POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

O RACISMO DE CADA DIA*





                                                        Foto: Agustin Paullier/AFP




…Aqueles que professam favorecer a liberdade e, no entanto, depreciam a agitação, são homens que querem colheitas sem arar o solo, querem chuva sem trovões e raios. Eles querem o oceano sem o terrível rugido de suas muitas águas.
Essa luta pode ser moral, ou física, e pode ser moral e física, mas deve ser uma luta. O poder não concede nada sem uma demanda. Ele nunca fez e nunca fará. Descubra exatamente a que qualquer pessoa se submete silenciosamente e você descobriu a medida exata de injustiça e injustiça que lhes será imposta, e elas continuarão até que sofram resistência com palavras ou lutas, ou com ambos. Os limites dos tiranos são prescritos pela resistência daqueles a quem eles oprimem… Se algum dia nos libertarmos das opressões e dos erros cometidos sobre nós, devemos pagar por essa libertação. Devemos fazer isso pelo trabalho, pelo sofrimento, pelo sacrifício e, se necessário, com nossas vidas e com a vida dos outros. (Frederick Douglass, 1857. Emancipação na Índia Ocidental)1.


Ruby Bridges nasceu em 1954, ano em que o Tribunal Constitucional norte-americano  determinou oficialmente o fim da discriminação escolar baseada na raça. A partir daí, negros e brancos deveriam ter acesso ao estudo nas mesmas escolas. A menina Ruby parece ter nascido nesse ano para se incumbir da hercúlea tarefa que se avizinhava: mostrar aos seus compatriotas que era possível negros e brancos viverem juntos, em pé de igualdade. No entanto,  protegida por policiais, sua histórica escalada  às escadarias da escola só para brancos, a William Frantz Elementary School em 1960 para frequentá-la como primeira menina negra não resultou, como se esperava, em passos firmes em direção ao fim do famigerado racismo que ainda hoje grassa na sociedade norteamericana.
Louisiana, anos 1960 experimentava o início do processo de “dessegregação”, juntamente com vários outros eventos e movimentos de luta por direitos civis dos negros estadunidenses. A recusa de Rosa Parks em 1955 de ceder seu lugar em um coletivo para uma mulher branca resultou em sua prisão, mas seu gesto havia sido marcante para a sociedade norte-americana conservadora e segregacionista. Não esqueçamos dos discursos inflamados de um dos mais influentes líderes para o combate ao racismo e pela garantia de direitos civis, Martin Luther King. Tampouco podemos esquecer a saga de Malcom X com seus discursos inflamados e radicais que despertavam na audiência a autoestima do afroamericano, pondo abaixo o conceito de supremacia branca, dominante em várias regiões naqueles anos de chumbo do racismo e do poderio branco.
Malcom X foi responsável ou inspiração para o posterior surgimento de novos grupos e lideranças que lutavam, sem concessões, para que a causa dos direitos civis dos negros continuasse na pauta do dia, mantendo a mesma ideia em despertar autoestima e continuar sua recusa visceral  do conceito e das práticas funestas da supremacia branca que dominava várias regiões entre os anos 1950 e 1960, inclusive com a volta de manifestações da Ku Klux Klan. Foi após a promulgação da lei contra a segregação nas escolas públicas que permitiu Ruby subir as escadarias de uma delas, que surgiram novas ações violentas da organização criminosa pró-supremacia branca. 
O programa radical de Stokely Carmichael, ativista do Black Power2 e porta-voz dos Panteras Negras3, foi inspirado, sobretudo, pelo nacionalismo negro de Malcolm X:  Carmichael foi representante de uma militância afro-americana em meados da década de 1960 e recusava qualquer luta pela integração do negro à sociedade norte-americana (branca), dando prioridade ao cumprimento de agendas político-identitárias negras radicais cada vez mais transnacionais. Não compactuava com o reformismo de Martin Luther King a favor da inclusão dos negros nos marcos da cidadania norteamericana. "Carmichael e o Black Power voltaram-se, então, às reivindicações separatistas de Malcolm X por autodeterminação e poder político para os afroamericanos e suas comunidades por 'quaisquer meios necessários’.4”

O racismo nunca erradicado, e desde então  recrudescente e recorrente no cotidiano dos EUA  já não se deixa esconder facilmente. As diferentes mídias registram barbaridades que se pensava esgotadas, uma vez inadmissíveis na, dita, maior  "democracia" do planeta. Os episódios extremos de racismo que se acumulam nos mais diversos setores da vida norteamericana são revelados a seco pelas mídias sociais e se espalham rapidamente pelo mundo causando perplexidade e revelando a face brutal e vergonhosa do Tio Sam, que se queria oculta para  continuar agindo de forma truculenta. Nem mesmo a eleição de Barack Obama em novembro de 2008, o primeiro presidente negro de toda a história dos EUA, representou o fim de um longo e árduo processo de luta  por emancipação dos afroamericanos; representou apenas um  passo conjuntural em direção a uma sonhada igualdade racial que ainda não chegou.

Entretanto, a história que se quer avivar hoje não se passou nos já distantes anos de 1950 ou 1960. George Floyd, de 40 anos, morreu asfixiado por um policial branco pressionando o joelho sobre seu pescoço. As imagens da barbárie são do dia 25 deste mês de maio de 2020 e são aviltantes, causando indignação por todo lado do planeta. Apesar dos apelos de George, sentindo que sua vida se esvaía ao ser completamente sufocado; o policial branco, impávido,  cumpriu sua sórdida tarefa de racista e  homicida: matou George. Seria o policial um membro da Ku Kux Klan ou apenas mais um policial eleitor de Trump que se considera investido da missão de tirar a vida de um semelhante?  A súplica de George para não ser morto, "Não consigo respirar” (I can’t breath), teve o mesmo som daquela em 2014 de Eric Gardner em Nova York, outro homem negro assassinado por um policial branco que não recebeu qualquer punição pelo crime. Ações dessa natureza são parte de um sistema de justiça racializado e que tem alvo certo. A violência policial é uma das principais causas de morte entre jovens nos Estados Unidos, onde, segundo estudos do Mapping Police Violence (Mapeando a violência policial), os negros têm três vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que os brancos. No Brasil, uma sociedade ainda mais violenta, temos um total de 75,4% de mortos de negros que representam 55% do total da população em decorrência de intervenção policial. No caso do Rio de Janeiro, os "negros contam com 23,5% mais chances de serem mortos do que o restante da população - número que salta para 147% se for considerada apenas a idade de 21 anos, quando há o pico de probabilidade.6"

A pandemia da covid-19 que impera no país não impediu que multidões saíssem às ruas de Minneapolis, cidade em que ocorreu o homicídio de Estado, para mostrar sua indignação face a essa cena explicita de racismo e brutalidade policial. Uma reafirmação da violência do Estado contra negros assente no discurso supremacista de  Donald Trump,  replicada nas ferozes atitudes  de seus eleitores segregacionistas, em um país que tem 40% de negros entre seus prisioneiros, ainda que representem apenas 13% da sua população total.

Quero dizer, senhor governador Wilson Witzel, que a sua polícia não matou só um jovem de 14 anos com um sonho e projetos, a sua política matou uma família completa, matou um pai, uma mãe e o João Pedro. Foi isso que a sua polícia fez com a minha vida.

Esses atos cruéis praticados contra minorias e grupos de cidadãos pobres em diferentes países não ocorrem como casualidade. Os fatos cotidianos de violência se repetem e guardam semelhanças nas novas formas de governo constituídas para destruir o que resta de humano e democrático nas nações. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Governos com viés fascista que pregam sua ideologia para as instituições e acolhem atitudes de igual tendência. Certamente não são todos os seus membros que se submetem a esse tipo de lavagem cerebral. As instituições são complexas e não se deixam homogeneizar facilmente, tampouco todo seu contingente precisa desenvolver traços perversos como querem seus mandatários. Mandatários esses que terminam por desenvolver tendências de repúdio a práticas que respeitem os direitos humanos, mesmo que isso signifique um processo de autossabotagem e autodestruição a longo prazo; difundir uma ideologia da indiferença, do ser anti-tudo que signifique respeito a diferenças, promoção de igualdade, fraternidade ou diminuição do profundo fosso social entre pobres e ricos, brancos (ou que se dizem brancos) e não brancos.
 Nos Estados Unidos, George Floyd, homem negro de 40 anos; no Brasil, João Pedro, menino negro de 14 anos. George  não foi acusado de qualquer crime , mas era negro. João Pedro  brincava em casa, dentro de sua casa; mas era pobre, negro e morava em uma favela.  No Complexo do Salgueiro no município fluminense de São Gonçalo foi atingido no peito, dentro de casa,  por um tiro de arma de fogo.  A repercussão internacional do caso Floyd reforça também no Brasil a luta local por justiça para casos como o de João Pedro. Em Minneapolis as ruas são ocupadas, prédios incendiados e milhares de cidadãos, não somente negros, reivindicam justiça, exigindo a prisão dos culpados pela tragédia que resultou na morte de George Floyd. A frase de George suplicando para que não o matassem “I can’t breathe” (Eu não consigo respirar) está sendo agora usada repetidamente nos protestos de rua em diferentes cidades. Em função do crescimento dos protestos, no dia 29, sexta-feira, Derek Chauvin, o policial que sufocou sua vitima até a morte foi detido, mas seus três colegas que participaram com ele da ação desastrosa continuam soltos. As manifestações atuais vêm mostrando outras cores. A multidão é composta por tons diferentes e em muitos casos compostas por maioria branca, o que quase não se via nos protestos da década de 1960 a que nos referíamos anteriormente.
No trilho dos crescentes eventos antirracismo nos Estados Unidos começaram a ocorrer noutros países, a exemplo do Brasil, manifestações mais organizadas em protesto pelos jovens negros mortos por policiais. No dia 31 de maio de 2020 a sede do governo do estado do Rio de Janeiro, o Palácio Guanabara, foi palco de uma delas. Vale lembrar que uma semana antes dos protestos do dia 31 já aconteciam manifestações em forma de ato online de dimensão nacional nas redes sociais. A esses atos virtuais organizados pela Coalizão Negra Por Direitos, participaram 800 entidades. Neilson Costa Pinto, pai de João Pedro participou da abertura desses atos destacando a importância da luta por justiça: "'É um momento que eu não desejo para ninguém, perder um filho é como perder a própria vida. O Estado é falido e sem responsabilidade nenhuma. Fazer o que fizeram com o meu filho e com outros filhos também, entrar no seu próprio lar e tirar a vida de um menino de 14 anos significa que o Estado é falido. E vamos lutar por justiça, é isso que esperamos, que a justiça venha a ser feita em nosso país', destacou.8” 
Esse é o resultado de uma necropolítica instituída pelo governador do Rio de Janeiro, o genocida Wilson Witzel. Apesar de circunstancial desafeto político de Bolsonaro,  é seu par na macabra escalada do fascismo no Brasil.  A pandemia da covid-19 não freou o aumento da violência institucional e o modus operandi racista que tem lugar no estado e na cidade do Rio de Janeiro e no país. Pior ainda nesses estados que copiam as linhas de um governo central militarista e fascista, com estratégias e arreganhos ditatoriais e onde não se pode esperar uma polícia que vise, como deveria, a proteção da população. Os paralelos entre países tão diferentes só podem ser feitos porque guardam entre si semelhanças em sua necropolítica e no abissal autoritarismo nas figuras estultas  dos seus presidentes. 






                                         
                                        João Pedro. Foto: Brasil de Fato.


Um estudante de 14 anos foi morto durante uma operação da Polícia Federal (PF) e da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, na tarde da última segunda-feira (18). João Pedro Mattos Pinto foi atingido na barriga enquanto brincava no quintal de casa. O adolescente foi levado em um helicóptero da Polícia Civil após ser baleado. Até a manhã desta terça-feira (19), a família estava sem informações sobre o jovem. Segundo o Corpo de Bombeiros, o corpo da vítima foi deixado na última segunda (18), às 15h, no Grupamento de Operações Aéreas (GOA), na zona sul do Rio. Na manhã desta terça-feira (19), familiares do adolescente estiveram no Instituto Médico Legal (IML) de São Gonçalo e reconheceram seu corpo. João Pedro foi descrito por amigos e familiares como um menino calmo e que frequentava a igreja. (Eduardo Miranda, Brasil de Fato, Rio de Janeiro (RJ), 19 de Maio de 2020).(9)



Antonio C. R. Tupinambá
Fortaleza, junho de 2020.
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* Publicado originalmente no “Memórias de quarentena – Adufc”. Disponível em: <http://adufc.org.br/2020/06/10/memorias-de-quarentena-23-o-racismo-nosso-de-cada-dia/>. Acesso em: 10 jun.  2020.
1  Traduzido do original em inglês de Frederick Douglass. EMANCIPAÇÃO NA ÍNDIA OCIDENTAL, discurso proferido em Nova York, em 3 de agosto de 1857. Consultado em maio de 2020: https://rbscp.lib.rochester.edu/4398 :
Those who profess to favor freedom and yet deprecate agitation, are men who want crops without plowing up the ground, they want rain without thunder and lightning. They want the ocean without the awful roar of its many waters.
This struggle may be a moral one, or it may be a physical one, and it may be both moral and physical, but it must be a struggle. Power concedes nothing without a demand. It never did and it never will. Find out just what any people will quietly submit to and you have found out the exact measure of injustice and wrong which will be imposed upon them, and these will continue till they are resisted with either words or blows, or with both. The limits of tyrants are prescribed by the endurance of those whom they oppress... If we ever get free from the oppressions and wrongs heaped upon us, we must pay for their removal. We must do this by labor, by suffering, by sacrifice, and if needs be, by our lives and the lives of others.
Expressão criada por Stockley black power (poder negro) após sua 27ª detenção, em 1966: ““Estamos gritando liberdade há seis anos… O que vamos começar a dizer agora é poder negro.” 
3 Os Panteras Negras (Black Panther Party for Self-Defense) foi criado em 1966 pela comunidade negra para a sua proteção em face das arbitrariedades a que eram submetida  na sociedade racista e segregacionista norteamericana.
Goulart, H. R. de P. (2019). Entre os Estados Unidos e o Atlântico Negro: o Black Power de Stokely Carmichael (1966-1971).  Dissertação (Mestrado)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, p. 15.
 O banco de dados americano mais compreensivo sobre assassinatos por policiais.
Sakamoto, L. (2020). Nos EUA, protestos contra o racismo. No Brasil, um ato com tochas acesas. UOL. Consultado em maio de 2020: https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/05/31/nos-eua-protestos-contra-o-racismo-no-brasil-um-ato-com-tochas-acesas.htm?cmpid=copiaecola.
7 Dito por Neilton Pinto, pai do garoto João Pedro, assassinado pela polícia do Rio de Janeiro.
8 Deister, J. (2020). Em memória de João Pedro: 800 organizações denunciam violência do Estado nas favelas. Brasil de Fato: Rio de Janeiro (RJ), 27 de Maio de 2020. Consultado em maio de 2020: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/27/em-memoria-de-joao-pedro-800-organizacoes-denunciam-violencia-do-estado-nas-favelas.
Miranda, E. (2020). Procura-se João Pedro: jovem desaparecido em ação policial é encontrado morto no Rio. Rio de Janeiro: Brasil de Fato, 19 de maio de 2020. Consultado em maio de 2020:  https://www.brasildefatorj.com.br/2020/05/19/procura-se-joao-pedro-jovem-desaparecido-em-acao-policial-no-rio-e-encontrado-morto

2 comentários:

  1. A necropolitica continua agindo e agirá, impunemente, enquanto esse governo indecente mantiver-se

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    1. Verdade Angelim, mas nós somos mais de 70 por cento e vamos reagir!

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