esse fotojornalista moldado na estrada, nas ruas e nas casas dos que tão bem soube respeitar e defender, foi vítima, em última instância da confiança no outro e da famigerada "guerra humanitária” de Bush, na África.
A história volta algum tempo até seus anos na Escola Internacional do Quênia, onde está concluindo os estudos secundários e já sonha em explorar o mundo, registrando-o por suas lentes. De início a impressão de uma história a ser contada para os peers, impressão logo revista pela certeza que o talento do protagonista e emoção não faltarão para dar credibilidade à narrativa e envolver diferentes tipos de audiência.  A primeira foto tirada, lost in hell and paradise, já traz autenticidade, já vislumbra a figura que se difere no meio dos seus e, seguramente, nos levará a um mundo de cores, todas as cores.  
A primeira estrada percorrida pelo estudante que, de forma inusitada, sabia quais almas mereceriam atenção, em qualquer canto, o oposto do que se esperaria do jovem para quem amigos e família já haviam traçado e definido caminho e destino certos: a cena de um primeiro olhar curioso na TV é o desenrolar cinematográfico do que está por vir. Em 1990 consegue mobilizar um grupo de amigos, os mais impensáveis, em uma trip humanitária rumo ao Malaui. Um campo de refugiado de que tinha conhecimento e queria ajudar foi o mote da arribada. Aquelas viagens em que se embarca pela influência, sedução e carisma do mentor. Um safari humanitário que tem aí o seu start.
Safari com dias contados quando os amigos, ao contrário de Dan, não vêem nas aventuras moçambicanas, que se tornam cada vez mais perigosas, um destino que vale a pena buscar, um caminho a seguir. Abandonam o projeto de viajantes e exploradores do continente africano, forçando-o a continuar como fotógrafo em terras ricas em cultura, mas também em minas, guerras em cidades muitiétnicas, coloridas, alegres e tristes. Leva a sério, portanto, o que havia dito sobre trocar a escola formal pela escola da vida. Abre o caminho para conquistas inusitadas, como registrar o fim do Apartheid na África do Sul, viver a escalada da violência e da fome na Somália, conhecer profissionais e pessoas na sua curta e intensa trajetória, como a jovem jornalista, que se tornaria futura colega na agência britânica Reuters.
Até chegar a ser o reconhecido fotojornalista da Reuters teve suas provas de fogo em cidades destruídas, com corpos estilhaçados nas ruas e nas casas, gente desnutrida, alvos de artilharia, ignoradas e sem horizonte. Profundamente cheio de paixão pela vida, pelo humano, tornava-se único onde estivesse. Jovem branco em uma África com conflitos raciais, família com posses, chances de ir estudar em qualquer universidade londrina, optou pelo mundano. Na Somália é o mais jovem dos jornalistas da Reuters, até aquela altura, em toda história da agência britânica de notícias. O filme é um espelho e identidade de sua vida antes já registrada por ele mesmo em arte que postumamente se tornou livro. A sua verdade estava na empatia com o sofrimento alheio, na esperança e no desejo de contribuir com o combate a injustiças e levar alguma esperança para os desesperançados em meio ao caos dos países em guerra na África. Aquele mesmo compromisso pessoal com a vida, que se encontra nos bons, "nas boas almas", uma generosidade acrescida de firmeza. Aquela gentileza firme para que se sustente e, em ação, resultem bons produtos e não,  cause perdas.  No meio de uma juventude  radicalizada, refugiados em zonas de conflito, mas também jornalistas comprometidos com a verdade para fugir ao tradicional papel de registrar com os olhos dos poderosos e vitoriosos. Tudo podendo fazer uma grande diferença para o mundo. Dan vive não só para si, tem espírito comunitário, este é mais um de seus talentos. Em meio à guerra e aos diferentes grupos destruídos e destruidores faz arte, literalmente, é amoroso e se apaixona por Saba (vivida por Yusra Warsama), um crush que despontou antes do primeiro safari e vai percorrer consigo a jornada, seja presencial ou espiritualmente. Saba é redenção, amor e prova de que teve que "endurecer mas sem perder a ternura”.
Mark Ashton o mesmo ator que fez o ativista pelos direitos gays, no filme Pride de 2014, mostra mais uma vez seu talento como Dan. Atuação que traz dinamismo à cinebiografia, desburocratiza a história, torna-a apaixonante. O fio da meada da vida de Eldon, o biografado, não se deixa perder no roteiro, tampouco tem seu fim quando a tragédia o vitima. Fiel, envolvente com suas atitudes parcimoniosas e astutas em meio ao perigo, faz da fatalidade no caminho, que poderia lhe roubar o brilho, lhe trazer desesperança, um chamamento para continuar, por termo ao mal da guerra, utopia ou não. Arte e paixão os acompanhavam onde estivesse, no Quênia, na África do Sul, Malaui, Moçambique Londres ou Somália, onde infelizmente encerra sua vida e carreira prematuramente, apedrejado em um bairro periférico da Mogadíscio destruída por forças ianques. Uma turba raivosa cumpre o desejo insano dos desesperados, niilistas. O ano era 1993, quando Eldon teve abruptamente a vida interrompida por uma vingança abstrata, sem direção nem alvo. Com ele não se foram seus planos de respeito e autonomia de povos e países, pois ainda inspiram a luta de muitos jovens por justiça e para  mudar o mundo.
A sensibilidade em captar a alma humana pelas lentes de sua câmara unia-se ao desejo de ver e registrar paisagens e pessoas, costumes e cultura. A câmara era a extensão da sua visão de mundo, apreendia e fotografava o que sentia e o que sentiam os fotografados por  "lugares fora dos caminhos mais trilhados"(1), como diz Calligaris.

Dan Eldon viveu apenas 22 anos e teve trabalhos jornalísticos publicados na “Times” e na “Newsweek”, onde mostrou uma pequena parte do seu talento. No filme, sua veia artística é revelada além da fotografia, na beleza plástica de suas colagens, construídas com recursos que combinavam fotografias da África com pinturas, pastiche, imagens da cultura pop, publicidade e documentos oficiais, fazendo uma construção da própria história e existência:

 The Journey is the Destination coleta páginas dos 17 scrapbooks que fizeram parte da sua arte. [Pondo em ordem cronológica] seu trabalho desde os 14 anos até sua morte aos 22, o volume é surpreendente, não só na intensidade e reflexão das páginas, mas também no fato de que alguém tão jovem poderia ter esse tipo de visão e profundidade artística. Baseado numa grande história real… muito interessante, uma pena ter um desfecho tão trágico.(2)


Uma vida extraordinária que tão bem soube honrar o ator Ben Schnetzer com seu talento e entrega. Transformou-se nesse fotojornalista, artista e aventureiro Dan Eldon, que já tinha inspirado um livro, uma base para apoiar o ativismo criativo e posteriormente inspirar um grande filme. Fica o legado do jovem artista com seus poderes criativos registrados em páginas coloridas, uma permanente inspiração que seguramente continuará pulsante para gerações futuras. Mérito também da diretora canadense Bronwen Hughes que soube, a partir de um legado de escritas, fotos e relatos torna-lo, como merecia, ainda maior e universal, respeitando todos os seus sentidos estéticos, plásticos humanitários e políticos.

Antonio C. R. Tupinambá
28.06.2020

                                                                      Ben Schnetzer vivendo Dan Eldon.

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1) Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0805200824.htm>. Acesso em: 30 mar. 2021.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Guerra em tempo de Pandemia









Criança brinca com um fuzil de brinquedo entre apoiadores armados do grupo político-religioso Houthi, que segue em combate contra as forças da coalizão comandada por Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, na cidade portuária de Hudeida, no Iêmen — Foto: Mohammed Huwais/AFP



Todos os dias, quando saio de casa, digo adeus à minha família como se fosse a última vez que os vi. Porque muito bem poderia ser. Eu moro em Sanaa, capital do Iêmen - uma terra de desertos, montanhas e tribos que foi devastada por guerras, desnutrição e doenças, tanto que a ONU declarou que é o cenário do pior desastre humanitário do mundo. Isso ocorre porque os últimos anos viram um turbilhão vertiginoso de grupos regionais e locais brigando entre si. E nós - as pessoas que moramos aqui - somos apanhados no meio.1

A transição política esperada pelo país em 2011, período da Primavera Árabe, falhou e acirrou os problemas políticos de uma fraca representação executiva minada pela onda de conflitos em toda a nação. A esperança que vinha com a Primavera foi substituída por um inverno longo, soturno e cruel de grande instabilidade, o que forçou o presidente Ali Abdullah Saleh passar o poder para seu  sucessor, Abdrabbuh Manour Hadi. Hadi herdou o poder mas também uma série de problemas que iam desde ataques hijadistas, falta de apoio e segurança daqueles que seguiam leais ao ex-presidente, além de muita corrupção, desemprego e fome. Tinha-se então a imagem da devastação de um país, com seu povo perdido em meio ao caos estabelecido que gerava desesperança e todas as mazelas daí advindas. O quadro desolador pintado em preto e branco era de uma população sobrevivendo com um sistema imunológico já debilitado em um país que dependia quase totalmente de ajuda humanitária, tendo que enfrentar em 2020 uma outra praga, a pandemia de covid-19. Fome, dengue, cólera e malária anteciparam a chegada da pandemia do corona vírus ao Iêmen. A previsão de que com isso o Iêmen sofreria as consequências dessa pandemia mais do que se viria em qualquer outra parte do mundo foi comprovada. Some-se a esses infortúnios um sistema de saúde precário ou quase inexistente em consequência desses cinco anos de guerra, conflitos internos e ausência de uma reconhecida autoridade central. Aqueles que se dizem representantes dos diferentes extratos populacionais em regiões distintas do país terminam por usar toda a sua energia nos embates políticos e nos conflitos permanentes, impedindo qualquer tentativa de ajuda ao povo em suas bases e domicílios. A incursão de transportes com ajuda humanitária é inviabilizada no país fracionado, com tropas governamentais, rebeldes e forças externas obstruindo sua passagem. Bloqueios terrestres, aéreos e marítimos orquestrados por coalizões comandadas pela Arábia Saudita, intervenção iraniana, política intervencionista estadunidense, movimentos separatistas internos etc. promovem um caos que favorece a proliferação e a impossibilidade de meios de combate ao vírus, o único que deveria ser considerado inimigo invisível mas real nesse momento. Para isso seria necessário uma trégua que parece cada dia mais distante. Já em 2017 as forças intervencionistas jogavam mais combustível no fogo:  

É difícil imaginar Donald Trump piorando a situação no Iêmen, mas ele fez. Empobrecido, só para começar, o Iêmen está há dois anos em uma guerra civil que matou 10.000 pessoas e deslocou milhões. Uma campanha de bombardeio fornecida pelos EUA transformou escolas, hospitais, infraestrutura essencial e sítios antigos históricos em escombros. E um bloqueio apoiado pelos EUA está impedindo o comércio de alimentos e bens básicos, um país que passa fome e que antes dependia de 90%  de importações para seus alimentos.2

O movimento Houthi que sempre foi uma pedra no sapato do então presidente Saleh, avançou em suas incursões terrestres se aproveitando do pouco apoio e representatividade do presidente e conseguiu tomar o controle das terras de Saada, a Noroeste do país. Com o apoio de grupos populacionais, conquistou a capital do país, Sanaa. Enquanto isso o presidente Hadi não consegue negociar com o grupo separatista, pois segundo ele não estariam prontos para um processo de paz, agravando a crise e inviabilizando ações de apoio à população castigada.
A instabilidade no Iêmen pode não ficar restrita às diferenças entre os Houthis e o governo, mas também se expandir e gerar um efeito cascata com ataques oriundos de terroristas ligados à al-Qaeda ou ao IS, se aproveitando de toda essa instabilidade. 
Os interesses em domínio de terras iemenitas não são recentes e podem ser explicados também por sua geografia. Afinal de contas o Iêmen está estrategicamente localizado em região que liga o Mar Vermelho e o Golfo de Aden, por onde passa grande quantidade do petróleo que abastece boa parte do mundo. Por conta da sua localização nessa rota comercial de petróleo, sua importância estratégica! Ademais tem como vizinhos de fronteira e de região  grandes produtores de petróleo do Oriente Médio como Arábia Saudita, Oman, Kwait, Iraque e Irã. 
Nesse quadro desolador torna-se vital a presença dos Médicos Sem Fronteira - MSF - em Aden no único hospital para pacientes do coronavírus em toda a região sul do Iêmen. No entanto, outros países e a ONU devem se unir para que se possa responder a essa catástrofe, ainda a tempo. Uma das formas que qualquer pessoa pode ajudar é através do apoio ao MSF e cobrando da mídia maior divulgação da tragédia iemenita para conseguir o engajamento de diferentes grupos à causa: "O principal centro de tratamento de coronavírus no sul do Iêmen registrou pelo menos 68 mortes em pouco mais de duas semanas… A cifra - mais que o dobro do número anunciado pelas autoridades iemenitas até agora - sugere 'uma catástrofe mais ampla que se alastra na cidade’” 3
No meio de conflitos de interesses que acirram ainda mais as disputas internas e externas, o Coronavírus emerge como inimigo poderoso, se espalhando rapidamente, em uma velocidade que poderá ser imprevisível e trazendo consigo consequências letais para a população local em uma dimensão bem maior do que no resto do mundo. 
Jens Laerke, porta-voz do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), em uma entrevista em Genebra afirma que se não chegar ajuda financeira, os programas que mantêm as pessoas vivas, "essenciais para combater a COVID, terão que ser encerrados… e então o mundo terá que testemunhar no país o que acontece sem um sistema de saúde em funcionamento lutando contra o COVID”. 4
Somente uma maior atenção da ONU e de uma população atenta ao redor do planeta pode forçar uma mudança nesse quadro, levando os até agora insensíveis agentes dessas guerra a um cessar fogo bem como a um apoio concreto de governos, principalmente daqueles envolvidos no conflito, o que permitiria uma atuação humanitária e o ressurgimento de alguma esperança para o povo do Iêmen. Isso viabilizaria ações locais para o combate ao novo e impiedoso inimigo que, doutro modo, será devastador naquele ambiente. Uma das maiores catástrofes mundiais em época de covid-19 se avizinha e, até o momento, quase nada tem sido feito para evitá-la.




Um menino segura um livro enquanto caminha entre livros e papéis espalhados pelo chão após um ataque aéreo que atingiu a biblioteca de uma escola na cidade de Saada, no noroeste do Iêmen, em 13 de janeiro de 2018 (Naif Rahma/Reuters)

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1) NOMAN, J. War in the time of cholera, 6 de março de 2008. Disponível em:  https://correspondent.afp.com/war-time-cholera  Acesso em: 27 de junho de 2020.
2) EMMONS, A. Trump Intends to Follow up Botched Yemen Military Raid by Helping Saudis Target Civilian. The Intercept. Disponível em:: https://theintercept.com/2017/02/10/trump-intends-to-follow-up-botched-yemen-military-raid-by-helping-saudis-target-civilians/. Acesso em 27 de junho de 2020.
3)NEBEHAY, S. Yemen’s health system 'has in effect collapsed' as COVID spreads: U.N. Reuters. Disponível em: https://br.reuters.com/article/worldNews/idUSKBN22Y18V. Acesso em 27 de junho de 2020.
4)NEBEHAY, S. Yemen’s health system 'has in effect collapsed' as COVID spreads: U.N. Reuters. Disponível em: https://br.reuters.com/article/worldNews/idUSKBN22Y18V. Acesso em 27 de junho de 2020.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

O livro e a guerra










 (Jessica Brown Findlay, Tom Courtenay, Katherine Parkinson, Penelope Wilton e Michiel Huisman em  A  Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata - The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society, 2018).



       O que seria mesmo essa Sociedade Literária que intitula o filme de Mike Newell? Como conseguiu existir uma sociedade literária no meio das adversidades de uma guerra desigual; durante uma invasão que provocou fome e tornaria a luta pela sobrevivência o único desafio esperado? Tudo isso no centro de uma ocupação nazista em uma pequena e idílica ilha inglesa. Antes de tentarmos pensar sobre isso, um pouco da história dessa guerra e dessas pessoas que souberam a ela resistir com a ajuda dos livros.
    Bem próximo à Costa da Normandia, no Canal da Mancha está o arquipélago britânico, que foi palco de uma invasão das tropas nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. A ocupação que se estendeu por quase cinco anos, entre 1940 e 1945, deixou não apenas rastros de destruição física, as minas das praias continuaram matando ingleses e alemães no pós-guerra, mas também destruição social, cultural e psicológica, vidas e famílias desfeitas, destroçadas naqueles momentos sombrios.
    As atrocidades tinham um fim: propaganda nazista, treinos militares e armação de uma invasão à Inglaterra, que de fato nunca ocorreu. Famílias em fuga, abandonando suas casas e pertences, mas também se esfacelando; os que não saíam continuavam juntos mas sob a tirania dos nazistas; fome, destruição e submissão era o que lhes aguardava. Fome e jugo para os que ficaram vivendo lado a lado do inimigo. Foram cinco anos de miséria física e mental, para quase metade da população da ilha Guernsey, que não abandonou, por diferentes motivos, suas casas. Em 28 de junho de 1940, quando o Porto de St. Peter foi bombardeado pelas forças nazistas alemãs, quase todas as crianças e muitos adultos tinham sido postos em embarcações  para fugir rumo à Inglaterra, em busca de um porto seguro nesses dias sem horizonte. Falamos de Guernsey, especificamente, porque lá se passou a história de uma certa Comunidade Literária, transformada em filme de 2018. Uma obra cinematográfica acerca da vitória do livro sobre as armas, do testemunho da supremacia da linguagem da literatura sobre a linguagem da guerra. Essa mesma linguagem cuja força tentamos mostrar também sempre ter existido no Brasil e mais recentemente, desde e a despeito do golpe de 2016 continua resistindo. Força que se torna o oposto do belicismo e da opressão, vencendo-os, cedo ou tarde. Há no filme o retrato da esperança de que nenhuma arma pode ser de tão forte efeito quanto a leitura e a educação. Tinta sobre papel resistindo a bombas e ignorância.
    Em 9 e 10 de maio de 1945 todas as ilhas britânicas do Canal da Mancha foram libertadas pelas Forças Aliadas. Rastros de destruição que deixaram para trás os nazistas não ficaram registrados apenas nas anti-poéticas construções de guerra que podem ser avistadas desde longe, contrastando com a paisagem local, mas também nas vidas perdidas por minas terrestres, pela fome provocada, e pela destruição de famílias, amizades e autoestima.     
    Duncan Barrett no livro autoral "Ilhas Britânicas de Hitler” aponta que a invasão das tropas do Führer às ilhas do Canal tinha endereço certo e serviria de trampolim para uma invasão à Inglaterra, o que para o bem dos ingleses, nunca chegou a se concretizar.(1)
    Apesar do mal que significou a invasão para a vida dos ilhéus, havia quem enxergasse alguns dos intrusos alemães como homens que apenas vestiam uniforme, sem alma ou personalidade; às vezes, até mesmo com alma, sem propósitos e marionetes.  Entretanto terminavam por desistir de vê-los além da condição de nazistas reais - indivíduos comprometidos com o nacional-socialismo e com seu mal maior, o Führer. Os alemães na ilha que eram apenas soldados comuns, ansiosos para voltar a suas casas e para suas famílias, para que a guerra ou sua missão chegasse a um termo não conseguiam refrear o mal estar junto aos locais, que era resultante da presença nazista e da indesejada figura de Hitler. Alguns procuravam ativamente oportunidades para formar relacionamentos amigáveis ​​com os ilhéus e provar que não eram "o tipo de monstro que havia sido pintado pela propaganda dos Aliados". No entanto ali estavam indissociáveis da representação nazista, de Hitler e de sua ideologia, o que acirrava o ceticismo e afastava a população de qualquer desejo ou tentativa de aproximação. Não haveria como não deslegitimar e deixar de punir qualquer aproximação com os algozes. Ajudado por muitos eventos desagradáveis, desumanos e muitas injustiças, o clima era de animosidade, tornando a convivência distante daquela que os invasores queriam fosse mais “civil.” Ademais houve resistência de natureza humanitária também, pois a construção dos fortes de guerra para uso alemão ocorreu a custa do trabalho escravo. Muitos Europeus foram trazidos à ilha e tratados como subumanos (Untermenschen) pelos nazistas, o que revoltava a população local remanescente. Voltando ao filme, é exatamente nesse enredo que a personagem Elizabeth, central no desfecho da trama, se vê perseguida ao tentar salvar um menino escravo das garras nazistas. 
    Um aspecto de relevo explorado pelo diretor é simbólico para o grande mal que significava a convivência ou qualquer relação de amizade ou tentativa de interação de outra natureza pelos habitantes locais com qualquer um elemento do lado inimigo. É na sociedade fundada para vencer a guerra pela letra que isso se deixa revelar. Daí se origina essa grande revelação no final da trama; o pomo da discórdia, a razão do mal estar que circunda os membros da Sociedade Literária e a dificuldade em aceitar a presença da escritora visitante, que busca acolhimento. Esse acolhimento seria a custa da honra, exigiria revelações, ferindo os brios de quem viveu uma história ainda sem desfecho final. Há, portanto, segredos que pertencem só aos locais; lembranças reprimidas que assim devem continuar; inacessíveis ao testemunho de uma estranha, uma não convidada. A afinidade da leitura termina no incômodo da exigência em revelar as consequências da guerra, nos remanescentes do sofrimento e da esperança combalida. Já para outros, essa revelação deveria ocorrer pois poderia ser o fio de Ariadne.  
    Aqui voltamos à pergunta que fizemos no início: O que seria mesmo essa Sociedade Literária? Como conseguiu existir no meio das adversidades da guerra naquela remota e esquecida ilha da Normandia? 
    Eventos que dão vida à plástica e bem narrada história do grupo fundante de uma sociedade literária visando fugir das agruras e dos tempos sombrios trazidos pela invasão nazista em Guernsey têm, em parte, eco na realidade. Também pode ter eco no passado. A beleza das leituras de trechos de livros regadas a culinária cuidadosamente improvisada em tempos de escassez, no calor da cumplicidade dos que não se rendem fácil ao trágico destino. O calor, o amor, a lealdade de amigos e familiares ao redor do livro e da leitura trazem a comprovação do poder civilizatório como libertador da barbárie. A certeza de que dias melhores sempre virão para os que acreditam no ato humanizado, aqui simbolizado pelo livro e a leitura. A constatação de que apesar deles, "amanhã sempre será outro dia”, e o foi em Guernsey!
    A adaptação para filme do romance escrito por Mary Ann Shaffer e Annie Barrows, com o mesmo nome, traz-nos a crença na força das almas boas; mesmo esgarçadas pela brutalidade da guerra, se ilustram e, no recuo iluminado e estratégico buscam e conseguem a superação do mal externo invasor. 
    Lançado em 2018, A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata tem Lily James e Michiel Huisman em seus papeis principais. Os dois protagonistas que, no início da trama, ainda desconhecidos, trocam cartas sobre livros são, a seguir, com os pés em terra firme, alçados a um voo literário para muito mais longe do que até então pensariam ser possível e desconheciam em suas vidas. Explicando: Tudo começa quando Juliet, escritora bem sucedida que vive em Londres do pós-Segunda Guerra, recebe uma carta de um desconhecido da ilha de Guernsey, o rústico e sensível fazendeiro Dawsey. Ao final, já vislumbrando que seu destino ficaria preso ao mundo de Guernsey e ao coração do ilhéu que acabara de conhecer, constata como esse pequeno artefato de papel e letras conseguiu feze-la trocar a vida segura em Londres por uma aventura em um mundo desconhecido e às vezes agreste, pondo em cheque costumes e expectativas.  A leitura de algumas cartas e livros, a fé na escrita e em quem a admira, a convivência e vivência da história lhe salvam de uma vida perfeita,  previsível, mas que nunca teria sido a sua, jamais tocaria sua alma como o fez a ilha e seu povo até então remota e desconhecido.
    Apesar de não ter existido uma Sociedade Literária nos moldes relatados, o filme se inspira em fatos que marcaram as vidas da ilha e as histórias de seus ilhéus. A sensação que nos deixa é de uma ficção que foi extraída da força que têm o livro e a leitura na transformação das pessoas e do mundo a seu redor. Sob os desvarios nazistas, a dança das letras vêm em um ritmo de alento e superação. Nas páginas e na tela, a ficção podendo ser, de algum modo, tão real quanto a história que a inspirou:

Um site turístico de Guernsey também explica ainda quanto do romance e filme é baseado na vida real. Diz: “Como no filme, muitas famílias foram separadas durante a guerra, enviando seus filhos para a segurança na Inglaterra. No entanto, muitos ilhéus seguiram seus filhos e também conseguiram evacuar de barco antes da chegada dos alemães. Quando os alemães desembarcaram em Guernsey, quase metade da população da ilha já havia fugido para a Grã-Bretanha continental… Ele também observa que, embora os personagens sejam fictícios, alguns são possivelmente inspirados por pessoas reais - particularmente Elizabeth, a fundadora da sociedade. “O personagem de Elizabeth, em particular, parece inspirar-se em uma história verdadeira. Marie Ozanne era uma mulher de Guernsey que enfrentou bravamente as forças de ocupação durante a Ocupação, pois desafiou a proibição do Exército de Salvação do qual era membro e também protestou contra o tratamento dado aos trabalhadores escravos. Como Elizabeth, Marie foi presa e morreu tristemente em 1943”.2

    E, ainda segundo Duncan Barrett havia, realmente, a torta de casca de batata no cardápio dos moradores de Guernsey. A mesma torta que dá o título ao filme e ao livro e era servida nas reuniões da Sociedade Literária. Um prato que se comia naqueles tempos em que durou a invasão, período em que grassava a fome. Batata era o que se tinha para comer.

Antonio C. R. Tupinambá
23 de junho de 2020.

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1) Dinning, R. Life under Nazi rule: the occupation of the Channel Islands, consultado em junho de 2020: https://www.historyextra.com/period/second-world-war/life-under-nazi-rule-the-occupation-of-the-channel-islands/.
2) Tenreyro, T. Is 'The Guernsey Literary And Potato Peel Pie Society' A True Story? 9 de agosto de 2018. Consultado em junho de 2020: https://www.bustle.com/p/is-the-guernsey-literary-potato-peel-pie-society-a-true-story-the-netflix-movie-spotlights-a-heroic-group-9967590.

domingo, 21 de junho de 2020

A Saga do Povo Rohingya (reescrito)





Dan Kitwood/Getty Images



Artigo escrito em 2017, revisado e complementado em 2020.

As Nações Unidas descrevem os Rohingya como um dos povos mais perseguidos do mundo, que comparados aos povos despatriados curdos, minoria muçulmana que vive em países como Turquia, Iraque, Síria e Irã, sofre de síndrome ainda pior por serem uma minoria “sem amigos e sem terra.”
Essa população de imigrantes passou a ser uma preocupação internacional tendo em vista o que lhe sucede atualmente em Mianmar. Apesar de estar presente na vida do países por séculos, são personas non gratas e desrespeitadas em seus direitos fundamentais. Trata-se de mais de um milhão de pessoas nesse grupo no país que lhes quer ignorar e expulsar. No estado de Rakhine, a Oeste do país, os Rohingyas formam um terço da população local e estão em constante atrito com outros grupos étnicos. Perseguidos desde os anos 1970, foram excluídos pela junta militar de Mianmar da lei de cidadania que considerou 135 diferentes grupos étnicos, roubando-lhes a cidadania e tornado-os repentinamente apátridas1. Um conflito que terminou por evidenciar uma violência nos religiosos Budistas, desmistificando aquelas características normalmente atribuídas à religião. O extremismo também contamina o Budismo tradicionalmente opostos aos ensinamentos do valor da tolerância por Buda. Ainda se testemunha um governo que se recusa em reconhecer a presença rohingya como integrante do quadro multiétnico do país, ajudado por milícias que vão se formando e exigindo a criação de um Estado muçulmano dentre de uma nação soberana, o que é irracional, não representativo e um desserviço à causa legítima desse grupo étnico. A presença Rohingya em Mianmar remonta aos períodos coloniais britânicos, para onde foram levados como mão-de-obra barata, podendo terem suas origens em agricultores de Bangladesh ou em mercadores muçulmanos; um misto de etnias.
No curso desses desmandos colonizadores, Mianmar importou, portanto, esses muçulmanos, principalmente da região que hoje é o atual Bangladesh, para servir aos objetivos exploratórios dos senhores estrangeiros na terra que era então denominada Birmânia. Isso impôs a convivência forçada dos novos imigrantes no seio de uma sociedade estruturada e com costumes, religião e cultura próprios.  Completamente despreparada para lidar com esses novos trabalhadores de terras e costumes distantes, apenas ali jogados, sem qualquer princípio de integração ou adequação, os imigrantes ocuparam o que hoje se conhece como a região mais pobre e problemática do país asiático, levando à formação de fronteiras religiosas e psicológicas quase intransponíveis, principalmente a Noroeste do país. Um cenário de ódio e perseguição foi se formando ao longo dessa justaposição de povos e etnias que só se agravou com o passar do tempo e levou ao caos atual e a impossibilidade de convivência e aceitação mútua. Aung San Suu Kyi, que se esperava ser uma provável força de pacificação para a região se tornou uma incerteza e motivo de desconfiança para a comunidade internacional com suas atitudes negacionistas face ao tema da perseguição aos Rohingyas. 

O conflito entre muçulmanos rohingya e budistas no Estado de Rakhine se intensificou em 2012, 2015, 2016 e 2017. Em junho e outubro de 2012, membros do partido político de Arakan, os próprios monges budistas e arakaneses comuns organizaram, incitaram a violência e atacaram as comunidades muçulmanas de Rohingya e Kaman. Como resultado dessa violência, pelo menos 125.000 muçulmanos foram deslocados internamente. Muitos foram mortos e enterrados em valas comuns. Em 2012, muçulmanos (tanto rohingyas como kamans) foram expulsos de seus locais de residência em Central Rakhine, especialmente de grandes cidades como Sittwe e Pauktaw, mas também de pequenas aldeias. Mais de 120.000 rohingya fugiram dos campos, muitos dos quais foram levados a fazer perigosas viagens marítimas. A limpeza étnica dos muçulmanos rohingya, promovida pelas forças de segurança de Mianmar e Arakan no Estado de Arakan a partir de junho de 2012, constitui crimes contra a humanidade. A maioria budista ultranacionalista se envolveu em atos de violência contra os rohingya.2

Em 2015 dá-se o início de uma grande crise por conta do número de refugiados, os muçulmanos de Mianmar, em êxodo e perdidos nos mares e nas ilhas da Ásia. Apesar de viverem há gerações em Mianmar continuam com o status de imigrantes e lhes é negada a cidadania daquele país. Ora se lançam no mar em busca de aportar em países que os acolham, ainda que de modo compulsório, ora preferem o caminho mais rápido da fuga dos exércitos e dos vizinhos raivosos birmaneses atravessando a selva e chegando, por terra, à Tailândia, país fronteiriço. No país que foram obrigados a adotar como seu lhes são negados direitos civis elementares como o de se casar ou de ter propriedades, seja um lar ou alguma terra para a lavoura. A proibição se estende como forma de controle de procriação, semelhante ao que fizeram os chineses com seus concidadãos no intuito de evitar um crescimento populacional desenfreado e fora de controle.
As incertezas políticas do país e a insegurança de uma região pobre e negligenciada pelo governo central de Mianmar aumentam as dificuldades do povo local e os empurram para o acirramento do conflito que ganha tons econômicos e religiosos. Muitos dos cidadãos budistas, que compõem mais de 90 por cento da população do país, sequer denominam essa minoria local “Rohingya”, preferindo chama-los de “Bengalis muçulmanos”, deixando assim  claro, que para eles se trata de um grupo minoritário imigrado de Bangladesh sem direito a compartilhar com eles uma mesma cidadania. Nem mesmo outros países na região, apesar de se esperar laços fraternos pela religião em comum, se dignam a ajudar os milhares que se lançam em embarcações frágeis pelo mares abertos do Índico. Nem mesmo a Indonésia, maior nação majoritariamente muçulmana do mundo, se sensibiliza com os milhares de Rohingyas empilhados nas frágeis embarcações em mar aberto, ignora o perigo que correm e proíbe seus pescadores de ajuda-los nessas duras travessias.
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1)y, R. (2019). A  crise dos refugiados Rohingyas. Revista Internacional de Direitos Humanos. SUR 29 - v.16 n.29 • 53 - 66. 
2)y, R. (2019). A  crise dos refugiados Rohingyas. Revista Internacional de Direitos Humanos. SUR 29 - v.16 n.29 • 53 - 66, p. 57.

Há o que se comemorar no 20 de junho?



Êxodo
Quando partem para a terra proibida,
não é por arroios de leite e de mel.
Só fogem pra onde não caiam dos céus
As pragas, o abraço abissal das ruínas.

O povo que Deus deserdou no deserto,
que ora e suplica, mas nunca é ouvido,
faz tempo entendeu que não há fogo amigo,
nenhum arde na sarça. nem há mais certo

ou errado. Fogem dos tanques, dos seus,
com a morte amarrada nos seus calcanhares.
Atrás de um lugar que ninguém prometeu,
vivem novas versões dos velhos milagres:
transformar água em sangue, partir os mares
(com seus corpos de desespero e desastre). 
Leoni.



Sábado, 20 de junho, dia internacional do refugiado!
Hoje é dia de nos lembrarmos e nos solidarizarmos com as hordas de migrantes que atravessam fronteiras, fugindo de perseguição, fome, guerra e todos os males que ceifam vidas e tentam destruir a esperança: "O dia 20 de junho marca a celebração do Dia Mundial do Refugiado. Instituído no ano 2000 pela Organização das Nações Unidas (ONU), a data propõe consciencializar os governos e as populações para o problema grave dos refugiados, e celebrar a força, coragem e perseverança das pessoas que foram forçadas a deixar suas casas e seus países por motivo de guerras, perseguições e violações de direitos humanos"1.
Há muitos povos que podem ser incluídos entre os que foram esquecidos e relegados à categoria de subumanos, desprovidos de sua nacionalidade, lançados na vala comum dos abandonados. Uma lista que não se deixaria terminar facilmente: da Ásia ao Caribe; do Norte da África ao Sul das Américas. Bengalis a Guatemaltecos; Palestinos a Sudaneses... Todos alvo de perseguições, com a mesma sina dos sem nação, sem abrigo e sem proteção. Curdos sem pátria, Saarauis em fuga, Sírios bombardeados, Subsaarianos em rotas clandestinas, Latinos na fronteira mais cobiçada das Américas e Rohingyas nas estradas e nos mares em rota de fuga, deixando o exílio forçado em Myanmar. Esses últimos são considerados pela ONU alvo de uma limpeza étnica, vítimas do movimento genocida de Mianmar. O mais alto tribunal das Nações Unidas se viu obrigado a exigir que o país parasse com a matança em suas aldeias e vilas. No mês de janeiro de 2020 foi lida a sentença que exige esse fim ao genocídio Rohingya em Mianmar. Nada foi mais decepcionante para a comunidade internacional, do que a posição da prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, líder birmanês, que se tornou uma negacionista dos crimes cometidos e amplamente documentados contra o povo Rohingya: "O caso foi apresentado pela Gâmbia, um estado predominantemente muçulmano da África Ocidental que alega que Myanmar violou a convenção de genocídio de 1948 promulgada após o Holocausto. 'Há outro genocídio a acontecer diante dos nossos olhos, mas não estamos a fazer nada para detê-lo. Isto é uma mancha na nossa consciência coletiva. Não é apenas o Estado de Myanmar que está a ser julgado aqui, é a nossa humanidade coletiva', disse, em dezembro, perante o Tribunal, a procuradora-geral da Gâmbia e ministra da Justiça, Abubacarr Marie Tambadou”2 . A saga rohingya em Mianmar, antiga Birmânia, resulta de uma guerra civil dos anos 1948. Muitos grupos étnicos não Bama, etnia majoritária daquele país, se viram e ainda se vêem fora de todos os extratos sociais que comandam e são responsáveis pela nação, seja na política, economia ou cultura. Essa etnia dominante no país, a Bama, tem, portanto, hegemonia cultural, política e econômica, apesar da grande diversidade populacional que forma a nação birmanesa.
É, portanto, com a saga desse povo esquecido e ignorado, inclusive por quem o considera irmão de crença e de origem, que denunciamos e conclamamos nesse dia 20 de junho o apoio à luta legítima de todos os refugiados do mundo. Trat-se, portanto, de combater o descaso que leva ao infortúnio e muitas vezes à morte de povos que, por direito, buscam em última instância, por sobrevivência em terras estranhas ou alheias. Seja pelo recrudescimento de políticas anti-imigratórias dos governos e sociedades insensíveis ou pela indiferença dos seus ditos irmãos muçulmanos, o povo Rohingya encontra como únicas saídas à perseguição e morte em Mianmar, as florestas, as fronteiras e o mar perigoso que trilham na tentativa de voltar a Bangladesh, o lar original. O egoísmo de países ricos ligados aos povos em fuga já ficou claro em suas atitudes de indiferença nos últimos tempos face ao problema da imigração, como por exemplo no caso de sírios ou africanos. Com exceção da Turquia, (Só em Basmane, bairro da cidade de Izmir, no oeste da Turquia, são abrigados 300.000 imigrantes sírios), todos os demais países muçulmanos lavam as mãos e deixam o problema dos imigrantes para países Ocidentais, principalmente europeus. Nada pode deter ou interferir na arrogância e no modo de vida desses ricos e novos ricos que mergulham em rituais religiosos mas permanecem indiferentes ao sofrimento de seus iguais. O Povo Rohingya que nesse dia homenageamos em nome dos despatriados e refugiados ao redor do mundo, foi abandonado à própria sorte em terras birmanesas ou vizinhas e só compartilha com seus irmãos e primos ricos muçulmanos, o mesmo credo. De resto são por eles ignorados e relegados à própria ou a nenhuma sorte; indesejáveis "primos pobres". 
As Nações Unidas já descreveram os Rohingya como um dos povos mais perseguidos do mundo, que comparados aos apátridas curdos, minoria muçulmana que vive em países como Turquia, Iraque, Síria e Irã, sofre de síndrome ainda pior por serem uma minoria “sem amigos e sem terra.”
O Império Britânico foi forjado a ferro e fogo por meio da invasão de terras longínquas e sem qualquer laço cultural ou histórico com o país europeu. Das suas investidas colonizadoras, muitas dessas terras invadidas amargam até hoje as más consequências de um governo imposto à revelia de incompatibilidades políticas e culturais. A Índia, por exemplo, se tornou um país pouco tolerante a diferenças no campo cultural ou de costumes por meio dos ensinamentos dos seus colonizadores britânicos: a cultura original de diversidade que refletia e respeitava pacificamente o mosaico humano nacional, foi substituída pela cultura do ódio ao diferente e uma vida à luz da banalidade obrigatória, retrógrada e perigosa dos ingleses vitorianos. 

A primeira grande experiência [de desenvolvimento econômico na era moderna] foi levada a cabo há duzentos anos, quando o governo britânico da Índia instituiu a "Colonização Permanente", que iria produzir coisas assombrosas. Uma comissão especial analisou seus resultados quarenta anos depois, concluindo que "a colonização, concebida com tanto cuidado e ponderação, infelizmente submeteu as classes baixas à mais penosa opressão", deixando atrás de si "as ossadas dos tecelões [que] branqueiam as planícies da Índia" e uma miséria que "não há de encontrar paralelo na história do comércio"3.
No curso desses desmandos colonizadores, Mianmar importou muçulmanos, principalmente da região que hoje é o atual Bangladesh, para servir aos objetivos exploratórios dos senhores estrangeiros na terra que era então denominada Birmânia, ex-colônia britânica. Isso impôs a convivência forçada dos novos imigrantes no seio de uma sociedade estruturada e com costumes e cultura abissalmente opostos e incompatíveis.  Completamente despreparada para lidar com os neófitos e sem qualquer princípio de integração ou adequação, os imigrantes foram jogados no que hoje se conhece como a região mais pobre e problemática do país asiático, levando à formação de fronteiras religiosas e psicológicas quase intransponíveis, a Noroeste do país. Um cenário de ódio e perseguição bem nos moldes das estratégias colonizadoras europeias, que vimos repetir-se ao redor do mundo, ao longo da história. Como não existe e nunca existirá uma “boa colonização”, em si uma contradição, uma falácia, em Mianmar ela conheceu suas consequências nos estertores do mal estar gerado nas relações locais entre seus povos.
Em 2015 testemunharam-se hordas de Rohingyas, os muçulmanos de Mianmar, em êxodo e perdidos nos mares e nas ilhas da Ásia. Apesar de viverem há gerações em Mianmar continuam com o status de imigrantes e lhes é negada a cidadania daquele país. Ora se lançam no mar em busca de aportar em terras que os acolham, ainda que de modo compulsório, ora preferem o caminho mais rápido da fuga dos exércitos e dos vizinhos raivosos birmaneses atravessando a selva e chegando, por terra, à Tailândia, país fronteiriço. No país que foram obrigados a adotar como pátria lhes são negados direitos civis elementares como o de se casar ou de ter propriedades, seja um lar ou alguma terra para a lavoura. A proibição se estende como forma de controle de procriação, semelhante ao que fizeram os chineses em certa altura com seus concidadãos, no intuito de evitar crescimento populacional.
As incertezas políticas do país e a insegurança de uma região pobre e negligenciada pelo governo central de Mianmar aumentam as dificuldades do povo local e os empurram para o acirramento do conflito que ganha tons econômicos e religiosos. Muitos dos cidadãos budistas, que compõem mais de 90 por cento da população do país, sequer denominam essa minoria local “Rohingya”, preferindo chama-los de “Bengalis muçulmanos”, deixando assim claro, que para eles se trata de um grupo minoritário imigrado de Bangladesh sem direito a compartilhar a mesma cidadania.

O Dia Mundial do Refugiado, 20 de junho, foi estabelecido pela ONU em 2001. Não é uma comemoração, pelo simples fato de haver muito pouco a se comemorar nessa realidade periférica. Trata-se muito mais de um data para que se tenha a dignidade de se olhar esse povo como corajoso, resistente e com força para abandonar suas casas onde são perseguidos, se vêem em meio a guerras, conflitos e perseguições: “Essa pessoas deixam tudo para trás, exceto a esperança. Mesmo em tempos de pandemia e incerteza, mantêm vivo o sonho de um futuro mais seguro4 e melhor. 

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1) Vieira, A. P. Dia Mundial do Refugiado: leia matéria produzida pela Revista Universidade. Consultado em junho de 2020: http://ufes.br/conteudo/dia-mundial-do-refugiado-leia-matéria-produzida-pela-revista-universidade 
2) Tribunal Internacional ordena a Myanmar que tome medidas para proteger os rohingya, consultado em junho de 2020: https://expresso.pt/internacional/2020-01-23-Tribunal-Internacional-ordena-a-Myanmar-que-tome-medidas-para-proteger-os-rohingya
3)  Chomsky, N. (2002). O lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro: Bertand. p. 29
4) Dia Mundial do Refugiado 2020, consultado em junho de 2020: https://www.acnur.org/portugues/diadorefugiado/