POLIS

POLIS
O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Bayingyis: os últimos traços lusitanos na Birmânia


Descrição ilustrada em igreja local com imagem de uma caravela e representação católica.


Navegadores, mercadores, exploradores e soldados do período da expansão marítima viabilizaram os primeiros contactos entre Europa e Oriente. Há um rincão oriental, a norte da Birmânia, onde seus habitantes miscigenados foram esquecidos pela outrora pátria lusa a que ainda hoje se referem como sua. Pelo que se conhece, Duarte Barbosa teria sido o primeiro a relatar sobre o pioneirismo dos portugueses naquela então desconhecida região. O cronista teria saído “…em 1501 ruma à Índia com uma frota de várias dezenas de navios, só regressando a Portugal quinze anos depois (…) Barbosa é, provavelmente, o primeiro europeu a mencionar a existência da Birmânia, na altura, o nome dado ao principado de Tangu, que, juntamente com Ava, Pegu e Arracão, era um dos mais importantes reinos da região que hoje constitui o Estado de Myanmar”.(1) O interesse em especiarias e outros bens comerciais como o arroz e as embarcações, além de vários produtos hortícolas, prata e o afamado lacre trouxe os portugueses para a distante e antiga Birmânia. 

    País que se localiza no sul da Ásia e faz fronteira com a Índia, Bangladesh, Tailândia, Laos, China e o Oceano Índico, já fez parte da Índia, quando em 1824 a Inglaterra anexou o que correspondia ao território birmanês à sua antiga colônia. Só obteve sua independência em 1948 depois de mais de cem anos do domínio inglês; exatamente um ano após a independência da Índia. “'A exploração colonial fez com que diferentes etnias fossem obrigadas a conviver. Algumas etnias rivais entre si'[...] O senso  de identidade no país é complexo. O próprio nome 'Mianmar' é questionado. Oficialmente, desde a constituição feita durante o regime militar, em 1989, o país [se] chama República da União de Myanmar. Entretanto, apoiadores de movimentos pró-democracia não reconhecem a autoridade militar e preferem continuar com o nome Birmânia (ou Burma), que era o termo usado durante o período colonial".(2) Hoje a oficial República da União de Myanmar, ainda exibe marcas vivas da presença pioneira dos portugueses na Ásia.(3) Não se esvaíram todos os traços dessa presença lusitana inusitada e desconhecida, remanescente daqueles portugueses, que em terras remotas como a Birmânia aportavam como estranhos viajantes e invasores. Dos muitos portugueses em diversos pontos e países asiáticos, ficaram os Bayingyi na Birmânia. Essa denominação é originária do árabe “fheringi”, inicialmente uma referência a franceses que passou a servir a qualquer pessoa oriunda da Europa, mas principalmente aos portugueses, com quem os birmaneses mantinham mais contato. Tempos depois, o termo significaria “católico" mas finalmente veio a ser uma referência específica aos descendentes de portugueses. Não por acaso é a religião católica uma das principais características que distinguem os Bayingyi do restante do povo birmanês e de outras etnias locais. "É uma característica de identidade acrescida às suas óbvias feições ocidentais. Segundo consta, os Bayingyi são um povo orgulhoso da sua ascendência lusitana[…]" Atualmente ainda se encontram essas comunidades que mantêm vivas a alma e o sangue portugueses mesmo em condições hostis e sem políticas locais favoráveis a sua preservação. "Para além das características físicas, o criolo de origem portuguesa e algumas tradições, mantêm viva a ligação aos seus antepassados. Em alguns locais, inclusive, é comum cantarem em português e a religião católica é predominante”.(4)

Esses descendentes de portugueses nos antigos reinos da Birmânia formam, portanto, uma comunidade à parte, os "Bayingyi", que se localiza no norte da atual Mianmar, cujos membros ainda hoje se sentem mais portugueses do que birmaneses. "Atualmente os traços físicos já não estão tão presentes, pela união do povo Bayingyi com a população fora da comunidade. Um dos motivos prende-se com o facto da população mais nova aproveitar as condições do Governo no que respeita à educação e partirem para outras  localidades maiores. Contudo, a cultura e a religião de tons europeus mantêm-se como fortes pilares da comunidade”.(5) Nesse país de maioria budista e muito fechado a movimentos de emancipação e com pouca aceitação de outras culturas e religiões é algo impressionante que ainda haja um povo que apresenta traços ocidentais formando sua comunidade católica mais antiga. O grupo chega a cerca de meio milhão de integrantes. Um povo que, no século XVII sobreviveu a várias disputas territoriais e guerras nas cidades birmanesas e que também foi, em função dessas guerras e disputas, escravizado e transferido para outras regiões, disperso pelos vilarejos bainguis do vale do rio Mu, região essa a que é associado até os dias atuais. 

Joaquim Magalhães de Castro, escritor e jornalista de viagens,  dedica-se ao estudo do povo Bayingyi e sua história, tendo nesse campo um largo percurso; com notável produção na pesquisa e na escrita acerca desses descendentes de portugueses em Mianmar.  Nas palavras do próprio autor: "No decorrer do meu trabalho de investigação referente ao património português disseminado pelo mundo, em curso há já algumas décadas, Myanmar mostrou ser dos terrenos mais férteis. Posso dizer até que os contornos dessa insistente labuta se começaram a definir aí mesmo, burilado pelo convívio com as comunidades luso-descendentes do vale do Mu, os ditos bayingyis, a norte de Mandalay, a respeito dos quais ando a falar e a escrever há pelo menos 25 anos".(6) Entre as obras de Joaquim Magalhães de Castro destacam-se: “Os Bayingyis do Vale do Mu – Luso-descendentes da Birmânia (2001)"; “No Rasto de Fernão Mendes Pinto (2013) e “Os Filhos Esquecidos do Império (2014); além do documentário Bayingyi, a outra face da Birmânia (2001)" e as crônicas "Por terras de Arracão (2020)".

Fortaleza, 15 de fevereiro de 2022
________________________________________
(1) Castro, J. M de. Os filhos esquecidos do império português. Disponível em: <http://sibila.com.br/mapa-da-lingua/os-filhos-esquecidos-do-imperio-portugues/11553 >. Acesso em: fev. 2022.
(2) Diaz, L. Mianmar: entenda o golpe de Estado e a história do país. Disponível em: <https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/entenda-o-que-esta-acontecendo-no-myanmar/>. Acesso em: 2022.
(3) Bayingyis: a Marca dos Portugueses na Antiga Birmânia. Disponível em: <https://www.natgeo.pt/historia/2020/01/bayingyis-marca-dos-portugueses-na-antiga-birmania>. Acesso em: fev. 2022.

(4) idem
(5) idem
(6) Por terras de Arracão. O Clarim. Semanário católico de Macao. Disponível em: <https://www.oclarim.com.mo/todas/por-terras-de-arracao-1/>. Acesso em: fev. 2022.


Nenhum comentário:

Postar um comentário