POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

sábado, 1 de maio de 2021

Chade: insurgência, agitação e instabilidade

 

    Por quase quatro décadas o Chade viveu nas garras de dois sanguinários presidentes. Idriss Deby governou o país até o mês de abril de 2021 e seu antecessor, Hissène Habré de 1982 a 1990. Habré chegou ao poder depois de derrubar o então presidente do país Goukouni Oueddei com a tácita ajuda da França e dos Estados Unidos, que patrocinaram o golpe de Estado, fornecendo armas, recursos financeiros e treinamento militar para suas tropas. "Habré cometeu genocídios contra tribos e etnias que lhe faziam oposição. Foi acusado de estupro, escravidão sexual e desaparecimentos, além da morte de 40 mil pessoas. Após ser deposto, foi para o Senegal, onde foi julgado e condenado à prisão perpétua". (1)

    Habré e Déby estiveram, nas últimas quatro décadas, à frente do atual Chade, que corresponde ao antigo Territoire du Tchad então incorporado como uma colônia francesa sob a federação da África Equatorial Francesa em 1910. Durante seus longos mandatos colecionaram mortos em seus currículos presidenciais além de transformar o Chade em um dos países mais corruptos e pobres do continente africano. Com sua política instável sempre teve ajuda da França, que fornecia a seu exército os recursos e ferramentas para o combate a rebeldes. Nas mãos de Deby e seu partido “Movimento Patriótico de Salvação”, nunca houve qualquer espaço para manifestações por parte da população, que tende a se acomodar e manter o status quo na política para evitar instabilidade no país. Além dos grandes problemas políticos internos, o Chade vive uma crise de refugiados em consequência dos ataques do grupo terrorista Boko Haram nos países vizinhos. Em sua viagem pelo país africano, o fotógrafo italiano Francesco Merlini se surpreendeu com a extrema pobreza no país e a falta de liberdade da população. O sentimento que tinha durante sua estada no Chade era de ver pessoas que apesar de extremamente pobres não abriam mão de sua dignidade: "Vi pessoas que, apesar da sua pobreza, têm uma enorme dignidade e lutam diariamente contra a escassez de recursos do seu desprovido país. O Chade é um país de contrastes onde pouquíssimos ricos vivem em casas de luxo e coexistem com pessoas que nada têm senão uma cabana feita de barro e uns grãos de milho". (2)

    O povo do Chade massacrado pela pobreza e desrespeito pertence a cerca de 200 distintas etnias. Destas, não há uma que não tenha tido entre seus membros vítimas de perseguição, prisão e tortura. Foi Hebré o comandante do episódio conhecido como “Setembro negro”, quando no início dos anos 1980 seus homens chegaram e incendiaram toda uma vila deixando um rastro de destruição e morte. Como em muitos outros países africanos, o povo do Chade, descrente das instituições, dos partidos e seus representantes, se distanciam de qualquer esperança na democracia, deixando o terreno livre para que militares justiceiros ocupem o vácuo de poder.

    O governo de Deby sempre teve o apreço do Ocidente por seu desempenho fundamental na guerra contra o terrorismo islâmico na região do Sahel.(3) Sahel, palavra árabe que significa "costa" ou "fronteira" corresponde à faixa de transição no continente africano, que separa o Deserto do Saara e a região das savanas, indo do Oceano Atlântico a Oeste e o Mar Vermelho a Leste. Trata-se de uma região semiárida se estendendo da Mauritânia ao Sudão, compreendendo partes do Senegal, Mali, Burkina Faso, Argélia, Níger, Nigéria, Chade, Camarões, Sudão do Sul, Etiópia e Eritréia. No plano internacional, principalmente os ex-colonizadores franceses davam suporte e elogiavam Deby por sua lealdade inabalável em combate a grupos como o Boko Haram, a Al Qaeda e o Estado Islâmico naquela região. Ao mesmo tempo em que recebia esse apoio à ativa participação em operações de contraterrorismo, o Ocidente ignorava a repressão e violação de direitos humanos, a crescente corrupção e desmandos no país. 

    Em N’Djamena, capital do país e em outras cidades eclodem manifestações contra mais um golpe militar, desta feita perpetrado pelo general Mahamat Idriss Deby, filho do presidente morto em consequência dos ferimentos sofridos enquanto fazia uma visita às tropas que lutavam contra rebeldes opositores ao governo no poder há mais de trinta anos. Até mesmo o governo francês, mandante colonial antes da independência do país em 1960, deixou de apoiar o autonomeado Conselho Militar de Transição — CMT e exigiu que uma unidade civil passasse a liderar o país até que sejam realizadas eleições democráticas: “Sou a favor de uma transição pacífica, democrática e inclusiva, não sou a favor de um plano de sucessão… A França nunca apoiará aqueles que buscam tal projeto”, afirmou Emmanuel Macron.

    Os abusos dos golpistas durante as manifestações de protesto ao regime que se instala no país levaram órgãos como a Anistia internacional para a África Ocidental e Central a exigir das autoridades locais e internacionais investigações imparciais e independentes sobre as circunstâncias das mortes e a consequente punição dos responsáveis pelos homicídios, além da garantia do direito a reuniões e protestos pacíficos no país. 

    Já era esperado que a morte do presidente Deby, eleito em um pleito polêmico para um sexto mandato, resultasse no retorno do país a um estado de violência e caos. 

   O grupo de rebeldes que formam a Frente para Mudança e Concórdia no Chade — FACT tem o poder de ameaçar qualquer estratégia para se conquistar certa estabilidade no Chade e na região, caso não se respeitem as regras democráticas do jogo de mudança de poder. Trata-se do mesmo grupo ao qual se atribui as ações que feriram o presidente Deby levando-o posteriormente a óbito. "O grupo, que foi formado por militares dissidentes em 2016 e não está ligado a grupos jihadistas, agora prometeu depor o jovem Deby, dizendo: 'O Chade não é uma monarquia. Não pode haver devolução dinástica de poder em nosso país.’" Um porta-voz do grupo disse: "Pegamos em armas porque não havia espaço democrático no Chade. Não era possível imaginar uma solução pacífica. Vimos que Deby não queria sair do poder. Não queremos tomar o poder para segurar poder. Nosso objetivo é que as transições democráticas sejam uma realidade". Há também grande inconformismo e insatisfação com o Conselho Militar de Transição liderado pelo filho do ex-presidente por parte dos políticos de oposição. Muitos desses políticos já haviam boicotado a eleição e reclamaram de repressão durante a campanha antes da votação, além de continuar exigindo o retorno ao governo civil. Succes Masra, líder do partido de oposição “Transformers" também rejeita o Conselho Militar de Transição e afirma: "Os chadianos querem uma transferência dinástica de poder? Não. Os chadianos querem a continuação do sistema Deby que eles rejeitaram? Aparentemente não. Os chadianos querem o caos e o conflito armado até que chegue a um fim amargo? Aparentemente não. Mas há também uma abordagem mais inteligente, um caminho de inteligência coletiva que inclui o povo chadiano”. Para isso acrescenta que o exército será mais forte e mais necessário se ficar no quartel e permanecer neutro, pois somente assim garantirá a segurança do país e também contribuirá na luta contra o terror.

    O Chade desempenhou um papel fundamental na guerra do Ocidente contra o terrorismo islâmico na região do Sahel e foi elogiado pela França por sua lealdade inabalável em grupos de combate contra o Boko Haram, a Al Qaeda e o Estado Islâmico.

    Ainda assim, como a Human Rights Watch — HRW disse em um comunicado, "por anos, atores internacionais apoiaram o governo de Deby por seu apoio às operações de contraterrorismo, enquanto fechavam os olhos para seu legado de repressão e violações de direitos sociais e econômicos em casa”. A comunidade internacional não pode continuar desviando seus olhos dos grandes problemas que assolam a política interna do país, a falta de democracia, o crescimento da corrupção e a constante prática de desrespeito aos direitos humanos, simplesmente porque o governo ilegítimo que se forma com o novo presidente interino, para se fazer aceito principalmente pela França e Estados Unidos, afirma que o país continuará assumindo seu papel e suas responsabilidades na luta contra o terrorismo.

    O que se tem notícia é da grande incerteza do que se seguirá aos atuais acontecimentos no Chade. Há dúvidas sobre o grau de lealdade que demonstrará o exército ao filho do ex-presidente Deby e a força que terá para evitar o avanço dos rebeldes, que ameaçam chegar à capital do país para tentar depor o novo mandatário, visto por eles como um golpista. Pode ser que a insatisfação do povo do Chade com o domínio ininterrupto durante 30 anos do seu último presidente, o levem a uma aliança com aqueles que exigem uma mudança de liderança de facto no país. Como afirma Cameron Hudson, membro  do Centro Africano do Conselho Atlântico, "qualquer dos cenários apresenta um elevado risco de baixas civis e uma probabilidade de que a fuga de civis ou soldados possa exportar a instabilidade do Chade para estados vizinhos”. (7)


Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, 1o de maio de 2021.


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1)https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/ditadores-sanguinarios-de-que-ninguem-se-lembra.phtml

2)https://www.publico.pt/2016/01/15/p3/fotogaleria/chade-um-dos-paises-mais-pobres-e-corruptos-do-mundo-385574

3) "Sahel, Sāḥil árabe, região semi-árida da África ocidental e centro-norte que se estende do Senegal ao leste até o Sudão. Forma uma zona de transição entre o árido Saara (deserto) ao norte e o cinturão de savanas úmidas ao sul. O Sahel se estende do Oceano Atlântico ao leste através do norte do Senegal, sul da Mauritânia, a grande curva do rio Níger no Mali, Burkina Faso (antigo Alto Volta), sul do Níger, nordeste da Nigéria, centro-sul do Chade e no Sudão." Disponível em: <https://www.britannica.com/place/Sahel>. Acesso em: novembro de 2020.

4) https://www.dw.com/en/chad-anger-and-uncertainty-as-slain-presidents-son-named-interim-leader/a-57280756

5)idem

6)ibdem

7)https://www.rtp.pt/noticias/mundo/rebeldes-ameacam-depor-filho-de-presidente-do-chade-que-assumiu-poder-apos-morte-do-pai_n1314002 

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