O ato Justiça por Moïse. Foto: Twitter Sâmia Bonfim
Será uma falácia o país acolhedor na terra do samba, sol e carnaval?!! O Brasil seleciona quem vai acolher bem. A mentira do país amigo, que não discrimina é facilmente descortinada ao se observar os imigrantes, principalmente os de países africanos e caribenhos, sendo rejeitados e postos de escanteio. O racismo estrutural na sociedade brasileira é escamoteado pela falsa aparência de uma inexistente democracia racial, pela carcomida ideia da miscigenação formando um povo acolhedor, não preconceituoso, numa nova terra de diferentes raças e cores; pobres e ricos se misturando num caldeirão multicultural e multi-social. A desigualdade de oportunidades no país se torna abissal quando se considera o grupo de imigrantes não brancos e/ou pobres. A eles são reservados trabalho indigno, moradias precárias e sub-humanas e a eles é interditado o acesso ao mínimo vital: educação, saúde e dignidade. E eles formam nas estatísticas do trabalho degradante; escravizados no século XXI.
A política imigratória da república tropical é: receber quem é obrigada a receber e soltar por aí, sem qualquer ação planejada de acolhimento e de justa inserção social e profissional. Jogados ao Deus dará, como rebotalhos, como sobrantes do sistema iníquo. Para sobreviver na nova pátria hostil, somente o subemprego, a sub-habitação, a sub-humanidade, e somar-se aos milhões de desvalidos sociais tentando sobreviver ante as mesmas milhares de injustiças cotidianas ou morrer à míngua. Há muito desconhecimento sobre a legislação brasileira que poderia servir de proteção a esses imigrantes; o que permitiria sua regularização no país anfitrião. O preconceito, o estigma e a desinformação se somam à suposta inexperiência, levando políticos e governantes a agir apenas intuitivamente ou com obtuso direcionamento político, o que agrava a situação. Em vez de se buscar os meios humanitários, abandonam-se os imigrantes que atravessam a fronteira à sua própria (falta de) sorte, deixando-os susceptíveis à exploração, aos ataques e à hostilidade de setores desinformados ou mal intencionados da população.
O recurso a uma retórica xenófoba por autoridades atende muito mais a interesses políticos de grupos específicos e se distancia da necessária construção de uma política de Estado para ajudar na integração dos que chegam em situação de desespero. Essa realidade não é um "privilégio" do Brasil, mas aqui encontra terreno fértil com o viés fascista do atual (des)governo, tornando-se uma regra seguida por quase todos no enfrentamento de movimentos migratórios crescentes. Tal situação deve ser denunciada e combatida. Como bem afirmou a mãe de Moïse Mugenyi Kabagambe, seu filho, um imigrante congolês, assassinado a pauladas por cobrar o pagamento por seu trabalho, deparou-se com a mesma morte brutal que é praticada em seu país. "'Eram cinco pessoas', relatou Yannick. 'Assim que vieram os reforços, já arremessaram ele (Moïse) no chão. Um agarrou ele com um mata-leão, um agarrou as pernas e outro já chegou dando madeirada nele', contou. Apareceu taco de beisebol, madeira… Passaram uma corda nas pernas e no pescoço. Começaram a revezar batendo nele. Quando perceberam que ele não tinha mais reação, começaram a dar uns tapas no rosto. Como viram que ele não estava reagindo, se afastaram. O que deu o golpe nele, pegou a faca, cortou as cordas - dá para ver no vídeo -, tentou reanimar e nada. Nisso aí, tinha outras pessoas observando. E o quiosque funcionando, como se nada estivesse acontecendo', narrou Yannick”(1) O medo do perigo e da brutalidade que os expulsaram do Congo foi exacerbado no país falso acolhedor. A irmã de Moïse afirmou que não quer mais viver nesse país racista e perigoso, prefere deixá-lo para não ver seus filhos crescerem numa pátria cruel e racista. Outro parente diz que só veio conhecer o que realmente é racismo aqui no Brasil. "'Quem bateu nele foi movido pelo orgulho do racismo: ele é negro, africano, desempregado, não é nada. Então, nada vai acontecer…’"(2) , afirma Hervé Kalemat, o amigo também congolês, que vive no Rio de Janeiro. Suas Falas não são isoladas e emergem de uma experiência traumática e sem retorno, recuperação ou cura. Não há como justificar a brutalidade e barbárie dos que mataram a pauladas um trabalhador por ir cobrar o que lhe é devido, míseros 200 reais não pagos por diárias de um trabalho com requintes de exploração e à margem da lei. Identificaram-se, entre os facínoras assassinos, pessoas do entorno ligadas aos dois quiosques contíguos. O quiosque onde Moïse Kabagambe trabalhava era administrado irregularmente por um policial militar: "O operador do quiosque Celso Carnaval concedeu de forma ilegal a administração do quiosque Biruta, onde Moise trabalhava como diarista, a um cabo da PM”.(3)
Como afirma o advogado criminalista Roberto Tardelli, "não são relações trabalhistas, mas relações de exploração cruenta, verdadeiramente medievais, da força de trabalho dessas pessoas que não têm poder algum de negociação… O assassinato do congolês […] em um quiosque na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro, em 24 de janeiro [de 2022], está inserido em um contexto que mistura o racismo estrutural, xenofobia, crueldade, milícias e também exploração de trabalho”. Segundo reportagem da Rede Brasil Atual, há indícios de que a região onde está o quiosque é território sob a influência e o mando de milícias: “É sintomático que houvesse câmeras filmando toda a cena, o que não preocupou e nem intimidou os facínoras que o mataram de forma tão brutal como mataram Moïse”. Tardelli afirma, segundo a RBA, que toda essa violência revela o quadro de desagregação institucional em que estamos vivendo "turbinado por um nível de racismo ‘irrespirável’”. O ex-presidente Lula, corretamente associa a tragédia que vitimou Moïse ao clima de arbitrariedade instalado hoje no Brasil “resultado de um país que está sendo governado por um fascista”. Durante o ato na Avenida Paulista que pedia justiça por Moïse, o angolano Raul Mandela, que é formado em tecnologia da informação e trabalha como auxiliar de limpeza em São Paulo, afirma que enquanto seu povo vê o Brasil como um país de irmãos, eles são vistos aqui como inimigos; não existe o mesmo sentimento fraterno, “e isso está cada vez pior porque é incentivado pelo governo atual"(4)
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(1) Quiosque funcionou normalmente enquanto congolês Moïse esperou socorro desmaiado. Disponível em: <https://www.itatiaia.com.br/noticia/quiosque-funcionou-normalmente-enquanto-congoles-moise-esperou-socorro-desmaiado>. Acesso em: 1. fev 2022.
(2) SOARES, J. P. "Quem agrediu Moïse foi movido pelo racismo”. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/quem-agrediu-moïse-foi-movido-pelo-racismo-diz-congolês-no-rio/a-60656504>. Acesso em: 4 fev. 2022.
(3) Quiosque que Moise trabalhava tinha administração irregular. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/quiosque-que-moise-trabalhava-tinha-administracao-irregular,bbe3f898e1ee6fe935244e8053edabddafpsneli.html>. Acesso em: 3 fev. 2022.
(4) BASSO, G. Ato por justiça para Moïse Kabagambe leva 3 continentes para Avenida Paulista. Disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/ato-por-justica-para-moise-kabagambe-leva-3-continentes-a-avenida-paulista-202125887.html>. Acesso em: 5 fev. 2022.
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