POLIS

POLIS
O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quinta-feira, 25 de março de 2021

ICONOCLASMO E ANTI-DEMOCRACIA(1)




                Budas de Bamiyan — Afeganistão




Março de 2001, há exatos vinte anos duas manchetes vindas do Oriente Médio chocam o mundo: 1) Duas estátuas gigantes de Buda de Bamiyan, patrimônio cultural da humanidade, são destruídas pelos Talibãs no Afeganistão, 2) O ministro de Estado Shahbaz Bhatti é assassinado em Islamabad, capital do Paquistão por um grupo dos talibãs com ligação à Al-Qaeda.

Em 2011, dez anos após os dois tristes acontecimentos, Dirk Kurbjuweit no artigo Deus não é político(2), escreve sobre Deus e política, referindo-se à Alemanha. Suas ideias podem, contudo, servir para compreender a realidade político-religiosa de outras nações. Para o autor, a pergunta sobre a pertinência de qualquer religião a um país é diferente da pergunta sobre sua pertinência a um governo. Se determinado credo faz parte de um país é uma coisa; outra é se faz parte do governo daquele país. Essa inclusão da Igreja no Estado não faz mais sentido nos dias atuais. O desenvolvimento da democracia trouxe a necessária separação entre Estado e religião. Descartes e Spinoza questionavam o poder irrestrito de Deus: o primeiro ao separar o mundo material do espiritual; o segundo, ao reconhecer Deus de forma tão poderosa que seria demasiado para coisas mundanas. Kurbjuweit descreve em seu artigo, como um absurdo o fato de categorias religiosas ainda desempenharem papel de relevância no discurso político formal. Para ele não importa a religião ou sua ausência para que uma pessoa seja parte fundamental de uma democracia verdadeira.

O cidadão deve aceitar a separação entre Estado e religião, respeitar os valores e as leis do Estado a que pertence. Professor da Universidade Federal Fluminense, José Antonio Sepúlveda afirma não haver laicidade sem democracia nem democracia sem laicidade; o Estado laico defende o direito de se ter religião. "Ele [o Estado] respeita todas as crenças religiosas, desde que não atentem contra a ordem pública. Cabe ao Estado interferir e punir os casos de violência por motivo religioso”.(3) A soberania no Estado é, segundo Rousseau, o desejo de todos, que se origina no seu povo. Eleições possibilitam a mistura desses desejos, o que significa democratização e supera qualquer outra forma de Estado, podendo resultar na convivência de todos os temperamentos do seu povo, sejam eles fortes ou moderados, pessoas religiosas ou não-religiosas. 


A vontade comum de Rousseau encontra sua expressão no Estado, a vontade do soberano, que é chamado de povo. Ele elege o Parlamento de cujas leis o Estado é formado. E o que são eleições? As eleições são eventos para o cultivo de temperamentos e opiniões. Essa é a vantagem inestimável da soberania do povo e, portanto, da democracia sobre todas as outras formas de governo. Quando dezenas de milhões de pessoas dão seus votos, misturam-se temperamentos, de temperamento explosivo e sonolento, duros e gentis, religiosos e não religiosos, e opiniões de todos os tipos. Normalmente, o resultado é um Estado menos tenso. Quando Deus governa de cima, seu temperamento, sua opinião, são a autoridade final. Infelizmente, ninguém sabe exatamente o que ele sente e pensa. A casta sacerdotal obtém muito poder de esclarecimento com isso. Poder de interpretação, hoje são cardeais, bispos, imãs, mas também políticos religiosos e publicitários. A formação de opiniões nas religiões ocorre amplamente de cima para baixo, por exemplo, por meio de dogmas. Não é democrático. Além disso, o temperamento religioso não está livre de tensões. A religião vem do êxtase, é sobre grandes sentimentos, amor e ódio, sobre o próprio e o outro. Mitos não podem ser provados e, portanto, difíceis de conciliar, acredite ou não. Frequentemente, trata-se de uma demarcação nítida, meu Deus, contra o seu. Por esta razão, os conflitos de base religiosa são com grande frequência particularmente amargos, as guerras muito prolongadas, por exemplo a Guerra dos Trinta Anos, a da Irlanda do Norte ou o conflito árabe-israelense.(4)


O compartilhamento e aceitação da diversidade de opinião evita a barbárie que pode se originar do terror fundamentalista patrocinado por fanáticos e iconoclastas, que também ataca pessoas, ambientes sagrados e rituais. Há vinte anos, Afeganistão e  Paquistão viveram ondas de horror com atos terroristas que resultaram na destruição patrimonial e humana. De um lado iconolatria e do outro extremismo religioso fundamentando assassínio. 


No mundo do Islã, a interdição da representação se opõe à idolatria, em particular ao culto dos ídolos em pedras, encontrados por arqueólogos, que testam uma cultura nômade de povos que viviam do pastoreio e criação. A interdição de toda representação se estende até a pessoa do Profeta. São conhecidos os episódios mais recentes do iconoclasmo, através da destruição de estátuas que antecederam o surgimento do Islã, conservadas em um museu de Caboul, promovida pelos Talibãs no Afeganistão. Foram amplamente divulgadas na mídia a destruição das estátuas gigantes de Buddha em Bamiyan.(5)


Ato símbolo da intolerância religiosa, há exatos vinte anos, as duas estátuas gigantes de Buda, de mais de 1,5 mil anos, foram dinamitadas a mando do governo Talibã e do seu líder Mullah Mohammed Omar. Um ato de iconoclastia deliberada que deveria também contribuir com a destruição da cultura afegã. "Após a destruição dos Budas, os nichos que abrigavam as duas estátuas permaneceram vazios. O local contém vários santuários budistas, além de construções do período islâmico”.(6) Ao ataque iconoclástico afegão se somou o assassinato do ministro para Assuntos de Minoria, Shahbaz Bhatti em Islamabad, capital do Paquistão. Os dois terríveis atos terroristas anteciparam outros de grande repercussão: os atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA e o início da Segunda Guerra da região, quando mesmo sem aprovação da Organização das Nações Unidas, os Estados Unidos invadiram o Afeganistão em outubro de 2001. O objetivo da invasão seria encontrar o terrorista Osama bin Laden e seus apoiadores que se instalaram naquele país. 

O ministro paquistanês de apenas 42 anos, assassinado por terroristas ligados à al-Qaeda, era o único cristão no governo paquistanês e pedia reformas à legislação sobre blasfêmia, que prevê sentença de morte a quem insultar o Islã. O eco da política oficial e de suas vozes que querem representar segmentos religiosos fundamentalistas destroem os vestígios de uma sociedade que no passado, como se tem conhecimento, era bem mais tolerante. Inclusive no Afeganistão dos anos 1960, respirava-se mais liberdade e se testemunhava um estilo de vida completamente diferente daquele que se instalou depois da invasão russa e da posterior chegada dos talibãs.(7) Os fatos que foram registrados há dez anos, uma década após a invasão estadunidense de países no Oriente Médio, que se seguiu à não menos predatória invasão do Afeganistão pela Rússia, observa-se que ainda se espalha pelo mundo o mesmo retrocesso, seja pelos atos de países invasores ou por líderes extremistas que se dizem dotados de inspiração divina para guiar suas ações. Fanáticos de quem já se sabe muito bem, são corresponsáveis pelos desastres políticos e humanitários que há décadas castigam povos e nações. 


Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá

Fortaleza, março de 2021.


____________________________________

1) A partir de texto originalmente escrito em 2011 com o mesmo título “Iconoclasmo e anti-democracia”, para registrar os 10 anos do ataque iconoclástico no Afeganistão.

2) Kurbjuweit, D. Gott ist nicht Politiker. Der Spiegel, 4 de abril de 2011. Disponível em: <https://www.spiegel.de/spiegel/print/d-77855793.html>. Acesso em: outubro de 2011.

3) Neves, J. "Não há laicidade sem democracia nem democracia sem laicidade”. Disponível em: <https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/acontece-na-epsjv/nao-ha-laicidade-sem-democracia-nem-democracia-sem-laicidade>. Acesso em: abr. 2019.

4) Kurbjuweit, D. Gott ist nicht Politiker. Der Spiegel, 4 de abril de 2011. Disponível em: <https://www.spiegel.de/spiegel/print/d-77855793.html>. Acesso em: outubro de 2011, p. 124.

5) Disponível em: <https://www.sergioprata.com.br/port/iconoclasmo.html>. Acesso em: 2011.

6) Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2011/03/1368341-onu-lembra-10-anos-da-destruicao-das-estatuas-de-buda-no-afeganistao-portugues>. Acesso em: abr. 2011.

7) Europa? Não, este é o Afeganistão antes da Era talibã. Disponível em: <https://observador.pt/2016/01/27/europa-nao-afeganistao-da-era-taliba-nao-mexer/>. Acesso em: mar. 2021.

Nenhum comentário:

Postar um comentário