POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

O Haiti também é aqui






A parte ocidental da ilha caribenha, La Española, obteve a independência dos seus colonizadores franceses e só então passou a ser chamada de Haiti. As políticas de exploração e sabotagem dos ex-colonizadores em conluio com os Estados Unidos impossibilitaram a construção da nova nação. A tentativa de implementação de um regime democrático nunca teve bons resultados. Sempre mergulhado em períodos de profunda instabilidade política, teve que trocar vários presidentes e passar por golpes de Estado, culminando com a deposição de seu principal nome na política que sucedeu a diferentes regimes brutais e ditaduras, o ex-padre católico Jean-Bertrand Aristide, presidente eleito democraticamente em 2001. Hoje o país se vê mergulhado em uma onda de violência e caos com policiais rebelados sendo vítimas de gangs, que assolam sua capital, Port-au-Prince. Com o aumento do número de agentes mortos, inclusive após ataques a esquadras policiais, a sociedade se vê refém e órfã. As Nações Unidas estimam que 60% de Port-au-Prince são controlados por diferentes gangs.  


                                                        Foto: Richard Pierrin / AFP

Talvez já estejamos nos acostumando às cenas intermitentes de profunda miséria seguidas por outras fugazes ondas de bondade e dedicação” de forças internacionais enviadas para aquela parte da ilha. Testemunha-se uma sequência de desmandos, incluindo o desrespeito a sua soberania, como em 2004, quando Jean-Bertrand Aristides foi deposto por um golpe militar. O terremoto que devastou o país e a desastrosa atuação da "tropa de paz" do exército brasileiro também liderada com atos de barbárie e terror pelo general Augusto Heleno aprofundaram os problemas vividos no país com sua já conhecida decadência social, política e econômica. Com a iminência de uma guerra civil após a queda de Aristides, foi criada a Minustah — Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti — pelo Conselho de Segurança da ONU em junho de 2004. Nomeada missão foi liderada pelo Exército brasileiro e tinha como objetivo principal  restabelecer a ordem social e levar ajuda humanitária no país. Quase 37 mil militares brasileiros comandados, inicialmente, pelo general Heleno integraram a missão, que terminou por ocasionar um grande crime humanitário em Port-au-Prince durante a invasão de um de seus maiores assentamentos de pobres, a Cité Soleil: “Em julho de 2005, segundo testemunhas, cerca de 300 soldados fortemente armados invadiram o bairro e teriam assassinado 63 pessoas além de deixar outros 30 feridos. A operação ´Punho de Ferro`, sob o comando do general Augusto Heleno, teria disparado 22 mil tiros, conforme investigação jornalística a partir do WikiLeaks”. Houve também muita violência dirigida contra estudantes e pobres que moravam nas favelas. Estupros de mulheres e homens e até mesmo uma responsabilização pelo agravamento da situação de epidemia de cólera resumem o quadro de desastre resultante da Minustah. Com esse histórico de mal feitos e mesmo tendo sido um caso de denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Heleno foi contemplado com o posto de ministro de Estado, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República no governo de Jair Bolsonaro. O general a serviço de Bolsonaro foi um dos suspeitos de, no final do seu mandato, integrar o bando que conspirava contra a democracia e apoiava um golpe de Estado após sua derrota eleitoral nas urnas. 

O ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) no governo de Jair Bolsonaro (PL), o general Augusto Heleno, participou de um grupo de WhatsApp no qual foram discutidas ações golpistas, segundo o coronel aviador reformado Francisco Dellamora, em entrevista ao UOL… O grupo denominado "Notícias Brasil" foi excluído em 8 de janeiro deste ano, quando bolsonaristas invadiram e depredaram os prédios dos Três Poderes, em Brasília. Também faziam parte o general da reserva Sérgio Etchegoyen, que comandou o GSI no governo Michel Temer (MDB), e outros 40 militares, entre oficiais da ativa e reserva. O grupo foi criado em 2016, durante o processo de impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff (PT).


  Manifestação organizada por moradores do Guarujá e parentes de mortos contra Operação Escudo —  Foto: Maria Isabel Oliveira/ Agência O Globo 


O Haiti é aqui

A ação desastrosa da força composta por soldados brasileiros no Haiti, uma “pacificação” de favelas de modo semelhante ao que acontece no Brasil e com militarização das forças policiais da ONU, pretensamente para  proteção da população, resultou em mais de 2 mil denúncias de abuso e exploração sexual, por parte dos soldados do general Heleno. 300 dessas denúncias também envolvem crianças (segundo a Associated Press). A Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti) foi comandada pelas tropas do Brasil por 13 anos e deixou, segundo informações, um cenário com vítimas de cólera, abusos sexuais, miséria e instabilidade política”. Vale a pena ressaltar que entre os altos postos de comando dessa tropa também fazia parte o hoje governador de São Paulo, o capitão do exército Tarcísio de Freitas. A ação policial que ocorre atualmente em São Paulo, não por acaso sob a batuta do seu atual governador reedita sua perversa participação na experiência do exército brasileiro na missão de paz no Haiti, que entre 2004 e 2017 viu como resultado dessa desastrosa atuação mais de 30 mil mortos no país. Um perfil que cabe muito bem no governo de Bolsonaro do qual fez parte e em sua continuidade que é cultivada, atualmente em nível estadual em São Paulo, por seu discípulo Tarcísio. Além de Tarcísio, mais sete dos militares integrantes da missão no Haiti receberam honrarias e fizeram parte do governo de Jair Bolsonaro. Como aconteceu no país caribenho, o governador Tarcísio não viu excesso na atuação da sua Polícia Militar nas favelas do Guarujá em São Paulo, que já resultou em mais de 16 mortos e muitos feridos. Após os graves ocorridos, a Defensoria Pública oficiou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) do estado um pedido para que a operação policial no Guarujá seja interrompida imediatamente. O órgão também solicita que os policiais militares envolvidos em mortes sejam afastados temporariamente das ruas mas, segundo o governador, a operação denominada “Operação Escudo” deve seguir até o dia 28 de agosto. A terceira operação mais letal no estado só fica atrás, em número de vítimas fatais, do 'Massacre do Carandiru’, que em 1992 deixou 77 mortos e dos “Crimes de maio”, que resultaram em 108 pessoas mortas em 2006.

Em São Paulo cumprir a legislação para evitar os excessos capitaneados pelas tropas de Tarcísio e sua equipe seria o começo da busca de uma solução momentânea à matança policial no estado. Já no Haiti, para frear o desastre atual, seria necessária a ajuda internacional imediata que esteja comprometida e seja respeitosa com os pleitos locais para o apoio às forças de segurança e não repitam os erros cometidos pelas forças de paz brasileira em meados dos anos 2000 ao escolherem líderes incompetentes e sanguinários.  Essa seria, no caso haitiano, a única saída em vista. Uma intervenção que poderia contribuir, efetivamente, a combater a dramática situação humanitária no país que acumula histórias de desmandos e manobras de forças externas mal sucedidas. O ministro de Planejamento e Cooperação Externa haitiano Ricard Pierre já havia declarado que está clara a inevitável deflagração de uma guerra civil caso essa ajuda não chegue a tempo. “A ONU segue expressando preocupação com a extensão da violência das gangues, o aumento dos assassinatos e sequestros e a violência sexual no Haiti. Diante da presença policial escassa, moradores começaram a cuidar da própria segurança. Em abril, por exemplo, um grupo de civis se apoderou de membros de gangues detidos, agrediu os mesmos até a morte e queimou seus corpos na rua”. Parece irônica mas é verdadeira, a comparação feita por Tarcísio em 2022 quando concorria ao governo de São Paulo. Um perfil “genocida” já estava claro na sua candidatura, o que levou o povo de São Paulo a cair nessa emboscada só pode ser explicado pela falsa ilusão de combate ao crime com o recurso do próprio crime, o que é uma falácia perigosa. 

O ex-ministro da Infraestrutura Tarcísio de Freitas (Republicanos) publicou nesta 4ª feira (1º.jun.2022) um vídeo relacionando a missão de paz no Haiti com o dia a dia da polícia de São Paulo. O político é a aposta do presidente Jair Bolsonaro (PL) na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes. No vídeo, Tarcísio, que participou da missão de paz no Haiti, afirmou que primeiro é preciso conquistar a paz, para depois mantê-la com ações sociais. “A experiência de enfrentamento no Haiti, de certa forma, nos ajuda a se colocar na situação do policial que está na rua todos os dias enfrentando a criminalidade.

Desta feita a tarefa de salvar um Haiti em vias de uma auto-destruição pode estar nas mãos da Organização das Nações Unidas. A crise humanitária em níveis até hoje não vistos no país pode ser estancada com o envio dessa força internacional coordenada pela ONU para evitar a completa falência do país afundado em mais uma terrível crise humanitária. Que esse Haiti não seja mais lá ou aqui.

 


  Porto Príncipe-Haiti. Moradias construídas em morro da capital do Haiti, Porto Príncipe (Joe Raedle/Getty Images)




Guarujá-SP. Foto: Lazaro Jr./Hojemais Aracatuda/AFP


Antonio C. R. Tupinambá

Professor — UFC

Julho de 2023.

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