POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

E por que não começar por Arroios?


Memórias de uma passagem pelo bairro que é "o mundo todo". 





Obrigado a noventa e duas nações que fazem de Arroios o Mundo inteiro.

Gil do Carmo




Hoje, 3 de agosto de 2022, comecei minha empreitada lisboeta por Arroios. Não por acaso. Amo aqueles poucos quilômetros quadrados de bairro que compreende, como diz o fadista Gil do Carmo, o mundo todo. Muitos desses quilômetros ainda me faltam explorar. Divagar pelas ruas e praças do bairro leva a descobertas diversas: visuais, olfativas, do profundo lusitano ao também novo/velho original indiano, chinês, vietnamita, nigeriano ou árabe… que são de encher a alma de cosmopolitanismo e leva a um Fernweh imediato.





"Esta multiculturalidade revela-se a cada passo que se dá. Está no mapa-mundo feito de massinhas, nos globos de diferentes tamanhos e materiais, nas bandeiras de papel de vários países. Está nos olhos rasgados de Cristina, filha de chineses, e nas trancinhas da angolana Ehuliany. Está em Bimarsha, Drisana e Devin, do Nepal. Em Caleb e Peculiar, da Nigéria. Em Aiyush e Sherlin, da Índia, ou em Maha, do Paquistão. E está também na cozinha, cheia de cábulas na parede, para que tudo o que dali sai obedeça às regras de cada cultura e cada religião”. (Nelson Marques, jornalista). Esta é a minha primeira demarcação de uma viagem que só se inicia. Outras histórias e remarques virão, seguramente… Para continuar com esse passeio, recomendo o filme/documentário do músico (realizado por Diogo Borges a partir de uma ideia do próprio Gil do Carmo)  intitulado “Na Lisboa de Amanhã”, que traz, de modo primoroso, os segredos que guarda Arroios. Uma obra que “…pretende retratar a vida de Arroios, a freguesia mais multicultural de Lisboa, que, ao longo de dois quilómetros quadrados de área, acolhe cerca de 40 mil pessoas de 92 nacionalidades diferentes. A voz e os passos de Gil do Carmo, conduzem-nos pelas ruas agitadas deste bairro e revelam-nos algumas das suas preciosidades: o mercado de rua do Intendente, o restaurante árabe, as aulas de dança tradicional japonesa, a barbearia indiana ou o templo hindu”







Multiculturalidade, arte urbana e comida dos quatro cantos do mundo se juntam a uma cultura underground e vários tesouros históricos, sejam arquitetônicos ou na riqueza de seus azulejos. Em associação livre, lembra-me, guardadas as dimensões, of course, o "flair" de outros bairros que para mim são muito especiais pelo mundo, como Neukölln em Berlim ou Coral Gables em Miami. Como viajante que quer viver a cidade local, escolhi Arroios para começar minha peregrinação voluntária e turística desta feita. Não me arrependi. Dali se vai facilmente a outras pérolas locais, a pouco mais de dois quilômetros se avista o Teatro Nacional Dona Maria II, a um quilômetro e meio está o Miradouro da Senhora do Monte, já o Terreiro do Paço se distancia dali em apenas tres quilômetros

Antonio C.R. Tupinambá





segunda-feira, 8 de abril de 2024

Nada será como antes

  



E não foi mesmo! Depois do clube da esquina, nada ficou como antes era, pelo menos na música popular brasileira. 

Adoro Minas e os mineiros. Até hoje não entendi como podem os mineiros terem escolhido para liderar seu estado tão maravilhoso uma criatura desclassificada de um partido igualmente desclassificado. Bom, vai entender. Aconteceu muito pelo Brasil e Minas não escapou da onda fascista que invadiu o país e criou muitos monstros, despertou muitos outros adormecidos nas pessoas. 

O que me interessa, contudo, é falar do filme/documentário que tem a turma de Minas como protagonista. Os críticos não decidem por mim se devo ou não ver esse ou aquele filme. Atento ao que dizem mas quero ver com meus próprios olhos se estão certos ou se se trata apenas de uma opinião a (não) se levar em conta. Então, apesar das críticas, “ah, é um filme monótono…” (Nada Será como Antes' vale como memória, mas pode soar monótono. Folha de SP).

Sim, fui assistir. E que bom que fui. Nada de monótono. Para ser no feitio de um documentário até surpreende no seu dinamismo, trocas de cenas, falas, reconstruções de lugares e pessoas, musicalidade etc. Educativo também, pois muitas informações e relatos, a presença de todos os que participaram do movimento, presentes ou já não mais, aguçaram a nossa memória e traçaram o desenho necessário para se compreender quem e onde teve esse ou aquele papel no fenômeno da música mineira da era Milton. Traz aquela Minas e aquele Rio que abrigaram o nascimento e apogeu daquela música misto de mpb, Beatles, Jazz, clássicos, geografia mineira (“as notas às vezes, em altos e baixos, desenham as montanhas de Minas”) e tudo o mais que influenciou aqueles garotos precoces e talentosos. Há novas histórias e outras curiosidades sobre as pessoas e o período em que o disco foi criado que vêm à tona tendo como pano de fundo (e de frente) suas músicas. Embaladas pelas icônicas canções do álbum, as imagens do filme conseguem traduzir (visualmente) a época.
Quem diria que a ida à padaria para comprar pão e leite para o café da manhã fosse decisivo para o encontro que virou a eternidade e nos forneceu o melhor da música mineira/brasileira! O mesmo Lô Borges, que disse “carinhosamente”, que ao descer as escadas do seu apartamento viu aquele “negrinho” cantando, o que o impressionou e o arrebatou,  fazendo-o até mesmo abandonar sua missão de trazer o pão da família. Talvez seja essa a única alusão/expressão de racismo no filme (não intencional?), o que  me deixou surpreso. Não sofreu quaisquer atos de racismo, naqueles dias, o Milton? Afinal era ele o único preto do grupo. O filme não aborda o tema, mas me deixou curioso para saber se em Minas “era outra coisa” (não creio) ou se preferiram se deter no quesito música e política estudantil da época, que também foi fundamental para definir os caminhos da musicalidade e textualidade do Clube da Esquina.  


“O Álbum Clube da Esquina é considerado por muitos críticos musicais como um dos melhores de todos os tempos. Milton Nascimento, Lô Borges - então com 16 anos - e músicos do porte de Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Beto Guedes, Robertinho Silva, Wagner Tiso, criaram uma sonoridade única, que ajudou a revolucionar a música brasileira e mundial. Nada Será como Antes mergulha na musicalidade deste time de músicos excepcionais para entender como referências musicais diversas, e influências de paisagens, história e poesia refletiram em cada um deles e na música atemporal que criaram. No filme, as imagens, impregnadas pelas canções, são traduções visuais deste clássico da música mundial”.


Direção: Ana Rieper



Nada será como antes

Beto Guedes e Milton Nascimento



Eu já estou com o pé na estrada

Qualquer dia a gente se vê

Sei que nada será como antes, amanhã

Que notícias me dão dos amigos?

Que notícias me dão de você?

Alvoroço em meu coração

Amanhã ou depois de amanhã

Resistindo na boca da noite um gosto de sol

Num domingo qualquer, qualquer hora

Ventania em qualquer direção

Sei que nada será como antes amanhã

Que notícias me dão dos amigos?

Que notícias me dão de você?

Sei que nada será como está

Amanhã ou depois de amanhã

Resistindo na boca da noite um gosto de sol

Num domingo qualquer, qualquer hora

Ventania em qualquer direção

Sei que nada será como antes amanhã

Que notícias me dão dos amigos?

Que notícias me dão de você?

Sei que nada será como está

Amanhã ou depois de amanhã

Resistindo na boca da noite um gosto de sol.


Fortaleza, 8 de abril de 2024.

Antonio CR Tupinambá


sábado, 6 de abril de 2024

A maloca que deixou saudades

 




Ontem fui ao cinema do Dragão do Mar em Fortaleza (meu preferido na cidade, pois não sou chegado a cinema de shopping) para assistir ao longa SAUDOSA MALOCA de Pedro Serrano. Uma bela e nostálgica surpresa. O filme, uma narrativa a partir das músicas do Adoniran Barbosa, gênio das histórias do cotidiano de São Paulo, centro e subúrbio, conseguiu emplacar uma bela homenagem ao autor/músico, dos melhores do Brasil. Nostálgico porque está intimamente ligado a nosso passado "remoto e ancestral", quando, na radiola da sala, rodavam os vinis com suas capas coloridas e ilustradas com fotografias planejadas, revelando apenas o momento de sucesso de seus artistas. O que passaram para chegar até ali nem se imaginava, principalmente nós crianças, que só os ouvíamos porque não tínhamos ainda autonomia para escolher o que ouvir. Passei todo o filme com certa saudade, sem saber exatamente de que... Da radiola da sala com seus pés palitos ou da montanha de discos que, em sua maioria pertencia ao irmão mais velho e, portanto, não significavam nosso gosto?
Talvez isso mas também o entorno da música que ressoava aos domingos na casa com ampla sala de piso de mosaico encerado com cera Cachopa, portas escancaradas para entrar a luz do sol e dizer que todos se encontrariam ali, na rua Úrsula Garcia (nem sabia, naquela altura, que era o nome de uma escritora), para o almoço de domingo. É um filme de reminiscências e lembranças de um Brasil passado, não sei se bom ou ruim, mas passado e que é facilmente recuperado pela memória musical que costura o filme e possibilita a construção de um passo a passo pela escrita do compositor. Ítalo, que ainda não completou trinta, estava comigo. Foi preciso descrever para ele um pouco do Brasil da minha infância, dizer que aquela Iracema do filme, que "morreu ao atravessar na contra-mão" é a mesma da música "Iracema" do Adoniran, e outros detalhes históricos que a juventude desconhece ou ignora. A música "Saudosa Maloca" é, além de ponto de partida, desfecho e chegada. Paulo Miklos, que é, além de grande musicista ótimo ator conseguiu, no caso, incorporar o Adoniran, o compositor bem posto no recinto paulistano, seu mundo. Amei a presença de Gero Camilo como o Mato Grosso. O cinema gosta mais de galãs, já se queixou Gero há algum tempo, esse mesmo Gero que volta às telas num papel a sua altura e dá, muito bem, conta do recado. Já o "terceiro elemento", Gustavo Machado, é o tal Joca, um típico e decadente descendente de italianos, que incorporou a malandrice paulistana da periferia e tem em Jaçanã seu habitat, onde vive, óbvio, sob as asas da matriarca. As histórias de uma São Paulo que já não existe mais também passa por Cícero, vivido por Sidney Santiago, que “Adoniran” insiste em chamar de "Ciço", o jovem garçom de um bar, local de passagem e parada obrigatória do compositor. Foi difícil explicar ao jovem companheiro que comigo assistia ao filme como remeter cada uma de suas cenas e histórias às letras das diferentes músicas do Adoniran. Explicar que aquela paixão dos tres amigos por Iracema (Leilah Moreno) já tinha sido imortalizada com a ajuda do samba: "'Iracema', eu perdi o seu retrato...". O grupo de amigos sobreviventes e "salvos" pela música vê suas vidas ameaçadas quando "o bairro do Bixiga começa a passar por grandes transformações e a metrópole paulistana vai sendo lentamente engolida pelo 'pogréssio'". Meu amigo compreendeu melhor quando, de volta ao carro, pude mostrar-lhe, mais didaticamente, o elo entre filme e compositor, com ajuda das músicas cantadas por Elis Regina em parceria com o próprio Adoniran. Tudo ficou mais claro e foi mais fácil mostrar para o jovem mancebo, a partir daí, como o filme nasceu daquelas músicas inesquecíveis do Adoniran.

Antonio CR Tupinambá
Fortaleza abril de 2024.