POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

sábado, 3 de julho de 2021

O país onde os indígenas eram obrigados a enviar os filhos para o inferno.

 






Em 1898 já existiam 54 escolas no país dentro do modelo de “Escolas Residenciais”, o que no Brasil se assemelharia aos internatos. E era para esse tipo de escola que eram mandadas as crianças indígenas, num atentado sem limites contra suas crenças e seus costumes. Em 1946 foi registrado o número máximo de escolas: 74. E, segundo a lei, os pais que se recusassem a mandar os filhos eram punidos criminalmente. Não havia escapatória. Os indígenas eram obrigados a enviar os filhos para o inferno. (1)


Os corpos encontrados num terreno da Escola Residencial de Kamloops para Indígenas na província da Columbia Britânica trazem à tona a história colonial do país que se apresenta, atualmente, como modelo de democracia estável e exemplo para o mundo. O que custou às populações originárias do país, a construção do Canadá que se conhece hoje? O legado da colonização pode ser resumido no quadro divulgado pela imprensa e que choca o mundo: ossos de 215 crianças indígenas mortas encontrados no terreno da escola de Kamloops.  A escola foi aberta em 1890 pelo governo canadense e era dirigida pela Igreja Católica para “reeducar" crianças indígenas. Tratava-se, de fato, de um sistema oficial de sequestro de crianças para submete-las a uma educação forçada, não somente sequestrando seus corpos, mas roubando-lhes suas almas, histórias e culturas. Um processo que por um século e com requintes da mais cruel barbarie tirava as crianças de suas famílias, torturava, levando muitas delas a óbito e, aquelas que sobrevivessem, eram forçadas a abandonar completamente sua cultura original a mando de religiosos e colonizadores brancos europeus. Não se trata de algo perdido na história remota canadense. Muitas dessas escolas continuaram funcionando até 1990. A escola de Kamloops só foi fechada em 1970. Por todo o Canadá havia muitas outras, além da escola de Kamloops que desencadeou revoltas atuais na população local, havia outras, que eram também dirigidas por anglicanos, metodistas e presbiterianos.

A “educação" pela violência extrema era o método dos religiosos encarregados de cumprir, de bom grado, a missão de Estado de dizimar a cultura indígena em nome do poder branco central. Já foram documentadas cerca de 3.200 mortes de crianças nessas escolas, uma prática de genocídio pelas mãos de diferentes igrejas e do Estado.  Não bastasse isso, muitas dessas crianças eram submetidas a violências de toda a ordem, inclusive sexuais. 


Apesar da grande violação dos direitos humanos foi somente em 1996 que a última escola residencial foi fechada. Interessante destacar que esta última escola, "The Gordon Residencial School", em Saskatchewan ficou conhecida por ser uma das mais famosas em casos de abusos físicos e sexuais do Canadá. Willian Starr diretor desta escola entre 1968 e 1984 praticou crimes sexuais além de usar seu cargo para intimidação e punição para alunos que discordassem dele. Starr foi preso em 1992 confessando os crimes e cumpriu pena de apenas 4 anos e meio em prisão. (2)



A Comissão da Verdade e da Reconciliação, que trabalha no país para desvendar esses crimes, afirma que desde a invasão do Canadá "as igrejas realizavam uma sistemática ação de destruição da cultura, através da evangelização, mas a partir do ano de 1840, o estado oficialmente assume uma parceria ao criar as primeiras escolas para indígenas na cidade de Ontário".(3) Essa comissão, que trabalha para trazer à luz todos os crimes cometidos por igrejas e seus religiosos e que para isso contavam com forte apoio do Estado canadense, já credita as cerca de 3.200 mortes de crianças dentro dos seus muros, como decorrentes de maus tratos, doenças, desnutrição, abandono e suicídio: “O governo canadense manteve essa política de genocídio cultural porque queria se desvincular de suas obrigações legais e financeiras com os povos indígenas e assim poder controlar suas terras e seus recursos”, afirma a comissão. Talvez esse número seja bem maior, a Comissão presume que mais de 4.000 crianças indígenas morreram nesses internatos.

O que fazer para se reconciliar com esse tenebroso passado que ainda nos deixa perplexos nos dias atuais?  Será que...

 

[...]nunca aprendemos a fazer
o luto coletivo do que matou
e torturou muitos de nós, nunca
aprendemos a fazer a luta coletiva
contra nossa história de horror,
que permanece torturando e matando.(4)


    Ou será que o começo dessa pretensa reconciliação se deu com o pedido de perdão do Primeiro Ministro canadense?  Ele não conseguiria, mesmo que fosse essa sua intenção, ficar indiferente à onda de protestos em muitas cidades, gerada pela descoberta recente dos restos mortais de crianças na Columbia Britânica. O genocídio tem sido denunciado nas manifestações realizadas pelos movimentos sociais e por indígenas, que também, a exemplo do que ocorre em outras manifestações mundo a fora, derrubam estátuas de personagens da história ligados a atos de barbárie. No Canadá a estátua de Egerton Ryerson, localizada na Universidade Ryerson, um dos arquitetos responsáveis pela criação das escolas residenciais, foi ao chão pelas mãos dos ativistas. Mais outras duas estátuas, das rainhas Vitória e Elizabeth II, do Reino Unido, foram derrubadas na quinta-feira, dia 1º de julho.

Essas questões históricas e atuais de abusos aos povos originários das Américas atravessam as fronteiras dos países, fronteiras essas resultantes de desenhos artificiais do período colonial.  Desenhos que serviam ao colonizador europeu mas não às milhares de vidas que tinham na própria natureza suas fronteiras. Na América Latina a onda de luta dos e pelos povos indígenas que cresceu muito nos anos 1990 e visa à recuperação da memória, defesa da cultura e do direito à vida dos povos originários na região dentro de fronteiras autênticas e não políticas, está sendo frontalmente combatida. Essa ameaça vem principalmente do Brasil, cujo governo traça, abertamente, políticas genocidas e anti-indigenistas. A destruição de povos, nações e civilizações é um projeto do atual governo que o faz se aliando a invasores de terras protegidas para fins de exploração comercial. A empreitada para tomar territórios indígenas é agravada pela presença e ação de pastores neopentecostais em missão de dizimação das tradições e cultura desses povos. Como afirmam Silva e Rocha (2020) as comunidades indígenas, apesar de terem sido submetidas à catequização por jesuítas, conseguiram resistir e nos mais de 500 anos de práticas coloniais ainda é possível enxergar a multiculturalidade dessas relações, mas uma neocolonização dos povos indígenas por religiões neopentecostais ameaça esse legado. "Atualmente, as comunidades indígenas sofrem novas intervenções culturais, promovidas por religiões neopentecostais, que ocupam os territórios, apropriam-se dos espaços comunitários e impõem práticas religiosas incompatíveis com a convivência étnica e, por fim, provocam etnocídio[...]"(5)

O descobrimento do Novo Mundo trouxe o sofrimento para os povos que aqui estavam antes da chegada dos invasores. O genocídio persiste na era moderna, por exemplo, com a contínua perseguição aos povos indígenas da região amazônica. Mais de 80 tribos indígenas foram destruídas entre 1900 e 1957, e a população indígena em geral diminuiu mais de oitenta por cento. É hora de uma união entre os povos indígenas e não indígenas para frear o genocídio iniciado com as invasões europeias e que nunca realmente foi estancado. Em Brasília parlamentares tentam dar um golpe na Constituição com a PEC 215, uma estratégia para acabar com a preservação do meio ambiente e a proteção aos povos indígenas, aos quilombolas e aos ribeirinhos agroextrativistas que são protegidos pela carta magna. A PEC 215 aprovada significaria a paralisação do processo de demarcação de terras indígenas e quilombolas, assim como a paralisação da criação de unidades de conservação, ameaçando também o direito fundamental de todos os brasileiros a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e, por extensão, ameaça o direito à vida. A transferência  do Executivo para o Congresso do poder de demarcar terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação, ameaça o direito indígena a seu território ancestral, garantido pela Constituição. "A terra é parte essencial da vida dos índios e sem ela, estariam condenados à morte física (genocídio) e cultural (etnocídio)".(6) Para enfrentar essas ameaças de genocídio com a mudança constitucional os povos indígenas criaram o Parlamento Indígena, o ParlaÍndio que quer representar todas as nações indígenas em território nacional. Mais de um milhão de pessoas, dividas em 305 povos falantes de mais 180 línguas estariam representados. Esses são, portanto, os brasileiros que o recém-criado Parlamento Indígena, o ParlaÍndio, tem o potencial de representar: 


Sem vínculo formal com o estado brasileiro, a iniciativa se apresenta como uma nova via de articulação dos povos originários, mirando a superação dos crescentes ataques estimulados pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido), como o Marco Temporal, tese jurídica, que restringe a demarcação de terras indígenas, e o Projeto de Lei (PL) 490, que abre áreas protegidas à mineração, ao agronegócio e à construção de hidrelétricas.  Como primeira deliberação, o Parlaíndio decidiu pedir na Justiça a exoneração do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier, visto por lideranças como um executor das políticas anti-indígenas de Bolsonaro. Com apoio da embaixada da França no Brasil e da Fundação Darcy Ribeiro, a organização é resultado da união de forças de lideranças de alcance mundial. Ainda em 2016, a ideia partiu do Cacique Raoni Metuktire, atual presidente de honra do Parlamento Indígena, mas saiu do papel só no final de maio deste ano. Entre os fundadores, também está Davi Kopenawa Yanomami, xamã e porta-voz do povo Yanomami. (7)

 


O cacique Almir Suruí, do povo Paiter de Rondônia é o coordenador executivo do ParlaÍndio. A experiência de resistência do povo Paiter vem desde seu contato oficial e aproximação com os não índios. As mudanças sociais daí advindas não os fizeram menos guerreiros, o que assegurou sua luta pelo reconhecimento e integridade de seu território. Apesar da grande pressão que sofrem de invasores de terra, o povo Paiter continua mantendo muitas das suas tradições. Para continuar nessa luta pela sobrevivência juntamente com outras etnias, o cacique Almir Suruí aposta em um crescimento rápido do parlamento indígena, de forma a aumentar a representatividade nacional: "'O Parlaíndio tem a missão de unificar essas lutas, defender políticas públicas para todos os indígenas, a demarcação de territórios e a proteção territorial', enuncia”.(8)

Já passa da hora para que sejam convocados os povos indígenas do mundo todo: POVOS INDÍGENAS, UNI-VOS! Somente através dessa resistência organizada nacional e internacionalmente, com a participação de todos os povos solidários, indígenas e não indígenas, se poderá construir um caminho para alcançar a tão almejada justiça, mesmo que tardiamente, para os povos originários oprimidos e evitar que novos genocídios aconteçam, a exemplo do que ocorreu no Canadá e, ainda que noutro formato, do que já está em curso no Brasil.


Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, 3 de julho de 2021.

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1) Tavares, E. A tragédia indígena no Canadá. Disponível em: <https://iela.ufsc.br/povos-originarios/noticia/tragedia-indigena-no-canada>. Acesso em: 3 jul. 2021.

2) Freitas, R. Canadá: o horror se esconde no porão da escola. Disponível em: <https://esquerdaonline.com.br/2021/06/11/o-horror-se-esconde-no-porao-da-escola/>. Acesso em: 3 jul. 2021.

3) Tavares, E. A tragédia indígena no Canadá. Disponível em: <https://iela.ufsc.br/povos-originarios/noticia/tragedia-indigena-no-canada>. Acesso em: 3 jul. 2021.

4) Pucheu, A. Poema para a catástrofe do nosso tempo. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/>. Acesso em: 3 jul. 2021.

5) Silva, I. G. S.; Rocha M. M. da. Transmodernidade e socialização do poder: resistência cultural dos povos originários em face do neopentecostalismo no Brasil. Raído, Dourados, MS, v. 14, n. 34, jan./abr. 2020, p. 184-197, p. 185.

6) Os índios e o golpe na constituição. Disponível em: <https://www.frenteambientalista.com/os-indios-e-o-golpe-na-constituicao/>. Acesso em: 3 jul. 2021.

7) Pajolla, M. Lideranças criam Parlamento Indígena do Brasil e pedem saída do presidente da Funai. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/07/02/liderancas-criam-parlamento-indigena-do-brasil-e-pedem-saida-do-presidente-da-funai>. Acesso em: 3 jul. 2021.

8) idem.

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