POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quinta-feira, 4 de março de 2021

O "NÃO-LUGAR"

 

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[...] o mundo errante parece se constituir pela constante movimentação para lugar algum. Nesse contexto, podemos considerar o território de deslocamento do sujeito na atualidade como um “não-lugar”, tal como assinala Marc Augé (1994). Segundo a definição deste autor, o não-lugar é caracterizado pelo imprevisível, provisório, efêmero, anônimo, circulante, não habitado de maneira estável, enfim, o não-lugar é o espaço em trânsito, local por excelência do viajante, do transeunte, dos andarilhos, local também da inquietude, da solidão e, especialmente, do despojamento e da flutuação da identidade.(1) 

 

Há muitas nomeações para (des)tratar as pessoas que vivem nas ruas, mas uma só certeza: a rua, quase sempre, não é um lugar de escolha e seus moradores precisam ser assistidos. A diferença na terminologia que visa definir os que tem a rua como morada se reflete na sua própria diversidade. Em comum o estado involuntário de penúria, a falta de perspectivas, a ausência e a negligência do poder público, além do abominável tratamento das elites, que do alto de seu preconceito tecem comentários no mínimo controversos sobre o povo da rua. É o caso de um revelador "bate-papo" divulgado nas mídias sociais, entre a mulher do governador de São Paulo e uma socialite qualquer de seu círculo. A "institucionalização" da fala, dada sua origem e publicização somadas ao caráter preconceituoso, levantou críticas quanto a sua impropriedade e a função por ela ocupada no aparelho de estado: coordenadora do Fundo Social do Estado de São Paulo. Ademais, suscitou solicitação formal do vereador Eduardo Suplicy via Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal e da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, presidida pela Deputada Beth Sahão, "para que [Bia Dória] tenha a oportunidade de ali prestar seus esclarecimentos e expor a respeito dos programas que a Rede Social de São Paulo tem feito para bem contribuir na superação dos problemas desta população.”


A caridade é paciente, a caridade é bondosa. Não tem inveja. A caridade não é orgulhosa. Não é arrogante.

Nem escandalosa. Não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor.

Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade.

Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta […]

1º CORÍNTIOS 13


Fazendo eco às palavras insensatas da mulher do governador, lemos o raciocínio torto e desumano no livro “A Máfia dos Mendigos”, sobre como ações caritativas podem incidir no aumento da miséria, um fundamento à reverberação do egoísmo e o desrespeito ao outro, sempre invisível. A nomeada publicação não é mais que um pastiche de pseudoteorias e análises que mal disfarçam o preconceito latente segundo o autor, fruto de sua observação do período em que, sob conveniente disfarce, logrou vivência entre os moradores de rua na cidade de Fortaleza, no Ceará. A complexa problemática do morador de rua é cruelmente simplificada numa causalidade unilateral que beira a ignorância e se distancia de qualquer rigor científico. Essa redutora relação causal entre virtude e tragédia é o mote do citado livro  “A máfia dos mendigos – Como a caridade aumenta a miséria” do pastor Yago Martins; elucidativa também da visão de uma suposta teologia que indicia a riqueza e a prosperidade individual e egoísta como o lugar da salvação. Torna-se conveniente afirmar sobre uma suposta indústria da miséria e que a ela se une a prática da justiça social para  perpetuar a exploração aos miseráveis e condecorar seus agentes com rendimento e status, quando se pode falar do tema do alto dos púlpitos ou palácios. Considerações desse tipo são semelhantes àquelas que atribuem a culpa pela fome na África aos que hoje tentam ajudar as populações em absoluta miséria, e como corolário negam tal estado de miséria e fome aos colonizadores que prepararam o terreno e lucraram com essa destruição com reflexos até o tempo presente. Assim, tal raciocínio afirma que a pobreza multissecular no Brasil não se religa à história dos escravos e sua precária liberdade sem qualquer amparo social. A marginalização e segregação social advindas dos interesses imobiliários escusos e dos resíduos de uma industrialização no capitalismo dependente não teriam, assim,  relação com o drama dos sem teto e dos sem trabalho.  O disparate da mulher do governador de São Paulo tem aqui uma possível fonte pois segundo o autor do questionável livro, foi criada uma situação para esses pobres moradores de rua na qual seria mais confortável viver, beneficiar-se de uma rede de proteção e dessa forma evitar o trabalho para ganhar pouco e ter responsabilidades. Veja que nesse último trecho apreendido do conteúdo da publicação referida, se encontram idênticos argumentos do absurdo diálogo entre as parceiras de convescote nos salões da elite.  As duas, para "explicar" o indefensável  não se deveria distribuir marmitas aos moradores de rua , usaram essas palavras: "têm vida confortável na rua, não querem trabalhar, não querem ter responsabilidades”. Afirmação desprezível e ao que parece, transposta pelas socialites, em parte, da ideia cultuada pelo tal teólogo e autor, para desqualificar notáveis ações perseverantes realizadas por ONGs, Igrejas e outros cidadãos capazes de empatia com o outro e de compartilhar sentimentos e compaixão. Pois esse desejo “masoquista” de passar as agruras de quem tem apenas na rua sua casa jamais poderia ser elucidada em uma perspectiva financeira, tampouco no que representa viver na rua “voluntariamente" com a falta de dignidade pessoal, e rejeição dos efeitos positivos que o engajamento em algum trabalho poderia trazer para essas pessoas. Mesmo os mais desavisados críticos perceberam ausência de fundamentação na citada publicação, cujo autor levianamente invoca  premissas como conclusões e nenhuma fundamentação para suas acusações superficiais e insustentáveis. Trata-se, portanto, de um texto coerente com a incapacidade oficial em lidar com a realidade e combater o mórbido egoísmo das pessoas que estão à frente das instituições:

 

Teria surgido assim um exército de mendigos voluntários, que poderiam estar trabalhando e produzindo, mas escolhem ficar na rua. Segundo o autor, estes seriam simplesmente vagabundos, miseráveis profissionais que acabam drenando os recursos da caridade que poderiam beneficiar aqueles que realmente deles necessitam […] Trata-se de uma tese preocupante e, até certo ponto, convincente, diante do que vemos nas ruas, mas que aparece em “A máfia dos mendigos” mais como premissa que como consequência da pesquisa de campo empreendida pelo autor […] Yago peca pela falta de fundamentação concreta: no mais das vezes, ele constrói uma narrativa que fica na reiteração de suas convicções, sem demonstrar com dados objetivos a sua validade.(2)



Causa estranheza uma pessoa que se afirma professor de Teologia desconhecer os sentidos da caridade, subtraindo-lhe a dimensão espiritual e, como é de se esperar dessas matrizes das conspiradoras teologias da prosperidade; reduzir o fenômeno a uma dimensão material. Um argumento que não por menos pode servir de inspiração para o nefasto discurso das socialites egoístas que do alto de suas fúteis existências,  fecham os olhos ao sofrimento alheio para continuar sugando do Estado os recursos para sua vida de luxo e lixo.

Na contramão desses preconceitos se vêem outros posicionamentos a exemplo daqueles do Padre Arlindo Pereira Dias, da Congregação do Verbo Divino e coordenador do trabalho de Justiça e Paz e Integridade da Criação (JUPIC) em São Paulo. Pe. Arlindo trabalha com moradores de rua pela Rede Rua desde 1989. Como nas palavras do Papa Francisco em uma manhã de abril em missa na capela da Casa Santa Marta aos que estão pagando as consequências da pandemia do coronavírus, em particular aqueles que não têm uma casa, o padre Arlindo fala sobre a necessidade de se atuar na proteção dessas pessoas em situação de rua. Para o sacerdote a rua não é lugar para morar, muito menos para morrer. O padre já alertava no mês de março que seriam necessárias políticas públicas emergenciais para atender as pessoas em situação de rua, as mais afetadas pela pandemia: "O sacerdote afirma que comunidades, grupos e movimentos já se mobilizaram com inúmeras ações de solidariedade, entre eles o Vicariato da Pastoral para o Povo da Rua, o Arsenal da Esperança e os franciscanos no Largo São Francisco. 'Trata-se de viver a Campanha da Fraternidade em tempo de coronavírus’”.(3)


A espiritualidade não é uma vacina nem uma anestesia para a dor. Mas acredito que é motivo de consolo, de esperança e inspiração para a solidariedade. A espiritualidade nasce do coração humano em busca por Deus e pelo próximo. Então, o papel é chorar com quem está chorando, socorrer quem está no desespero, servir ao povo com amor e exigir políticas públicas de valorização do SUS e promoção de justiça social. Espiritualidade tem consequência ética e jamais pode ser compatível com indiferença ao sofrimento humano.(4)


No Jornal O São Paulo(5)  encontramos exemplos de atuação junto ao povo da rua em período crítico da pandemia: Casa de Oração do Povo da Rua, Missão Belém e Arsenal da Esperança. O Cardeal Odilio Pedro Scherer, Arcebispo Metropolitano de São Paulo expõe a necessidade dos cristãos não abandonarem os mais pobres e doentes. Seguindo essa diretriz, são exemplares tais iniciativas para assistir as pessoas que vivem nas ruas. “'Tem aumentado todos os dias o número de pessoas que têm procurado ajuda aqui. Não temos dado conta de entregar os kits de higiene, precisamos quase fazer um ‘milagre’ com o pouco que há de álcool em gel, mas estamos distribuindo muito sabão e detergente que também matam o vírus', afirmou Ana Maria Alexandre, uma das responsáveis pelos trabalhos na Casa de Oração”. A Missão Belém se defronta também com o problema social do alcoolismo e da adição daqueles que vivem pelas ruas da cidade.  “'Diante dessa situação de pandemia, os sítios estão em quarentena com aqueles que já vivem neles. Foi uma medida para não haver riscos de infecção. Se continuássemos acolhendo todo mundo, uma hora ia superlotar; então, preferimos acolher agora só os mais debilitados da rua, os mais doentes. Estamos indo todos os dias para a rua para procurar aqueles que estão doentes – diabéticos, hipertensos, pessoas com HIV, sífilis, tuberculose – além de cadeirantes', explicou Caio Ferreira, responsável pela comunicação da Missão Belém”. O Arsenal da Esperança na Mooca, bairro de São Paulo tinha acolhido cerca de mil pessoas em quarentena em março de 2020. "Padre Simone enfatizou que essa é uma ocasião para os muitos grupos e instituições que já realizam trabalhos voltados ao povo da rua possam se articular. Há muitos grupos de paróquias e comunidades que costumam ir às ruas para levar refeições à população de rua. Porém, como são orientados a ficar em casa, eles não podem mais realizar esse trabalho, até para também não correrem riscos de contágio. Esses grupos, contudo, podem auxiliar não somente a nós, no Arsenal, mas a tantas outras instituições que continuam realizando seu trabalho', ressaltou”.


Muitos registros na experiência dos que lidam com a população de rua e na história levam à constatação da falácia dos argumentos do livro que reforçam as posições políticas de condenação à caridade. Aqueles cuja casa é a rua, eram antes chamados de “sofredor de rua”, uma lembrança do servo sofredor do profeta Isaías: Foi desprezado e rejeitado pelos homens, um homem de dores e experimentado no sofrimento. Como alguém de quem os homens escondem o rosto, foi desprezado, e nós não o tínhamos em estima. (Isaías 53:3). No entanto, não ficaram somente os religiosos a tratar destes que se viram obrigados a fazer da rua sua morada, a eles se juntaram muitos outros. O trabalho dos bem aventurados não os fizeram se livrar desse sofrimento na sua vida, pois o problema estrutural de fundo e origem permanece, para quem há muito passou a ser conhecido como “povo de rua”. Uma "qualificação" atual e pautada em conceitos que dá sentido a pessoas em situação de rua: "Povo - quis reforçar a consciência de grupo; morador - quis expressar a negação de um direito”.(6)

Sabe-se que o espaço da rua é aceito como morada, não, como diz, cinicamente a Sra. Doria, por uma atração que a rua exerce nessas pessoas; uma opção. Ao contrário disso, por falta de opção, pelo estado pleno de miséria ignorada pelo poder público, ou por continuar sendo tratada de modo desumano como faz a responsável pelo Fundo Social do Estado de São Paulo, que deveria amparar, acolher e tentar solucionar o problema. Um fator desqualificante e desumanizador para quem já caminha para um estado pleno de miséria, de precariedade material e espiritual. Até mesmo os relacionamentos travados entre os que têm a rua como casa são precários, pois dependentes de estratégias de sobrevivência, se desfazem nessa busca contínua de meios para não perecer, seja com bicos ou ajuda social, sendo que mesmo essa ajuda é agora vista como desnecessária: “'A pessoa quer receber comida, roupa, uma ajuda, e não quer nenhuma responsabilidade. Isso está muito errado. Se a gente quer viver em um país…', afirma Bia Doria, interrompida por Val, que diz 'todo mundo tem suas responsabilidades'. Em tempo: a platinada socialite Val Marchiori ficou conhecida pela participação no reality show 'Mulheres Ricas', na Rede Bandeirantes de Televisão. Recentemente Marchiori foi condenada em R$ 10 mil como indenização à cantora Ludmilla por ofensas racistas”. Não pararam aí as esdrúxulas afirmações. No dia 28 de agosto de 2020, afirmaria, em uma reunião do programa de voluntariado da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), que pessoas em situação de rua são “preguiçosas”:  "'Ou é a bebida, ou é desamor em casa, ou é algum problema químico e as pessoas vão para a rua. E também tem os preguiçosos que a gente sabe, mas a gente não pode falar, tem que só ajudar', disse Bia Doria. A declaração foi dada quando Bia Doria detalhava as ações que lidera da Campanha do Inverno”.(7)

Trata-se de indivíduos impossibilitados de pertencer a uma ordem social conforme querem desenhar esses agentes governamentais e outros setores da sociedade, uma ordem social em que, como afirma Nascimento prevalece a nomeada cultura do narcisismo, com um indivíduo que se apresenta auto-suficente, responsável por conquistas e fracassos pessoais, a exemplo do trecheiro que, enquadrado como um ser absolutamente desfiliado "só pertence a si mesmo por não se inserir em coletivo algum. Permeados por conflitos de toda natureza, seja no núcleo familiar, seja nas relações sociais, a errância parece representar a última alternativa que lhes resta para não sucumbir num sedentarismo que os aprisiona à miséria, à exploração extrema, à dominação absoluta, à frustração e ao sofrimento". Ao contrário de ser resultado da “preguiça”, estar na rua pode ter vários sentidos e escapa a uma classificação homogênea e reducionista como na visão das socialites citadas. 

A rua pode ter dois sentidos: o de se constituir num abrigo para os que, sem recurso, dormem circunstancialmente sob marquises de lojas, viadutos ou bancos de jardim ou pode constituir-se em um modo de vida, para os que já têm na rua o seu hábitat e que estabelecem com ela uma complexa rede de relações: ficar na rua - circunstancialmente, estar – recentemente e ser – permanentemente na rua.(8)

É do mesmo sistema econômico gerador das alardeadas chances de prosperidade profissional que são gerados os excluídos, os que perambulam sem rumo pelas estradas e ruas buscando qualquer forma de sobrevivência, afirma Marcelo Abreu (2020, p. 37). Fenômeno que no Brasil é exemplificado pelos “trecheiros”. Em seu artigo “A atração do movimento”,(9) Abreu apresenta uma síntese do pensamento do professor e psicólogo Eurípedes Costa do Nascimento, da Unesp, bem como de José Sterza Justo sobre os diferentes tipos de nomandismo. 


Os dois abordam o tema a partir da perspectiva da psicologia e dividem os errantes em três subgrupos distintos: os “itinerantes”, que se encontram em trânsito e migram de uma cidade a outra em busca de trabalho, sem se deslocar a pé pelas estradas; os “trecheiros”, que circulam pelas rodovias a pé, de cidade em cidade, sobrevivendo de trabalhos temporários e de eventuais ajudas filantrópicas;  e os “andarilhos de estrada, população composta pelos que vivem perambulando exclusivamente pelos acostamentos das estradas, sem destino, isolados e distantes de qualquer contato com as redes de assistência social, preferindo o estilo de vida solitário. Representam, todos eles, faces excluídas do capitalismo. 

No caso dos andarilhos solitários, escrevem os autores, eles rompem com as formas de vidas baseadas em vínculos estáveis. O andarilho “deserta da família, de emprego e domicílio fixos, de relacionamentos contínuos, podendo até mesmo desertar da razão, nos casos em que o sentido da realidade é invadido por delírios”.  


Dados oficiais (e subnotificados) demonstram que a população de rua não pára de crescer na capital paulista. Essa situação, afirma com conhecimento da realidade, o padre Julio Lancellotti, piorou na pandemia do coronavírus. "Muitas famílias estão sendo despejadas porque não estão conseguindo pagar o aluguel”. O censo mais recente da prefeitura mostrou que o número de Sem Teto na cidade chegou a 24.344 pessoas em 2019 - alta de 53% em quatro anos.


Ser da rua é quando a rua entra no íntimo da pessoa, não existe mais diferença, a rua faz parte do existir da formulação de sentido. Alem disto, é o lugar de dormir e comer, do prazer, de relações que acontecem muitos casos por intermédio do álcool e da droga. De alguma forma servindo como complemento do processo de sobrevivência e quanto mais tempo ficar na rua o perecimento afeta seu estado "físico e mental" […] Em todos os casos, quando a rua é a casa, acontece uma ação que BERGER descreve como "reservatório histórico de sentido", ou seja, durante a trajetória pessoal houve o acúmulo de experiência, armazenada na consciência, para que em um dado momento da vida, quando deparar-se com fatos semelhantes tem-se guardado um "acervo" que o possibilite de lidar com fatos idênticos. É caso da população de rua quando passa a sentir-se pertencer ao novo espaço de relações. Utiliza-se de seu reservatório histórico de sentido para recriar na rua um lar. Pois sem um lugar para ficar aumenta-se o isolamento social […] Embora seja o novo espaço de morada, o qual irá ficar por um tempo indeterminado, o lugar (a rua), é para a pessoa um não lugar. Porque, o espaço público não é a casa, é um espaço estranho de muitos perigos, e até saber os seus mecanismos de relações e sobrevivência, levará um tempo de adaptação. Porém, mesmo tendo dominado estes mecanismos, a rua será um não lugar. Enfim, ao mesmo tempo, que a rua é um não lugar, também, pode ser um lugar de relações. Partindo do espaço de relação surge a atuação da pastoral; aproximando, orando e criando espaços de diálogo e convivência entre mulheres e homens. Portanto, são pessoas que vão para a rua e passam por um declínio gradual que aos poucos vai desconfigurando a identidade até tomar uma identidade social de rua. Devido a esta preocupação desde o ano 2000 busca-se uma maneira de saber quem é a população de rua e quais as suas características principais.(10)

 

Em São Paulo, segundo Nilda Cândido (2006), as pastorais sociais são uma referência para o trabalho com o povo empobrecido ou em estado de miséria, remontando esse trabalho aos anos 1950. Inicialmente uma atividade para o exercício das práticas cristãs e apoio ao povo pobre. Desde a reflexão pastoral expressa no documento de Puebla (Puebla de los Angeles, México, 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979), o trabalho das irmãs Oblatas na Arquidiocese de São Paulo é acolhido pelo Cardeal Dom Paulo Eravisto Arns, quando surgem vários outros projetos na mesma direção:

 

Como forma de trabalho, as irmãs Oblatas de São Bento tiveram uma espiritualidade Beneditina de trabalhar e orar junto ao povo de rua, porém percebiam que as pessoas que se encontravam na rua, também tinham uma necessidade de um espaço para a oração. Perante tal situação, Dom Paulo Evaristo Arns junto ao pároco da Igreja do Largo Santa Efigênia viabilizou um espaço para a atividade espiritual, naquele momento, no salão da Igreja, eram realizados os momentos de oração da comunidade que nascia junto ao povo de rua. Prontamente, no final dos anos 90, foi concretizado por meio do Cardeal Arns, um espaço definitivo para realização dos momentos de orações e atividades comunitárias, o espaço, atualmente, está localizado na região da Luz, bairro onde se concentra um grande número de pessoas em situação de rua, mulheres marginalizadas, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social e vários comerciantes da área informal. Estabeleceu-se a Casa de Oração do povo de Rua e, simultaneamente, o vicariato do Povo de Rua coordenado pelo padre Julio Lancellotti.(11)


Muitas críticas de pessoas engajadas na assistência aos moradores de rua surgiram em face do “bate-papo” entre as socialites e foram veiculadas em reportagem do Jornal Folha de São Paulo: Segundo a referida matéria(12), na conversa, a mulher do governador diz que não se deve dar marmita aos moradores de rua porque eles precisariam saber que têm que sair da rua, segundo ela, um lugar confortável: "Não é correto você chegar lá na rua e dar marmita, porque a pessoa tem que se conscientizar de que ela tem que sair da rua. A rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua”. Na mesma entrevista, Bia Doria ainda afirma que "a pessoa quer receber comida, roupa, uma ajuda, e não quer nenhuma responsabilidade” e continua: "Se a gente quer viver em um país...", afirma Bia Doria na entrevista, ao que Marchiori acrescenta: "Todo mundo tem suas responsabilidades”. A partir desses comentários maldosos, o padre Julio Lancellotti lança a seguinte questão: ”Eu gostaria de ver depois disso tudo se as duas dormiriam num abrigo público só para mulheres de rua para elas mesmas dizerem o que se passa nesses espaços".

Símbolo da Pastoral do Povo de Rua, em São Paulo, o padre Júlio Lancellotti disse que as palavras de Bia Doria e Val Marchiori revelam um simplismo frio e intencional para reforçar "um pensamento elitista, racista, discriminatório e deletério sobre pessoas que estão na margem da sociedade”. Com trinta e cinco de seus setenta e um anos à frente de ações sociais voltadas a pessoas em situação de rua, Lancellotti afirma que os sem-teto não escolheram a calçada da cidade por gosto: "A rua se apresentou como a única opção para a maioria deles. E viver na rua é sobreviver. Não existe acesso à água potável, instalação sanitária e nenhuma garantia de segurança e dignidade”. 

Para Erika Hilton, (Psol SP), as duas mulheres são alienadas em relação à cidade onde vivem; sua bancada analisa uma interpelação jurídica pelas declarações que considera racistas: "A socialite deveria saber que os abrigos não têm vagas para todo mundo, que eles separam os casais, não dispõem de infraestrutura e estigmatizam pessoas que se declaram LGBTs". Acrescenta: "O que a gestora do Fundo Social deveria discutir era qual política pública precisa ser feita para atingir todos os vulneráveis.” Para Yakatherine Menendez, que criou há quatro anos o "Anjos da Rua", grupo que entrega marmitas no centro de São Paulo: "não é um prato de comida que vai fazer uma pessoa se manter na rua". "A maioria daquelas pessoas não está lá por escolha, mas por motivos muito mais complexos”. 


Fortaleza, agosto de 2020.


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1) Nascimento, E. C. do. Errâncias e errantes: um estudo sobre a mobilidade do sujeito e o uso de bebidas alcoólicas na contemporaneidade. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Assis, 2004, p. 22-23.

2) Trigo, L. Uma Tese polêmica sobre os efeitos colaterais da caridade. Disponível em: <https://g1.globo.com/pop-arte/blog/luciano-trigo/noticia/2019/10/23/uma-tese-polemica-sobre-os-efeitos-colaterais-da-caridade.ghtml>. Acesso em: 5 de julho de 2020.

3) Disponível em: <https://noticias.cancaonova.com/igreja/rua-nao-e-lugar-para-morar-muito-menos-para-morrer-diz-padre/>. Acesso em: 5 de julho de 2020.

4) Rezende, S. Pastor Henrique Vieira: "A religião é um atraso quando tomada pelo fundamentalismo e pelo extremismo.” Disponível em: <https://odia.ig.com.br/colunas/informe-do-dia/2020/07/5962511-pastor-henrique-vieira---a-religiao-e-um-atraso-quando-tomada-por-extremismo.html>. Acesso em agosto de 2020.

5) Doações são indispensáveis para as ações da Igreja em favor das pessoas em situação de rua. Disponível em: <http://osaopaulo.com.br/tags/povo-da-rua#gsc.tab=0>. Acesso em agosto de 2020.

6) Costa, 2005 apud Candido, Nilda de Assis. Ação pastoral da Igreja Católica Apostólica Romana face ao direito à inserção social de pessoas em situação de rua. Dissertação (Mestrado) – Universidade Metodista de São Paulo, Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião, curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo, 2006, p. 44. 

7) Bia Doria diz em evento que pessoas em situação de rua são “preguiçosas”. Disponível em: <https://www.brasil247.com/regionais/sudeste/bia-doria-diz-em-evento-que-pessoas-em-situacao-de-rua-sao-preguicosas>. Acesso em: agosto de 2020.

8) Vieira, 2004, apud Candido, Nilda de Assis. Ação pastoral da Igreja Católica Apostólica Romana face ao direito à inserção social de pessoas em situação de rua. Dissertação (Mestrado) – Universidade Metodista de São Paulo, Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião, curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo, 2006, p. 46. 

9)  Abreu, M. A atração do movimento. Continente Multicultural. Pernambuco: Cepe Editora. Ano XX, n. 235, jul. 2020, p. 32-43.

10) Cândido, N. de A. Ação pastoral da Igreja Católica Apostólica Romana face ao direito à inserção social de pessoas em situação de rua. Dissertação (Mestrado) – Universidade Metodista de São Paulo, Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião, curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo, 2006, p. 47-48.

11) Vieira (2004), apud Candido, Nilda de Assis. Ação pastoral da Igreja Católica Apostólica Romana face ao direito à inserção social de pessoas em situação de rua. Dissertação (Mestrado) – Universidade Metodista de São Paulo, Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião, curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo, 2006, p. 51-52.

12) Maia, D. Declaração de Bia Doria sobre moradores de rua atrai pedidos por sua saída do Fundo Social de SP. Consultado em 5 de julho de 2020: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/07/declaracao-de-bia-doria-sobre-moradores-de-rua-atrai-pedidos-por-sua-saida-do-fundo-social-de-sp.shtml



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