POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

No Chipre, a última capital dividida

 

                                

                        A divisão de Nicósia — Foto:BBC




Eles compartilham uma vida em uma ilha dividida da qual nenhum dos dois povos pode — nem quer — fugir. Uma vida, no entanto, em inimizade.(1)

 


Permanecer em Bonn ou retornar para Berlim? A pergunta foi respondida no dia 20 de junho de 1991, após oito meses da queda do muro de Berlim e da reunificação da Alemanha. A decisão histórica do Parlamento e do governo alemão selava o retorno de sua capital à cidade reunificada. 

Na tratativa da geografia de lugares, para muitos, distantes e inexistentes, a saga de Nocósia, capital do Chipre, ilha Estado do mediterrâneo que amarga uma disputa interna sem data para terminar. Berlim e Nicósia figuraram no mundo do século XX como as duas últimas capitais divididas. Berlim, já havia sido a capital do Reino da Prússia, do Império Alemão, da República de Weimar e do Terceiro Reich. Nicósia, ainda unificada recebia em 1. de março de 1959, de braços abertos, o futuro primeiro presidente do país ilhéu, o arcebispo Makarios prometendo a todos os cipriotas liberdade e libertação das correntes do colonialismo. Até 1878, quando os britânicos assumiram o território, gregos e árabes já faziam parte da população da ilha, que também passou pela mão de romanos, venezianos e otomanos, além de servir de base para o movimento das Cruzadas.



A capital está dividida desde 1963 / Crédito: Wikimedia Commons. (À direita placa indicativa da divisão da cidade: Lê-se em inglês, francês e alemão: “A última capital dividida.” Acima, em grego: “Nicósia.”


    No longo período da Guerra Fria, tivemos o levante popular da RDA em 1953, a construção e a queda do Muro de Berlim respectivamente em 1961 e 1989 e testemunhou-se a reunificação alemã em 1990. Enquanto na Alemanha e em Berlim era construído, no início dos anos 1960, o muro para sua divisão, no Chipre a luta travada por sua independência do jugo dos colonizadores britânicos vinha de uma revolta da EOKA,(2) configurando o ressurgimento de um Estado soberano que passaria, em 1961, a fazer parte da ONU.  

Makarios, considerado a personalidade da história contemporânea do Chipre, monge e posteriormente bispo e primaz da Igreja Ortodoxa da ilha foi o líder do movimento político que queria a união com a Grécia e primeiro presidente da República de Chipre. Trabalhou pela integração da comunidade grega e da comunidade turca e durante seu mandato presidencial o Chipre foi admitido na ONU. "Makarios foi eleito, em 13 de dezembro de 1959, primeiro presidente da nova república, passando a tomar, rapidamente, uma posição moderada e centrista na vida política do Chipre, mantendo uma política de não-alinhamento, "cultivando um bom relacionamento com a Turquia e a Grécia, tornando-se uma das mais representativas figuras do Movimento dos Não-Alinhados, o que lhe valeu o epíteto pelos norte-americanos de 'Castro do Mediterrâneo' ou 'Arcebispo Vermelho', mas ganhando, no plano interno, a inimizade dos cipriotas turcos, na sequência da proposta de treze emendas à Constituição que, eliminando a obrigatoriedade da representatividade étnica, pretendia dotar o Estado de maiores recursos e forçar a cooperação interétnica, o que conduziu os cipriotas turcos a confinarem-se em zonas habitacionais não mistas, numa tentativa de forçar a Taksim, a divisão."(3)

As tentativas de construção de um Estado unitário tiveram um fim em Dezembro de 1963, quando a violência entre as duas comunidades escalou. "Ao mesmo tempo, Makarios, granjeou o ódio dos partidários radicais da enosis [união de Chipre com a Grécia] que, em antagonismo às suas posições politicas e liderados por George Grivas, fundaram, em 1971, uma organização paramilitar de extrema-direita, EOKA-B, cujas ações redundaram também nas várias tentativas de assassinato de Makarios e outras acções violentas. Apoiados pela 'junta dos coronéis' no poder na Grécia (1967-1974), levaram a cabo um golpe de Estado (15.07.1974) denunciado por Makarios no Conselho de Segurança da ONU (19.07.1974) como uma verdadeira invasão de Chipre. A Turquia encontrou no golpe a justificação para, em nome do Tratado de Garantia, invadir o Chipre (20.07.1974) o que conduziu rapidamente à queda da ditadura militar grega, ao fim do apoio aos golpistas cipriotas e à restauração da legalidade constitucional, embora num contexto de divisão e ocupação turca da parte norte da ilha que se mantém até à actualidade."(4)

Após seu regresso ao país em dezembro de 1974, Makarios retomou suas funções de presidente mas sem chegar a atingir seus objetivos e refém de um passado pró-enosis, ao se unir àqueles que queriam “…restaurar a integridade territorial de Chipre."(5) Em consequência de um golpe militar grego na ilha, a Turquia invadiu militarmente o Chipre, ocupando seu lado norte, o que dividiu a ilha e resultou na formação das duas repúblicas, embora sem reconhecimento pela ONU do lado norte como país independente. "Mais de 200 mil pessoas tiveram de emigrar para um ou outro lado: os de ascendência grega e religião ortodoxa para o sul, e os de ascendência turca e religião muçulmana para o norte.”(6)





            A muralha da Nicósia antiga


Desse modo, Nicósia passaria em 1974 a ser a segunda capital dividida do planeta. Enquanto em 1989 Berlim se reunificava e em 1991, em Bonn se aprovava o retorno do governo e do Parlamento ao antigo centro de poder da Alemanha, em 1974 se via em Nicósia, sua divisão sendo materializada por uma Linha Verde que demarcaria a fronteira entre gregos e turcos. Enquanto a Alemanha superou a separação desde a queda do Muro de Berlim, Nicósia continua vivendo a realidade de uma cidade dividida à revelia de seus povos, em função da ingerência colonial e dos vizinhos regionais turcos e gregos. "A reivindicação dos cipriotas gregos de devolução das propriedades perdidas [após a invasão turca de 1974] continuará não satisfeita. O statu quo significa que não haverá fim para a presença das tropas turcas na ilha nem para o influxo de colonos turcos. O risco de uma fractura permanente entre as duas zonas e as duas comunidades, com todas as suas ramificações políticas e diplomáticas, é exacerbado pela inacção."(7)

A disputa entre gregos, turcos e britânicos levaram o país ilhéu e sua capital a viver em discórdia até os dias atuais sem conseguir, apesar de diversas tentativas, reconquistar sua unidade. O plano de reintegração que remonta a  2004 e ficou conhecido como plano Annan por ter sido uma iniciativa da ONU através do seu então presidente Kofi Annan; sem êxito, em consequência do veto greco-cipriota. O referendo de maioria Sim no Norte não pôde ser ratificado porque no Sul da ilha o Não obteve maioria. Essa vitória do Não a sul inviabilizou a entrada de um Chipre unificado na União Europeia em 1 de Maio de 2004.  Como 25º membro da nova Europa alargada ficou mesmo a metade sul da ilha, a República de Chipre, internacionalmente reconhecida. A autoproclamada República Turca do Norte de Chipre (RTNC, reconhecida somente por Ancara) é, como a denominam os demais cipriotas e a representam os mapas da ilha, nada mais do que um território ocupado pela Turquia. 

No quadro atual, a ilha dividida tem cerca de um milhão de greco-cipriotas vivendo no que se conhece por República de Chipre e 300 mil turco-cipriotas ocupando o que somente a Turquia reconhece como República Turca de Chipre do Norte (RTNC), o que a torna mais um membro do “clube” de países que não existem. Considerando-se todo o seu território, o Chipre, com 9.251 km2 é a terceira maior ilha do mediterrâneo, menor apenas que as também mediterrâneas, Sicília e Sardenha (Itália). Se compararmos sua dimensão territorial com algum estado brasileiro, poderíamos pensar que sua área perfaz menos da metade do menor estado, Sergipe (21.925 km2) e seria maior apenas do que o Distrito Federal (5.760km2). No seu território 3% correspondem a uma área sob vigilância e patrulhamento da ONU que a ninguém pertence: a “Linha Verde" de demarcação atravessando a histórica cidade velha cercada por uma muralha veneziana. Trata-se de uma linha que define a fronteira artificial e indesejada por suas populações com cerca de 200 km de extensão, separando o sul cipriota grego do norte cipriota turco. Bases militares britânicas, Akrotíri e Dhekélia ocupam 2% da ilha e completam o cenário de divisão e ocupação. Alheias ao país, essas duas ocupações lembram o também britânico Gibraltar, na Espanha, só que exclusivo para militares. Para que o Reino Unido, em 1960,  aceitasse a tão duramente conquistada soberania cipriota, foi necessário ceder à manutenção dessa ocupação colonial esdrúxula. Os 36% restantes do território da ilha correspondem ao que foi ocupado pela Turquia. Antes zonas proibidas à circulação interregional, somente a partir de 2003 fluxos de pessoas atravessavam de um lado a outro da ilha através dos postos de controle na fronteira. As negociações para unificação esbarraram em várias questões geo-políticas e territoriais. No âmbito da comunidade das nações e em suas instâncias de representação, para a ONU e a União Europeia, só existe um Chipre como Estado independente que ao norte foi ocupado pela Turquia. "O Chipre do Norte não é membro de nenhuma organização internacional, nem tem ligações aéreas diretas com outros países além da Turquia, e não tem permissão para se envolver no comércio internacional. Dezenas de milhares de turcos foram reassentados do continente para o norte de Chipre, é grande a dependência de Ankara. O impedimento à participação da República de Chipre nas associações políticas e econômicas internacionais não obstou seu ingresso na União Europeia em 2004, o que, em certo grau, transferiu ao bloco europeu um conflito de âmbito local e tratado pelos três países historicamente articulados seja em razão dos traços  coloniais ou dos liames culturais.

O presidente Ersin Tatar, do conservador Partido da Unidade Nacional (UBP), eleito no Chipre do Norte em outubro de 2020, também é apoiado por Ancara e é um  defensor da solução política de formação de dois estados e governos independentes.(8) É preciso assinalar no tabuleiro da geo-politica "o fator" Recep Tayyip Erdogan como sério entrave à negociação e consequente implementação de um projeto que venha a unir os cipriotas em um Estado único, soberano e com autonomia regional relativa. O presidente turco, afeito a decisões autoritárias e incompatíveis com o modelo democrático europeu,  já afirmara sua influência sobre o então líder da parte turco-cipriota, Mustafa Akinci, o que trouxe desconfiança quanto ao seu papel no caso do estabelecimento de uma nova realidade geopolítica em um eventual período pós-união. A ideia de um Estado federativo cipriota com dois Estados autônomos pode ter efeitos imprevisíveis, tendo em vista o status de membro da União Europeia do Chipre grego, que poderia ser estendido a toda ilha e seus povos. Portanto é difícil uma previsão acerca da possibilidade de uma reunião da ilha; posto que a República do Chipre não reconhece o país do norte e vice-versa. O ex-líder turco-cipriota, por seu turno, afirma que a República do Chipre, em sua atual configuração, está morta e que somente um sistema político com uma federação turco/greco-cipriota viabilizaria uma união que ainda em outros moldes, já era cogitada na época do então líder, o ex-presidente arcebispo Makarios. É preciso assinalar que a ação do colonialismo britânico e seu poderio e domínio econômico, político e militar na ilha, contribuiu para sua divisão e conflitos étnicos, culturais e religiosos contemporâneos. Qualquer solução desenhada e que se projete como duradoura, é inseparável da libertação da ilha das amarras  do colonialismo, como preconizou o arcebispo Makarios. Tal pode ser o caminho rumo ao renascimento de um Chipre em forma de Estado-nação unificado, respeitando as diferentes minorias locais, com sua capital Nicósia cumprindo sua missão de multiculturalidade, o que significa respeitando e representando, necessariamente, todos o seus povos.



                    Chipre: a ilha berço de Afrodite



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(1) Sie teilen ein Leben auf einer geteilten Insel, von der keiner der beiden Volksstämme fliehen kann - und will. Ein Leben, trotzdem in Feindschaft". Nahtstelle Nikosia. Disponível em: <https://taz.de/Geteilte-Hauptstadt/!5189759/>. Acesso em: fev. 2022.

(2) EOKA é a sigla grega para Ethniki Organosis Kyprion Agoniston – Organização Nacional de Lutadores Cipriotas. A organização foi fundada em 1955  para derrubar o colonialismo do Reino Unido sobre a ilha do Chipre e ainda buscar a enosis ou união com a Grécia.

(3) AMORIM, F. Arcebispo Makarios: entre o desejável e o possível. Disponível em: <https://www.janusonline.pt/arquivo/2007/2007_4_5_8.html>. Acesso em: fev. 2022.

(4) idem.

(5) AMORIM, F. Arcebispo Makarios: entre o desejável e o possível. Disponível em: <https://www.janusonline.pt/arquivo/2007/2007_4_5_8.html>. Acesso em: fev. 2022.

(6) AGUIAR, F. Uma visita ao último muro europeu: Chipre. Disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/revistas/2017/04/uma-visita-ao-ultimo-muro-europeu-chipre/>. Acesso em: fev. 2022.

(7) COX, P. O statu quo de Chipre é mau para as duas comunidades. https://www.publico.pt/2008/02/16/jornal/o-statu-quo-de-chipre-e-mau-para-as-duas-comunidades-249456

(8) LORENA, S. Cipriotas turcos escolhem entre visões opostas de futuro e a Turquia tem muito em jogo. Disponível em: <https://www.publico.pt/2020/10/12/mundo/noticia/cipriotas-turcos-escolhem-visoes-opostas-futuro-turquia-jogo-1934971>. Acesso em: fev. 2022.

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