POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Entre Rússia e Ucrânia, Crimeia e as autodeclaradas Repúblicas de Donezk e Luhansk tentam sobreviver

Mapa: República Popular de Luhansk (LPR); República Popular de Donetsk (DPR); Crimeia.  

SZ- Karte/Mapcreator.io


Assim como a Crimeia, Donezk e Luhansk também tiveram seus dias de República. O destino das províncias ucranianas separatistas que se declaram Repúblicas Populares Donezk e Luhansk, sem reconhecimento internacional, pode ser bem diferente do esperado por seus líderes e apoiadores russos. Na fronteira, entre Ucrânia e Russia,  Donbass é uma região que faz parte da Ucrânia e vem sendo controlada por grupos separatistas pró-Moscou que reivindicam independência desde 2014.  Donetzk, com uma população de cerca de dois milhões de habitantes, que já foi conhecida por Stalino na era soviética é atualmente a principal cidade na área de mineração de Donbass e um dos principais centros metalúrgicos da Ucrânia. Lugansk, cidade industrial da região com cerca de 1,5 milhão de habitantes, já foi chamada de Voroshilvograd sob o mando soviético. As administrações russas separatistas que ocupam as duas cidades "ordenaram usar e promover os nomes das cidades da era Stalin – Voroshilovgrad e Stalino – nos eventos relacionados à Segunda Guerra Mundial. O que pode parecer uma decisão ridícula à primeira vista, é parte da grande campanha de propaganda que já vem desde 2014 para separar mentalmente os moradores da região do resto da Ucrânia e mantê-los leais à Rússia.(1) 

    Em 2015, líderes mundiais se reuniram na capital da Bielorússia, Minsk, para discutir um acordo e buscar possíveis saídas para a crise; visando por fim ao conflito que já durava quase um ano na área leste da Ucrânia. Russos, ucranianos, alemães e franceses buscavam negociar a paz para uma Ucrânia combalida e vítima de inúmeros conflitos internos. Áreas da  região de Donbass conhecidas como República Popular de Luhansk (LPR) e a República Popular de Donetsk (DPR) deveriam, segundo a Ucrânia, permanecer sob seu controle e dentro de sua fronteira internacional. Em 2016, as duas “repúblicas" realizaram eleições primárias destinadas à prévia seleção de possíveis candidatos para as eleições locais, o que violaria o Acordo de Minsk. "De acordo com a Fundação Internacional para Sistemas Eleitorais (IFES), essas primárias são 'um pouco inúteis em um momento em que as futuras modalidades eleitorais ainda estão em negociação e ainda não está claro que tipo de entidades e candidatos políticos eleitorais irão defender'. A IFES avalia 'essas primárias amplamente como uma provocação política ou protesto em relação ao processo de paz’”.(2)


                           Áreas separatistas no leste da Ucrânia(3)


Os dois proto-países se encaminham para um cenário de terra arrasada caso continuem com seus projetos separatistas. A Ucrânia ameaça uma ofensiva militar na região que compreende o território das duas repúblicas o que na prática significa recuperar os territórios com o uso da força militar. A Rússia sempre apoiou as forças separatistas e cogitou reconhecer oficialmente a independência da região. No entanto, para salvaguardar os cidadãos locais que se identificam muito mais como russos do que como ucranianos,  a província russa de Rostov seria uma espécie de "porto seguro" à população sob ameaça dos ataques ordenados desde Kiev, a qualquer momento, segundo informações do representante de Donetsk, Denis Pushilin, e do chefe de Lugansk, Leonid Pasechnik. Para evitar uma tragédia maior, se estabeleceu um acordo com as autoridades russas, visando destinar um espaço no território do país vizinho para as populações das cidades separatistas. "Mulheres, crianças e idosos são os primeiros a serem evacuados, de acordo com Pushilin… 'Os evacuados receberão tudo o que precisam', disse, acrescentando que "todas as condições foram criadas para uma transição rápida nas passagens de fronteira”.(4)

Em 2014, a península da Crimeia, até então sob domínio ucraniano, terminou por ser anexada à Rússia à revelia e sob protestos da Ucrânia. Politicamente dividida, a grande maioria de russos que habita a província sustentava uma aproximação do que considerava sua pátria-mãe em oposição à minoria de tártaros da Crimeia (cerca de 16% da população), que claramente se posicionou favorável a uma aproximação da Ucrânia com a União Europeia. Ao contrário dos russos, eles aderiram à “Euromaiden”, onda de manifestações e de agitação civil na Ucrânia, iniciada em 21 de novembro de 2013 com protestos multitudinários  exigindo maior integração com a Europa. "Isso não surpreende: essa minoria foi acusada de colaborar com a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial e por isso deportada para a Ásia Central por ordem do líder soviético Stalin. Cerca de metade dos tártaros morreu. Somente após o colapso da União Soviética foram autorizados a retornar à sua antiga pátria”.(5)

O famoso ucraniano, Nikita Chruschtschow, foi o responsável pela anexação da península a seu país de origem. A Ucrânia era anteriormente uma das quinze repúblicas da União Soviética e tornou-se um estado independente após sua dissolução. Até 2014 a Crimeia ainda era uma república autônoma no leste da Ucrânia, com 60% de sua população russa fortemente ligada a Moscou. Quando o então presidente ucraniano, Yanukovych, foi deposto após os protestos da população em 2014 formou-se um governo de transição que não evitou a emergência de vários problemas na região leste da Ucrânia e na península da Crimeia.

A luta pela independência da Crimeia passou por períodos que antecederam e sucederam a proclamação da independência da Ucrânia. "Ativistas pró-Rússia criaram iniciativas, associações e partidos para se separar da Ucrânia, realizaram manifestações e coletaram assinaturas… O parlamento da Crimeia não teve muita escolha: em 5 de maio de 1992, anunciou efetivamente a soberania da república e queria que ela fosse confirmada pelos cidadãos no referendo de 2 de agosto de 1992… O pânico eclodiu em Kiev. Os deputados da Crimeia foram ameaçados de processo por separatismo. Em 13 de maio de 1992, o Kiev Verkhovna Rada [Conselho Supremo da Ucrânia] declarou a decisão dos colegas da Crimeia inconstitucional e indicou que a separação nunca seria pacífica e significaria guerra. Em 21 de maio, os deputados de Simferopol [Capital da República Autônoma da Crimeia] se curvaram e cancelaram o referendo. A Rússia também se envolveu nos assuntos da Crimeia… em 21 de maio de 1992, o parlamento russo declarou inconstitucional o Ukas de 1954 de Khrushchev sobre a entrega da Crimeia à Ucrânia…"(6)

A Crimeia sofreu frequentes mudanças de status político ao longo de sua história e hoje tem grande parte da sua população formada por russos e descendentes, falantes da sua língua e por ucranianos e tártaros, também com suas respectivas línguas: ucraniano e tártaro da Crimeia.  A região é também diversa quanto à religião: ”A Crimeia é na verdade uma encruzilhada de religiões, [islamismo, judaísmo, catolicismo romano e cristianismo ortodoxo oriental], como resultado do número de nacionalidades que se cruzaram e coexistiram ao longo dos séculos".(7)

O novo milênio não trouxe conciliação interna na Ucrânia; os conflitos na península e a leste do país continuaram, o que viabilizou a ingerência russa, culminando com a separação compulsória da Crimeia e sua anexação à Rússia. A separação do que era antes território ucraniano, bem como sua anexação à Rússia, foram resultantes de um referendo popular realizado coercitivamente sob o mando russo. Os resultados do referendo que advieram desse ato coercitivo não foi reconhecido por Kiev e muito criticado pelas nações ocidentais. "Em um referendo em 16 de março de 2014, o povo da Crimeia votou a favor da adesão à Rússia. O presidente da Rússia, Putin, detinha as rédeas deste procedimento aparentemente democrático”.(8) A incorporação da Crimeia à Rússia foi considerada ilegal; "a Assembleia Geral da ONU também declarou o referendo inválido. A Ucrânia vê a Crimeia como parte de seu território, mas a Rússia está no controle desde então”.(9) Conflitos na Ucrânia não são assuntos domésticos. O país tem localização geográfica estratégica, uma passagem entre a Rússia e Europa (União Europeia), "inclusive como país de trânsito para o abastecimento de gás”.(10)


Apoiadores da "República Popular" de Donetsk em um comício em março de 2016. Em breve haverá eleições na região disputada? 

(© picture-alliance/dpa)



A anexação, efetivada em poucos dias, contrasta com o que se passa atualmente na região de Donbass. Na Crimeia, a cautelosa, quase silenciosa invasão da península culminou com a realização, sob armas e controle de Moscou, de um plebiscito com resultados pró-Rússia . Já em Donbass, no leste da Ucrânia, a guerra caminha para quase uma década e se acirra com a proximidade das tropas russas, com a infiltração do serviço de inteligência militar russo GRU e a iminência de uma invasão militar. "As negociações até agora não foram bem sucedidas. A Rússia está exigindo que a OTAN se comprometa a não aceitar mais estados orientais. A OTAN exige que a Rússia retire suas tropas da fronteira”.(11) Não deve causar espanto se o esperto Puttin aproveitar-se do crescimento deliberado da violência na região em litígio como justificativa conveniente de uma escalada bélica e eventual invasão. Enquanto isso a população sofre isolada em um cotidiano de miséria e ausência de perspectivas. Movimentar-se para fora das regiões ocupadas é uma arriscada  aventura, ou como descreve Denis Trubetskoy, a vida cotidiana nas Repúblicas Populares permanecerá, por enquanto, uma pista de obstáculos."A crise do Corona tornou ainda mais difícil a já complicada viagem para partes da Ucrânia controladas por Kiev. Existem apenas sete postos de controle na linha de confronto onde você pode entrar no território do governo. No entanto, eles geralmente estão abertos apenas durante o dia. A viagem de volta é ainda mais difícil: enquanto a Ucrânia mantém todos os postos de controle abertos, as Repúblicas Populares só permitem que os viajantes passem em um ponto na região de Luhansk. Atualmente, os moradores da República Popular de Luhansk só podem cruzar a fronteira improvisada uma vez por mês. Viajar para o resto da Ucrânia é muito complicado para muitos moradores das Repúblicas Populares…”(12) Continuarão escassas as informações confiáveis sobre a real situação da população nas duas regiões independentistas no leste ucraniano que se encontram no centro da crise política entre a Rússia e o Ocidente. Gás, Otan, domínio territorial na região e outros condicionantes criados pelos senhores da guerra importam mais do que a vida dos milhões de cidadãos russos e ucranianos sitiados e sem direitos.


Um dos três? Um cidadão da autoproclamada República Popular de Donetsk mostra seu passaporte.

(Direitos de imagem: dpa)


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(1)  Stalin-era city names to be used in occupied Donetsk, Luhank as part of "great victory" cult. https://euromaidanpress.com/2020/04/29/stalin-era-city-names-to-be-used-in-occupied-donetsk-luhansk-as-part-of-great-victory-cult/
(2) Araujo, C. Ucrânia aumenta tensão com Rússia para buscar apoio militar dos EUA e da Otan, diz pesquisadorhttps://www.brasildefato.com.br/2022/01/23/ucrania-aumenta-tensao-com-russia-para-buscar-apoio-militar-dos-eua-e-da-otan-diz-pesquisador
(3) https://www.tagesschau.de/ausland/europa/ukraine-russland-donezk-luhansk-101.html
(5) Naminova, L. Seit Jahrhunderten umstritten. https://taz.de/Historischer-Konflikt-um-die-Krim/!5047443/
(6)  Timtschenko, V. Territoriale Integrität oder Selbstbestimmung des Volkes? Disponível ej> <https://www.mdr.de/heute-im-osten/krim188.html>. Acesso em: fev. 2022.

(7) Smith, L. Hauptreligionen in Krim. https://outdoorukraine.com/de/a/72/ 

(8) Wie die Krim vor 8 Jahren russisch wurde. https://www.mdr.de/nachrichten/welt/osteuropa/politik/krimkrise-chronologie-ukraine-100.html

(9) Naminova, L. Seit Jahrhunderten umstritten. https://taz.de/Historischer-Konflikt-um-die-Krim/!5047443/

(10) Stadler, J. Worum geht es eigentlich im Ukraine-Konflikt?https://www.augsburger-allgemeine.de/politik/ukraine-konflikt-worum-geht-es-eigentlich-im-ukraine-konflikt-id61536226.html

(11) idem.

(12) Trubetskoy, D. Donbass: Drei Pässe und ein mieses Lebenhttps://www.mdr.de/nachrichten/welt/osteuropa/land-leute/ukraine-donbass-alltag-100.html


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

A DEMOCRACIA AGONIZA EM HONG KONG




                                            
 Um banner com Joshua Wong, cujo partido pró-democracia se desfez na terça-feira 
  [28.01.2020] 

              (Chan Long Hei/Bloomberg News)






3,5 milhões de presos… “não é o fim da luta. À nossa frente está outro campo de batalha desafiador. Agora estamos nos juntando à batalha na prisão com muitos manifestantes corajosos, menos visíveis, mas essenciais na luta pela democracia e liberdade para HK. 

Joshua Wong(1)




No período pós-1997 acirraram-se os ânimos da população de Hong Kong e dos ditadores na China em função da luta da sociedade civil na ex-colônia britânica por mais democracia. Tendo do lado oposto o governo da Região Administrativa Especial (RAE) de Hong Kong e grandes empresários da região em um movimento pró-Pequim, os jovens e aguerridos estudantes se veem frente a um grande complô catalisado pela máquina de opressão chinesa. “…Desde a reunificação já se contabilizam diversos conflitos locais entre a sociedade civil e o governo da RAE de Hong Kong. Em todos os casos, seja em 2003, com as mobilizações contrárias à Lei de Segurança Nacional; em 2014, com o Occupy Central e o Umbrella Movement;(2) ou em 2019, com as revoltas contra a Lei de Extradição, a questão da democratização da região esteve em pauta e a rivalidade entre ambos os campos foi determinante para a condução do impasse.”(3) Em 2003, considerado por muitos o ano do segundo grande marco para o movimento pró-democracia de Hong Kong, diversos outros problemas que afligiam a região, além da questão da democracia em si, "impulsionavam a insatisfação popular e a luta por mudanças. Neste aspecto, as manifestações seguiram em um movimento amplo, englobando diversos indivíduos e grupos sociais com perspectivas e objetivos difusos, indo '[...] desde a legislação do salário mínimo até os direitos dos homossexuais'”.(4)

    Uma história em que a população permaneça alheia e distante dos centros de decisão em Hong Kong remonta ao período colonial. Não havia, por parte dos colonizadores britânicos, qualquer interesse de promover canais de participação popular para as tomadas de decisão sobre temas vitais de governabilidade, e isso foi aprofundado com a retomada do controle da região por Pequim. Nos treze anos do período de transição da soberania sobre Hong Kong se queria, principalmente, ajustar uma agenda de mudanças na estrutura de liderança política com a elaboração de uma espécie de miniconstituição local (Basic Law) promovendo o que se denominava “Um país, dois sistemas”. "Contudo, o período transicional foi marcado por diversas turbulências em Hong Kong, assim como pelo surgimento e crescimento do movimento pró-democracia, que implicou diretamente na mudança do cenário político da ilha. Desta forma, as décadas de 1980 e 1990 foram responsáveis por profundas mudanças políticas e sociais em Hong Kong, mudanças estas que determinariam o seu rumo futuro enquanto uma RAE.”(5)


Em entrevista à DW, o exilado de Hong Kong Nathan Law discutiu as prisões de seus colegas ativistas pró-democracia. Ele disse que enquanto as prisões sinalizam o fim de "um país, dois sistemas", a luta pela liberdade de expressão continuará. (DW, 23.11.2020)


Os ativistas mascarados pré-pandemia nas ruas de Hong Kong ecoando palavras de ordem e e confrontando,  em prol da democracia, as tropas policiais armadas foram substituídos pelos milhões de presos vítimas da draconiana Lei de Segurança Nacional, criada para suprimir o Estado de Direito no território. A imprensa e os políticos que ainda ousavam desafiar as investidas e os ataques impiedosos a mando da máquina totalitária chinesa sobre Hong Kong se perdiam em meio à excrescência do poderio desigual do continente para massacrar qualquer um que gritasse por liberdade ou invocasse o respeito às leis locais. A máquina liderada pelo presidente Xi Jinping com a ambivalência e o cinismo político impermeável à crítica ou aos observadores externos, agiu com a truculência característica do regime como o comprovam as ações em outras regiões, nomeadamente o Tibete, região autônoma de Xinjiang, no noroeste da China dos uigures e onde quer que seja questionado seu desejo de poder absoluto. Com igual poder deveriam ser calados e retirados das ruas os estudantes e seu protesto, bem como poderiam escrever as leis à sua maneira mesmo que para isso precisassem manobrar os governantes locais, substitui-los e aniquilar a oposição.


                                         


                    Hong Kong inicia 2020 com novos protestos (BBC-News, 1.01.2020)




Acusados de "crimes" absurdos, manifestantes foram presos aos milhares com a aplicação da famigerada Lei de Segurança Nacional, imposta em 2020. A mão de ferro de Pequim recai sobre Hong Kong e esmaga qualquer expressão de discordância do poder central a despeito da ilegalidade que isso possa significar. A nenhum político ou administrador público é permitido divergir e toda a escolha de nomes depende da garantia de fidelidade inquestionável e cega lealdade ao Governo Popular Central. Some-se a esse controle político um completo controle da mídia independente, reprimida ad extremum com prisões e o fechamento de suas sedes e consequente retirada do ar de suas transmissões. O temor de retaliações, inclusive com punições físicas e encarceramento, intimida quem ainda queira trazer alguma informação não censurada sobre os desmandos dos ditadores chineses e seus representantes em Hong Kong. "Eles estavam entre as últimas vozes independentes restantes na cidade. O bloqueio ocorreu após o fechamento em junho do tablóide independente Apple Daily, de propriedade do magnata do vestuário Jimmy Lai, que agora está na prisão”.(6) 

    A chefe do Executivo da região, Carrie Lam, passa de líder da Região Administrativa Especial de Hong Kong semi-autônoma e representante do povo de Hong Kong a simples implementadora de ordens do Conselho de Estado. Pode-se contar com sua obediência cega para transformar Hong Kong em apenas mais um rincão na China sem democracia e sob o mando de carrascos cumprindo ordens vindas do continente. Em curso uma transformação legislativa para equiparar Hong Kong aos demais estados e regiões continentais chineses controlados e manipulados pelo grande chefe. Uma agenda legislativa manipulada pode conter propostas para restringir a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão com a previsível "desculpa" de salvaguarda da segurança da nação. Nas propostas legislativas, provavelmente a inclusão de estratégias de  programas educacionais para "uma compreensão correta da história e da cultura” chinesas. Isso pode significar mais um programa de modificação cultural compulsiva e lavagem cerebral a exemplo do que se conhece de outras regiões da China. Espera-se que a população de Hong Kong consiga dificultar ou até mesmo impedir esses planos ditatoriais e surpreender o mundo com uma vitória sobre seus algozes a despeito de um sistema de vigilância e perseguição  que se institucionaliza a partir de Pequim visando a destruição de qualquer vestígio democrático já existente no "tigre asiático". 

    Joshua Wong, símbolo da resistência jovem em Hong Kong, foi detido por participar de atos pró-democracia. Joshua, como muitos outros de sua geração, faz a diferença na luta por liberdade e justiça em sua cidade natal. Sem perder o otimismo continua afirmando que mesmo não vencendo essa batalha, a guerra será vencida. Com semelhante otimismo é que queremos nos juntar a Joshua Wong e a todos os que lutam pela democracia em Hong Kong, expressando nossa solidariedade. Em Pequim devem ecoar as vozes de protesto e de apoio a essa luta por democracia, por autonomia (no modelo de "um país e dois sistemas" já consolidado) e pela recuperação da liberdade. 

 



        Um manifestante agita uma bandeira preta de Hong Kong em uma rua do lado de fora do Complexo        do Conselho Legislativo em 1º de julho de 2019, em Hong Kong. 

      (Anthony Kwan/Getty Images)


                                                                       战斗直到胜利


                Os EUA não são amigos dos manifestantes de Hong Kong: vão abandoná-los, 

                como os curdos, assim que for conveniente.

                              Tom Grimmer


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(1) Joshua Wong é um jovem ativista pró democracia que se destacou quando ainda era estudante durante os protestos de rua de 2014 exigindo  sufrágio universal em Hong Kong.

(2) Movimento pró-democracia de 2014. Os protestos que foram denominados movimento Umbrella também ficaram conhecidos como Occupy Central with Love and Peace. Tornou-se conhecido como o movimento Umbrella depois que ativistas usaram guarda-chuvas para se proteger de gás lacrimogêneo e spray de pimenta.

(3) FONSECA, L. P. O Papel do movimento pró-democracia honconguês na relação China-Hong Kong. TCC. UFPB/CCSA. João Pessoa, 15 de julho de 2021. Disponível em: <https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/20716/1/LPF12082021.pdf>. Acesso em fev. 2022.

(4) idem.

(5) idem.

(6) Goldberg, N. Coluna: A democracia está morrendo em Hong Kong. Mas por que o resto de nós deveria se importar? <https://www.latimes.com/opinion/story/2022-01-10/hong-kong-democracy-china>. 



terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Bayingyis: os últimos traços lusitanos na Birmânia


Descrição ilustrada em igreja local com imagem de uma caravela e representação católica.


Navegadores, mercadores, exploradores e soldados do período da expansão marítima viabilizaram os primeiros contactos entre Europa e Oriente. Há um rincão oriental, a norte da Birmânia, onde seus habitantes miscigenados foram esquecidos pela outrora pátria lusa a que ainda hoje se referem como sua. Pelo que se conhece, Duarte Barbosa teria sido o primeiro a relatar sobre o pioneirismo dos portugueses naquela então desconhecida região. O cronista teria saído “…em 1501 ruma à Índia com uma frota de várias dezenas de navios, só regressando a Portugal quinze anos depois (…) Barbosa é, provavelmente, o primeiro europeu a mencionar a existência da Birmânia, na altura, o nome dado ao principado de Tangu, que, juntamente com Ava, Pegu e Arracão, era um dos mais importantes reinos da região que hoje constitui o Estado de Myanmar”.(1) O interesse em especiarias e outros bens comerciais como o arroz e as embarcações, além de vários produtos hortícolas, prata e o afamado lacre trouxe os portugueses para a distante e antiga Birmânia. 

    País que se localiza no sul da Ásia e faz fronteira com a Índia, Bangladesh, Tailândia, Laos, China e o Oceano Índico, já fez parte da Índia, quando em 1824 a Inglaterra anexou o que correspondia ao território birmanês à sua antiga colônia. Só obteve sua independência em 1948 depois de mais de cem anos do domínio inglês; exatamente um ano após a independência da Índia. “'A exploração colonial fez com que diferentes etnias fossem obrigadas a conviver. Algumas etnias rivais entre si'[...] O senso  de identidade no país é complexo. O próprio nome 'Mianmar' é questionado. Oficialmente, desde a constituição feita durante o regime militar, em 1989, o país [se] chama República da União de Myanmar. Entretanto, apoiadores de movimentos pró-democracia não reconhecem a autoridade militar e preferem continuar com o nome Birmânia (ou Burma), que era o termo usado durante o período colonial".(2) Hoje a oficial República da União de Myanmar, ainda exibe marcas vivas da presença pioneira dos portugueses na Ásia.(3) Não se esvaíram todos os traços dessa presença lusitana inusitada e desconhecida, remanescente daqueles portugueses, que em terras remotas como a Birmânia aportavam como estranhos viajantes e invasores. Dos muitos portugueses em diversos pontos e países asiáticos, ficaram os Bayingyi na Birmânia. Essa denominação é originária do árabe “fheringi”, inicialmente uma referência a franceses que passou a servir a qualquer pessoa oriunda da Europa, mas principalmente aos portugueses, com quem os birmaneses mantinham mais contato. Tempos depois, o termo significaria “católico" mas finalmente veio a ser uma referência específica aos descendentes de portugueses. Não por acaso é a religião católica uma das principais características que distinguem os Bayingyi do restante do povo birmanês e de outras etnias locais. "É uma característica de identidade acrescida às suas óbvias feições ocidentais. Segundo consta, os Bayingyi são um povo orgulhoso da sua ascendência lusitana[…]" Atualmente ainda se encontram essas comunidades que mantêm vivas a alma e o sangue portugueses mesmo em condições hostis e sem políticas locais favoráveis a sua preservação. "Para além das características físicas, o criolo de origem portuguesa e algumas tradições, mantêm viva a ligação aos seus antepassados. Em alguns locais, inclusive, é comum cantarem em português e a religião católica é predominante”.(4)

Esses descendentes de portugueses nos antigos reinos da Birmânia formam, portanto, uma comunidade à parte, os "Bayingyi", que se localiza no norte da atual Mianmar, cujos membros ainda hoje se sentem mais portugueses do que birmaneses. "Atualmente os traços físicos já não estão tão presentes, pela união do povo Bayingyi com a população fora da comunidade. Um dos motivos prende-se com o facto da população mais nova aproveitar as condições do Governo no que respeita à educação e partirem para outras  localidades maiores. Contudo, a cultura e a religião de tons europeus mantêm-se como fortes pilares da comunidade”.(5) Nesse país de maioria budista e muito fechado a movimentos de emancipação e com pouca aceitação de outras culturas e religiões é algo impressionante que ainda haja um povo que apresenta traços ocidentais formando sua comunidade católica mais antiga. O grupo chega a cerca de meio milhão de integrantes. Um povo que, no século XVII sobreviveu a várias disputas territoriais e guerras nas cidades birmanesas e que também foi, em função dessas guerras e disputas, escravizado e transferido para outras regiões, disperso pelos vilarejos bainguis do vale do rio Mu, região essa a que é associado até os dias atuais. 

Joaquim Magalhães de Castro, escritor e jornalista de viagens,  dedica-se ao estudo do povo Bayingyi e sua história, tendo nesse campo um largo percurso; com notável produção na pesquisa e na escrita acerca desses descendentes de portugueses em Mianmar.  Nas palavras do próprio autor: "No decorrer do meu trabalho de investigação referente ao património português disseminado pelo mundo, em curso há já algumas décadas, Myanmar mostrou ser dos terrenos mais férteis. Posso dizer até que os contornos dessa insistente labuta se começaram a definir aí mesmo, burilado pelo convívio com as comunidades luso-descendentes do vale do Mu, os ditos bayingyis, a norte de Mandalay, a respeito dos quais ando a falar e a escrever há pelo menos 25 anos".(6) Entre as obras de Joaquim Magalhães de Castro destacam-se: “Os Bayingyis do Vale do Mu – Luso-descendentes da Birmânia (2001)"; “No Rasto de Fernão Mendes Pinto (2013) e “Os Filhos Esquecidos do Império (2014); além do documentário Bayingyi, a outra face da Birmânia (2001)" e as crônicas "Por terras de Arracão (2020)".

Fortaleza, 15 de fevereiro de 2022
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(1) Castro, J. M de. Os filhos esquecidos do império português. Disponível em: <http://sibila.com.br/mapa-da-lingua/os-filhos-esquecidos-do-imperio-portugues/11553 >. Acesso em: fev. 2022.
(2) Diaz, L. Mianmar: entenda o golpe de Estado e a história do país. Disponível em: <https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/entenda-o-que-esta-acontecendo-no-myanmar/>. Acesso em: 2022.
(3) Bayingyis: a Marca dos Portugueses na Antiga Birmânia. Disponível em: <https://www.natgeo.pt/historia/2020/01/bayingyis-marca-dos-portugueses-na-antiga-birmania>. Acesso em: fev. 2022.

(4) idem
(5) idem
(6) Por terras de Arracão. O Clarim. Semanário católico de Macao. Disponível em: <https://www.oclarim.com.mo/todas/por-terras-de-arracao-1/>. Acesso em: fev. 2022.


sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

No Chipre, a última capital dividida

 

                                

                        A divisão de Nicósia — Foto:BBC




Eles compartilham uma vida em uma ilha dividida da qual nenhum dos dois povos pode — nem quer — fugir. Uma vida, no entanto, em inimizade.(1)

 


Permanecer em Bonn ou retornar para Berlim? A pergunta foi respondida no dia 20 de junho de 1991, após oito meses da queda do muro de Berlim e da reunificação da Alemanha. A decisão histórica do Parlamento e do governo alemão selava o retorno de sua capital à cidade reunificada. 

Na tratativa da geografia de lugares, para muitos, distantes e inexistentes, a saga de Nocósia, capital do Chipre, ilha Estado do mediterrâneo que amarga uma disputa interna sem data para terminar. Berlim e Nicósia figuraram no mundo do século XX como as duas últimas capitais divididas. Berlim, já havia sido a capital do Reino da Prússia, do Império Alemão, da República de Weimar e do Terceiro Reich. Nicósia, ainda unificada recebia em 1. de março de 1959, de braços abertos, o futuro primeiro presidente do país ilhéu, o arcebispo Makarios prometendo a todos os cipriotas liberdade e libertação das correntes do colonialismo. Até 1878, quando os britânicos assumiram o território, gregos e árabes já faziam parte da população da ilha, que também passou pela mão de romanos, venezianos e otomanos, além de servir de base para o movimento das Cruzadas.



A capital está dividida desde 1963 / Crédito: Wikimedia Commons. (À direita placa indicativa da divisão da cidade: Lê-se em inglês, francês e alemão: “A última capital dividida.” Acima, em grego: “Nicósia.”


    No longo período da Guerra Fria, tivemos o levante popular da RDA em 1953, a construção e a queda do Muro de Berlim respectivamente em 1961 e 1989 e testemunhou-se a reunificação alemã em 1990. Enquanto na Alemanha e em Berlim era construído, no início dos anos 1960, o muro para sua divisão, no Chipre a luta travada por sua independência do jugo dos colonizadores britânicos vinha de uma revolta da EOKA,(2) configurando o ressurgimento de um Estado soberano que passaria, em 1961, a fazer parte da ONU.  

Makarios, considerado a personalidade da história contemporânea do Chipre, monge e posteriormente bispo e primaz da Igreja Ortodoxa da ilha foi o líder do movimento político que queria a união com a Grécia e primeiro presidente da República de Chipre. Trabalhou pela integração da comunidade grega e da comunidade turca e durante seu mandato presidencial o Chipre foi admitido na ONU. "Makarios foi eleito, em 13 de dezembro de 1959, primeiro presidente da nova república, passando a tomar, rapidamente, uma posição moderada e centrista na vida política do Chipre, mantendo uma política de não-alinhamento, "cultivando um bom relacionamento com a Turquia e a Grécia, tornando-se uma das mais representativas figuras do Movimento dos Não-Alinhados, o que lhe valeu o epíteto pelos norte-americanos de 'Castro do Mediterrâneo' ou 'Arcebispo Vermelho', mas ganhando, no plano interno, a inimizade dos cipriotas turcos, na sequência da proposta de treze emendas à Constituição que, eliminando a obrigatoriedade da representatividade étnica, pretendia dotar o Estado de maiores recursos e forçar a cooperação interétnica, o que conduziu os cipriotas turcos a confinarem-se em zonas habitacionais não mistas, numa tentativa de forçar a Taksim, a divisão."(3)

As tentativas de construção de um Estado unitário tiveram um fim em Dezembro de 1963, quando a violência entre as duas comunidades escalou. "Ao mesmo tempo, Makarios, granjeou o ódio dos partidários radicais da enosis [união de Chipre com a Grécia] que, em antagonismo às suas posições politicas e liderados por George Grivas, fundaram, em 1971, uma organização paramilitar de extrema-direita, EOKA-B, cujas ações redundaram também nas várias tentativas de assassinato de Makarios e outras acções violentas. Apoiados pela 'junta dos coronéis' no poder na Grécia (1967-1974), levaram a cabo um golpe de Estado (15.07.1974) denunciado por Makarios no Conselho de Segurança da ONU (19.07.1974) como uma verdadeira invasão de Chipre. A Turquia encontrou no golpe a justificação para, em nome do Tratado de Garantia, invadir o Chipre (20.07.1974) o que conduziu rapidamente à queda da ditadura militar grega, ao fim do apoio aos golpistas cipriotas e à restauração da legalidade constitucional, embora num contexto de divisão e ocupação turca da parte norte da ilha que se mantém até à actualidade."(4)

Após seu regresso ao país em dezembro de 1974, Makarios retomou suas funções de presidente mas sem chegar a atingir seus objetivos e refém de um passado pró-enosis, ao se unir àqueles que queriam “…restaurar a integridade territorial de Chipre."(5) Em consequência de um golpe militar grego na ilha, a Turquia invadiu militarmente o Chipre, ocupando seu lado norte, o que dividiu a ilha e resultou na formação das duas repúblicas, embora sem reconhecimento pela ONU do lado norte como país independente. "Mais de 200 mil pessoas tiveram de emigrar para um ou outro lado: os de ascendência grega e religião ortodoxa para o sul, e os de ascendência turca e religião muçulmana para o norte.”(6)





            A muralha da Nicósia antiga


Desse modo, Nicósia passaria em 1974 a ser a segunda capital dividida do planeta. Enquanto em 1989 Berlim se reunificava e em 1991, em Bonn se aprovava o retorno do governo e do Parlamento ao antigo centro de poder da Alemanha, em 1974 se via em Nicósia, sua divisão sendo materializada por uma Linha Verde que demarcaria a fronteira entre gregos e turcos. Enquanto a Alemanha superou a separação desde a queda do Muro de Berlim, Nicósia continua vivendo a realidade de uma cidade dividida à revelia de seus povos, em função da ingerência colonial e dos vizinhos regionais turcos e gregos. "A reivindicação dos cipriotas gregos de devolução das propriedades perdidas [após a invasão turca de 1974] continuará não satisfeita. O statu quo significa que não haverá fim para a presença das tropas turcas na ilha nem para o influxo de colonos turcos. O risco de uma fractura permanente entre as duas zonas e as duas comunidades, com todas as suas ramificações políticas e diplomáticas, é exacerbado pela inacção."(7)

A disputa entre gregos, turcos e britânicos levaram o país ilhéu e sua capital a viver em discórdia até os dias atuais sem conseguir, apesar de diversas tentativas, reconquistar sua unidade. O plano de reintegração que remonta a  2004 e ficou conhecido como plano Annan por ter sido uma iniciativa da ONU através do seu então presidente Kofi Annan; sem êxito, em consequência do veto greco-cipriota. O referendo de maioria Sim no Norte não pôde ser ratificado porque no Sul da ilha o Não obteve maioria. Essa vitória do Não a sul inviabilizou a entrada de um Chipre unificado na União Europeia em 1 de Maio de 2004.  Como 25º membro da nova Europa alargada ficou mesmo a metade sul da ilha, a República de Chipre, internacionalmente reconhecida. A autoproclamada República Turca do Norte de Chipre (RTNC, reconhecida somente por Ancara) é, como a denominam os demais cipriotas e a representam os mapas da ilha, nada mais do que um território ocupado pela Turquia. 

No quadro atual, a ilha dividida tem cerca de um milhão de greco-cipriotas vivendo no que se conhece por República de Chipre e 300 mil turco-cipriotas ocupando o que somente a Turquia reconhece como República Turca de Chipre do Norte (RTNC), o que a torna mais um membro do “clube” de países que não existem. Considerando-se todo o seu território, o Chipre, com 9.251 km2 é a terceira maior ilha do mediterrâneo, menor apenas que as também mediterrâneas, Sicília e Sardenha (Itália). Se compararmos sua dimensão territorial com algum estado brasileiro, poderíamos pensar que sua área perfaz menos da metade do menor estado, Sergipe (21.925 km2) e seria maior apenas do que o Distrito Federal (5.760km2). No seu território 3% correspondem a uma área sob vigilância e patrulhamento da ONU que a ninguém pertence: a “Linha Verde" de demarcação atravessando a histórica cidade velha cercada por uma muralha veneziana. Trata-se de uma linha que define a fronteira artificial e indesejada por suas populações com cerca de 200 km de extensão, separando o sul cipriota grego do norte cipriota turco. Bases militares britânicas, Akrotíri e Dhekélia ocupam 2% da ilha e completam o cenário de divisão e ocupação. Alheias ao país, essas duas ocupações lembram o também britânico Gibraltar, na Espanha, só que exclusivo para militares. Para que o Reino Unido, em 1960,  aceitasse a tão duramente conquistada soberania cipriota, foi necessário ceder à manutenção dessa ocupação colonial esdrúxula. Os 36% restantes do território da ilha correspondem ao que foi ocupado pela Turquia. Antes zonas proibidas à circulação interregional, somente a partir de 2003 fluxos de pessoas atravessavam de um lado a outro da ilha através dos postos de controle na fronteira. As negociações para unificação esbarraram em várias questões geo-políticas e territoriais. No âmbito da comunidade das nações e em suas instâncias de representação, para a ONU e a União Europeia, só existe um Chipre como Estado independente que ao norte foi ocupado pela Turquia. "O Chipre do Norte não é membro de nenhuma organização internacional, nem tem ligações aéreas diretas com outros países além da Turquia, e não tem permissão para se envolver no comércio internacional. Dezenas de milhares de turcos foram reassentados do continente para o norte de Chipre, é grande a dependência de Ankara. O impedimento à participação da República de Chipre nas associações políticas e econômicas internacionais não obstou seu ingresso na União Europeia em 2004, o que, em certo grau, transferiu ao bloco europeu um conflito de âmbito local e tratado pelos três países historicamente articulados seja em razão dos traços  coloniais ou dos liames culturais.

O presidente Ersin Tatar, do conservador Partido da Unidade Nacional (UBP), eleito no Chipre do Norte em outubro de 2020, também é apoiado por Ancara e é um  defensor da solução política de formação de dois estados e governos independentes.(8) É preciso assinalar no tabuleiro da geo-politica "o fator" Recep Tayyip Erdogan como sério entrave à negociação e consequente implementação de um projeto que venha a unir os cipriotas em um Estado único, soberano e com autonomia regional relativa. O presidente turco, afeito a decisões autoritárias e incompatíveis com o modelo democrático europeu,  já afirmara sua influência sobre o então líder da parte turco-cipriota, Mustafa Akinci, o que trouxe desconfiança quanto ao seu papel no caso do estabelecimento de uma nova realidade geopolítica em um eventual período pós-união. A ideia de um Estado federativo cipriota com dois Estados autônomos pode ter efeitos imprevisíveis, tendo em vista o status de membro da União Europeia do Chipre grego, que poderia ser estendido a toda ilha e seus povos. Portanto é difícil uma previsão acerca da possibilidade de uma reunião da ilha; posto que a República do Chipre não reconhece o país do norte e vice-versa. O ex-líder turco-cipriota, por seu turno, afirma que a República do Chipre, em sua atual configuração, está morta e que somente um sistema político com uma federação turco/greco-cipriota viabilizaria uma união que ainda em outros moldes, já era cogitada na época do então líder, o ex-presidente arcebispo Makarios. É preciso assinalar que a ação do colonialismo britânico e seu poderio e domínio econômico, político e militar na ilha, contribuiu para sua divisão e conflitos étnicos, culturais e religiosos contemporâneos. Qualquer solução desenhada e que se projete como duradoura, é inseparável da libertação da ilha das amarras  do colonialismo, como preconizou o arcebispo Makarios. Tal pode ser o caminho rumo ao renascimento de um Chipre em forma de Estado-nação unificado, respeitando as diferentes minorias locais, com sua capital Nicósia cumprindo sua missão de multiculturalidade, o que significa respeitando e representando, necessariamente, todos o seus povos.



                    Chipre: a ilha berço de Afrodite



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(1) Sie teilen ein Leben auf einer geteilten Insel, von der keiner der beiden Volksstämme fliehen kann - und will. Ein Leben, trotzdem in Feindschaft". Nahtstelle Nikosia. Disponível em: <https://taz.de/Geteilte-Hauptstadt/!5189759/>. Acesso em: fev. 2022.

(2) EOKA é a sigla grega para Ethniki Organosis Kyprion Agoniston – Organização Nacional de Lutadores Cipriotas. A organização foi fundada em 1955  para derrubar o colonialismo do Reino Unido sobre a ilha do Chipre e ainda buscar a enosis ou união com a Grécia.

(3) AMORIM, F. Arcebispo Makarios: entre o desejável e o possível. Disponível em: <https://www.janusonline.pt/arquivo/2007/2007_4_5_8.html>. Acesso em: fev. 2022.

(4) idem.

(5) AMORIM, F. Arcebispo Makarios: entre o desejável e o possível. Disponível em: <https://www.janusonline.pt/arquivo/2007/2007_4_5_8.html>. Acesso em: fev. 2022.

(6) AGUIAR, F. Uma visita ao último muro europeu: Chipre. Disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/revistas/2017/04/uma-visita-ao-ultimo-muro-europeu-chipre/>. Acesso em: fev. 2022.

(7) COX, P. O statu quo de Chipre é mau para as duas comunidades. https://www.publico.pt/2008/02/16/jornal/o-statu-quo-de-chipre-e-mau-para-as-duas-comunidades-249456

(8) LORENA, S. Cipriotas turcos escolhem entre visões opostas de futuro e a Turquia tem muito em jogo. Disponível em: <https://www.publico.pt/2020/10/12/mundo/noticia/cipriotas-turcos-escolhem-visoes-opostas-futuro-turquia-jogo-1934971>. Acesso em: fev. 2022.