Foto: MAHMUD HAMS / AFP
A terra nos é estreita(1)
A terra nos é estreita. Ela nos encurrala no último desfiladeiro
E nós nos despimos dos membros
Para passar. A terra nos espreme. Fôssemos nós o seu trigo para morrer e ressuscitar.
Fosse ela a nossa mãe para se compadecer de nós.
Fôssemos nós as imagens dos rochedos
que o nosso sonho levará como espelhos.
Vimos o rosto de quem, na derradeira defesa da alma,
o último de nós matará. Choramos pela festa dos seus filhos e vimos o rosto
Dos que despenham nossos filhos pela janela deste último espaço.
Espelhos que a nossa estrela polirá.
Para onde irmos após a última fronteira?
Para onde voarão os pássaros após o último céu?
Onde dormirão as plantas após o último vento?
Escreveremos nossos nomes com vapor
carmim, cortaremos a mão do canto para que nossa carne o complete.
Aqui morreremos. No último desfiladeiro.
Aqui ou aqui... plantará oliveiras
Nosso sangue.
Mahmud Darwich
Dois povos, dois países, duas religiões e uma vida entre guerras. Como fala o poeta no texto em epígrafe, Palestina, terra estreita que encurrala e, pelo braço pesado dos algozes, vira um desfiladeiro onde morrem seus filhos. Assim se define a situação em Gaza e na Cisjordânia, redesenhadas, como hoje se conhece, perdeu terreno para Israel a partir do que se concebeu nos bancos da Organização das Nações Unidas (ONU) há mais de sessenta anos.
Quando naquela conjuntura se deliberou pela partilha do ex-território britânico, com 33 votos a favor e 10 contrários, previa-se o surgimento de dois Estados paralelos na Palestina, um árabe e outro judeu, o que, presumidamente, traria por fim a paz à região. O plano de partilha das terras hoje ocupadas por judeus e palestinos significou, antes de uma sonhada paz duradoura, o começo de uma sequência de guerras marcando a vida (e a morte) dos dois povos. No tempo presente, a nova guerra é contra a pandemia do covid-19. Como afirmou Samah Jabr, médica psiquiátrica em Jerusalem, os palestinos estão vivendo um novo Apartheid, nesse caso, pode-se acrescentar à fala de Jabr, um apartheid que significa um iminente genocídio contra o povo palestino: "Israel está recebendo elogios e vem impressionando o mundo por ser o país líder em termos de vacinação. Em paralelo a isso, estão dificultando a obtenção de vacinas por palestinos. Houve atrasos desnecessários para entregar 22 mil doses para Gaza e, na Cisjordânia, poucas vacinas foram distribuídas. Estamos numa situação de apartheid”.(2) Igual diagnóstico é verbalizado pelo parlamentar palestino Mustafa Barghouti, membro do Conselho Legislativo, espécie de parlamento que reúne representantes dos territórios sob jurisdição da Autoridade Nacional Palestina (ANP): Israel executa "apartheid médico" ao impedir vacinação de palestinos.
A esperança (ou ilusão) de uma atitude mais humanizada por parte de Israel para com os palestinos em consequência da pandemia durou pouco. Em tempos tão terríveis, com a pandemia como tragédia ampliada aos povos em terras já atingidas pela guerra e inóspitas para seus cidadãos; era esperada, no caso dos dois países vizinhos, a possibilidade de unir esforços e mitigar os efeitos da pandemia por um bem comum: a preservação de vidas. No início da pandemia foi possível identificar ações de coordenação conjunta nos dois lados do muro que separa os dois povos. Para que fosse medido o efeito da pandemia sobre os dois grupos populacionais procedeu-se o monitoramento conjunto de ambas as populações. A colaboração entre a Autoridade Palestina e o Estado de Israel foi fundamental e ocorreu, como desejado, em nome do bem-estar dos cidadãos da região, judeus e palestinos:
“A saúde de todos os cidadãos da região está acima de tudo, e é nossa principal prioridade. Continuaremos a agir em colaboração com a Autoridade Palestina em um esforço conjunto", diz o major Yotam Shefer, chefe do departamento internacional da administração civil israelense na Cisjordânia […] Agentes de saúde de ambos os locais estão realizando atividades mútuas para conscientizar a população sobre o perigo da doença […] Segundo uma pesquisa do Instituto Truman para Paz da Universidade Hebraica de Jerusalém, 63% dos israelenses afirmam que Israel deve ajudar os palestinos durante a crise do coronavírus. A maioria dos israelenses acredita que, quando houver necessidade, o governo deve traçar medidas preventivas para ajudar os palestinos durante a epidemia da Covid-19[…](3)
Membros do governo de Israel assinalam que não têm responsabilidade sobre o que ocorre na Palestina porque esse é um problema para a Autoridade Palestina resolver. Entretanto, a realidade é outra pois como afirma Samah Jabr: "A Palestina tem uma autoridade dependente, não é um país soberano, e Israel coloca condições difíceis para os palestinos importarem as vacinas do exterior. Há uma realidade de ocupação. O artigo 56º da IV Convenção de Genebra [1950] obriga Israel, ou qualquer potência ocupante, a se responsabilizar pela nação ocupada quando há uma epidemia. Israel reivindica ser um benfeitor caridoso, mas é uma caridade falsa”. Vivendo em territórios ocupados, cinco milhões de palestinos se vêem distante do acesso à imunização — os Sem Vacina. A causa dessa tragédia vem de Israel, que, desde o início da pandemia, dificultou o envio dos kits de testagem aos seus territórios, Gaza e Cisjordânia. Tal procedimento se estenderia à obtenção de vacinas. A médica Samah Jabr reafirma a negligência continuada das autoridades de Israel quanto a adoção das medidas necessárias para lidar com a pandemia também nos territórios ocupados: "E não está assumindo nenhuma responsabilidade para fornecer serviços de saúde a estes grupos. Nós não temos controle sobre fronteiras, não podemos decidir quando abrir ou fechar os aeroportos ou se outras pessoas devem vir aos [nossos] territórios. Em Gaza, a situação é ainda pior, porque não há eletricidade constante, 95% da água não é potável — é salgada ou suja. A pandemia se coloca sobre condições sanitárias já frágeis”.
A Autoridade Nacional Palestina (ANP) já havia denunciado o bloqueio por Israel da entrada de vacinas provenientes da Rússia, postura que, segundo Mustafa Barghouti, membro do Conselho Legislativo, significa a continuidade de uma política de discriminação histórica que não mudou sequer em meio à pandemia: “Começaram a imunizar qualquer um com um documento israelense mas ignoraram os palestinos completamente. Temos milhões de pessoas vacinadas e 5,3 milhões de palestinos abandonados. Gradualmente a doença vai se tornar muito mais proeminente nos territórios palestinos. É com isso que estamos lidando e tentando convencer o mundo”.(4)
O modelo político israelense para os palestinos na pandemia é refutado pela Organização das Nações Unidas, (ONU), pois sabe que o dever da potência ocupante é fornecer vacinas em conformidade com o direito humanitário internacional, também previsto nos Regulamentos de Haia de 1907. Segundo Barghouti, as doses cedidas à Autoridade Nacional Palestina só foram disponibilizadas em resposta à repercussão internacional, a exemplo de pedidos da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Sob pressão, deram apenas 2 mil vacinas enquanto tem 14 milhões de doses. A limpeza étnica é uma política oficial e uma prática comum de Israel”.(5)
A Anistia Internacional também condenou a decisão do governo israelense de suprimir a vacinação dos palestinos. Para a ONG que defende direitos humanos, a medida do Estado sionista evidencia uma discriminação institucionalizada que define sua política para os palestinos.
Há pouca ou nenhuma preocupação de Israel com a saúde pública quando se leva em conta os palestinos. Ao incluir trabalhadores nos grupos que devem ser vacinados, o fazem por motivos estritamente econômicos, para favorecer as cadeias produtivas, pois dependem em muito dos trabalhadores palestinos. Em Israel são 16 parques industriais na Cisjordânia e na Jerusalém Oriental. São mil fábricas e 21 mil trabalhadores. Há ainda outros palestinos com permissão de trabalho em fazendas ou na construção de assentamentos e dentro nas fronteiras israelenses originais. Vacina somente para esses, os demais palestinos que permaneçam do outro lado do muro da vergonha que sejam entregues à própria (falta de) sorte, pouco importa aos genocidas! Como afirmou Mustafa Barghouti(6), está em curso uma limpeza étnica, política oficial e prática comum de Israel, pois assim a Cisjordânia pode ser mais facilmente anexada a Israel.
Antonio C. R. Tupinambá
Fortaleza, 14 de março de 2021.
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1) Darwich, Mahmud. A terra nos é estreita e outros poemas. Tradução do árabe por Paulo Daniel Farah. São Paulo: Edições Bibliaspa, 2012.
2) Sakamoto, L. Sem vacina, vivemos apartheid sanitário, diz liderança médica na Palestina. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2021/03/14/sem-vacinas-palestina-vive-um-apartheid-sanitario-diz-medica.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola>. Acesso em: 14 mar. 2021.
3) Palestinos e israelenses se unem e realizam ações conjuntas contra o coronavírus. 20 de março de 2020. Disponível em: <https://istoe.com.br/palestinos-e-israelenses-se-unem-e-realizam-acoes-conjuntas-contra-o-coronavirus/>. Acesso em: julho de 2020.
4) Sudré L. Israel executa “apartheid médico” ao impedir vacinação de palestinos, acusa político. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/02/18/israel-executa-apartheid-medico-ao-impedir-vacinacao-de-palestinos-acusa-politico>. Acesso em: Acesso em: 14 mar. 2021.
5) idem.
6) ibdem.
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