Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá
A frieza britânica, a distância européia divergem da falsa espontaneidade estadunidense e permitem criar dramas que, mesmo tratando temas tabu trazem desfechos implacáveis e pouco óbvios. A pobre vida psíquica dos ianques se contrapõe à riqueza existencial europeia. Foi no velho mundo que se descobriu o inconsciente, foi no novo mundo que se tentou negocia-lo. Dessas negociações surgiu a sua negação e rejeições que originaram delirantes abordagens do psiquismo humano à sombra da psicanálise, tratando-a como rival a ser destruída, parcialmente destruída, desidratada ou substituída por esquemas simples que explicassem a natureza humana a serviço do seu controle: deveria servir ao controle do psíquico para se tornar americana. “Pseudo-evoluções teóricas” acerca do psiquismo humano com práticas correspondentes obtiveram êxito na sociedade do imediatismo e consumismo. A mesma sociedade que gera Trumps, movimentos neo-pentecostais fundamentalistas, KKK e outras aberrações bem conhecidas. Quase tudo, exceto a psicanálise poderia vingar nessas condições culturais e sociais, e nesse modo de vida onde não cabe a existência de um "inconsciente".
"Não sabem que estamos lhes trazendo a peste!1” dizia Freud ao chegar em solo norte-americano em 1909. De fato garantiu que se espalhasse no Novo Mundo a sua disciplina, contudo sem garantir a sua autenticidade, por motivos óbvios. Para Jacques Lacan, que diz ter ouvido essa frase de Jung, companheiro de Freud na viagem, "ele havia acreditado que a psicanálise seria uma revolução para a América, e, na realidade, a América é que tinha devorado sua doutrina.2”
Apesar das conferencias de Freud terem viabilizado a difusão da psicanálise pelo mundo, ele, que ficara pouco mais de um mês nos Estados Unidos nunca mais mostrou interesse em retornar ao país e, até morrer, guardou sempre certo cepticismo com as ideias e as ações originadas naquele país.
Ferenczi, que também acompanhou Freud em sua viagem à América o havia perguntado se deveria levar consigo uma cartola (símbolo do Tio Sam), no que Freud, presume-se porque, respondeu que planejava comprar uma in loco e, que na viagem de volta, a jogaria ao mar3.
Sem dúvida a recepção que teve no país anfitrião deixou Freud feliz e enaltecido. Gênio inegável mas destratado na própria casa; saindo de uma Europa hostil e vendo a psicanálise abrir novos horizontes: "Na Europa, sentia-me como um proscrito, enquanto na América os melhores recebiam-me como um de seus pares”… mas deixa claro sua alegria pelo retorno ao Velho Mundo, à sua velha Viena: "Estou muito feliz por estar de volta e ainda mais feliz por não ter que viver na América”. Afinal de contas "A América é o mais gigantesco experimento que o mundo já viu, mas temo que não seja destinado ao sucesso". E diz a seguir: "Sim, a América é colossal, um erro colossal.4”
Nada poderia ser mais premonitório e conclusivo. A América como um erro colossal, que teria seu apogeu na fabricação de governos que massacram e inquietam o mundo até nossos dias.
O pragmatismo norte-americano quis destruiu a psicanálise tornando-a um instrumento de adaptação do homem à sociedade. A transformação da psicanálise em uma terapia inserida em um compêndio de psicologia ou psiquiatria, sua visão terapêutica com poder de cura tornou-a em um novo ideal de felicidade “…capaz de dar solução à moral sexual da sociedade democrática e liberal: o homem não estava condenado ao inferno de suas neuroses e de suas paixões. Pelo contrário, podia curar-se delas.5”
Tudo passando pelo triturador moral e do pragmatismo estadunidenses perdendo plasticidade e complexidade. Assim como a psicanálise sofreu para agradar o "way of life norte-americano, com as simplificações e as distorções que disso derivam” vê-se perdido no atual engodo dessa nova civilização que não deu certo, qualquer história de abordagem complexa do humano, na vida, nas teorias ou no cinema, como a que vamos relatar a seguir. Facilmente teria tido um fim trágico, seja perdendo sua natureza plástica, seu intimismo; da mesma forma e perspectiva, para atingir esse enquadramento, agradar à moral vigente e caber nessa ordinária “way of life” que tenta reduzir tudo a um molde, uma explicação simples e digerível.
Os alcances limitados dos significados ou a falta deles, característicos de uma cultura massificada, se contrapõem à riqueza imagética, detalhes da vida inconsciente que é assumida pelo “europeu”. Sem implicar em conflitos morais ou exigir adaptações fáceis e previsíveis possibilita na arte desfechos humanos para questões humanas. Até mesmo um “happy end” em um filme de temática “gay” num contexto inusitado, incomum entra no campo dessas possibilidades, como nos trouxe Lee; mas esse possível, do lado de cá imitando a vida, não é necessariamente o mesmo por lá, na terra da eterna ficção moral ianque: “Então é como num filme americano, um filme americano bem ruim”, diz Liar antes de morrer sem realizar o sonho de abrir seu relacionamento com Yossi no drama israelense “Yossi and Jagger6”, referindo-se aos sempre reservados finais infelizes para casais gays de Hollywood.
Assistindo a Gods Own Country7 percebi que esse roteiro não poderia, portanto, ser de um filme concebido e rodado para as plateias estadunidenses, pois não atende a uma banalização da história em nome da sua way of Life, a uma falta de reconhecimento de uma vida “inconsciente”, a uma carência de soluções que humanizam. Essa é uma das características da cinematografia gay dos Estados Unidos; há de se ter um final infeliz para que aquilo fora do padrão, que ameace o status quo, que se mantém fora da norma, não cause um desespero no “pré-consciente” coletivo. Não por menos, filmes de Hollywood de sucesso neste espectro têm um apelo à desgraça infinita, ao castigo e à punição, bem ao modo behaviorista, trade mark da psicologia americana antipsicanalítica. Citando apenas três de cada lado do Atlântico: "O segredo de Brokeback Mountain”; "Boys don't cry" (meninos não choram)" e Philadelphia8 contra "Beautiful thing (Delicada atração)”; "Maurice" e o título motivo mor do nosso texto atual, o belo "Gods own country”.
A localidade que abriga sua história, ou seja a história do inglês Johnny e do romeno Gheorghe fica em Yorkshire no Norte da Inglaterra, sim, na terra de Charlotte Brontë, sendo que nossa história se passa nos tempos atuais. Uma cidadezinha nada metropolitana, com personagens pitorescos, muitos deles agarrando qualquer oportunidade para fugir do tédio local, por exemplo, uma bolsa de estudos para uma escola em qualquer centro urbano. Outros, habituados à vida rural, não pensariam nisso, é para eles natural o ciclo de vida com seus limites demarcados por cercas de pedras toscas e sendas estreitas.
Não parece uma história contada por alguém que faz pela primeira vez um longa-metragem do gênero, no caso seu diretor, Francis Lee. Realmente um trabalho notável e vale ressaltar, trata-se sim de seu primeiro filme. Lee escolheu ambienta-lo no que há de mais rural no Norte da Inglaterra: uma fazenda que nas proximidades conta com um único local onde os poucos habitantes do vilarejo podem tomar sua cerveja e mudar de ares nas noites sem opções. Muitas cervejas no caso do nosso Johnny. Há uma criativa solução para desencadear o intrigante enredo que vai fixar nossos olhares e criar mil expectativas. Como terminará tudo isso? Ocorrerá o tradicional desfecho hollywoodiano da tragédia gay ou será reservada alguma solução mais poética, diferentemente de histórias que passam pelo crivo da censura moralista estadunidense? Mas estamos falando de um filme europeu, portanto podemos pensar em um pouco mais de vida humana habitando a terra e a tela. A implacável solidão de Johnny, a vida absolutamente monótona numa família com dois membros a mais: pai e avó, ambos, aparentemente amargos e secos, apegados a uma rotina de fazendeiros ingleses esquecidos pelo mundo e vítimas de uma natureza gélida e agressiva. Para Johnny sobra a cerveja em demasia e o sexo limitado, não falado, que vem depois e não pode ter continuidade.
A vinda do imigrante romeno Gheorghe, um desconhecido que deve passar uma semana ajudando o jovem Johnny, para os familiares pouco responsável, pouco competente e pouco capaz de tocar sozinho o duro trabalho diário. Uma solução que gera desconforto e protesto será também redenção e autodescoberta. Quer no círculo existencial limitado em que vive no pequeno povoado, quer nos estranhos sentimentos que lhe perturbam, não adentram quaisquer resquícios de felicidade ou prazer. Há o seco das relações familiares, a ausência das relações sociais, a fuga na noite, no álcool e nas formas insólitas e insatisfatórias de prazer sexual. Quem esperava tragédia ou humilhação nas condições afastadas do urbano e distante das constituições familiares londrinas mais tolerantes se enganou. Lee nos traz para um campo de diferentes e inusitadas sensações olfativas, táteis, visuais… que vão se descortinando à medida que a gélida relação imaginariamente competitiva do lado de Johnny esbarra na caliente e inesperada atitude de humanismo de Gheorghe, um fazendeiro desconhecido, “fugido” das agruras e problemas de seu país, rejeitado como um "cigano" qualquer. Tantos símbolos de dureza e prisão em que se acerca Johnny vão sendo aos poucos substituídos por libertação e descobertas. A amplitude e leveza da vida que Gheorghe mostra ao aprisionado Johnny. O contraponto do amor desprendido, despretensiosamente, oferecido. O confronto desse amor e dessa vida com o sofrimento eletivo do inglês. A abertura de horizontes ao leva-lo às alturas de onde se avista até o infinito até então desconhecido pelo dono da terra, na própria terra. O gesto simples de fazê-lo sentir leveza na pele dura e maltratada que cultiva em sinal de desprezo pessoal… Todos são caminhos que revelam doçura e humanidade de alguém como ele, um fazendeiro longe de suas terras e da terra natal, um estrangeiro qualquer, que pode se oferecer, sem receios ou medo. O efeito transcende os dois e recai sobre o que Johnny vive (ou não vive) em família. Há cenas e desfechos impossíveis de se pensar na cinematografia gay americana, limitada e previsível. Mesmo com a delicadeza com que é tratado o tema não vejo como pode dar certo naquele sociedade que não deu certo, como já previa Freud em 1909. Há aqui o humano, o complexo, a vida inconsciente e seus efeitos que é reconhecida e atualizada sem boicotes, negações ou falsas adaptações. Como disse Ernest Jones, biógrafo de Freud: há por ali [na sociedade americana] uma ignorância monumental! 9
E é essa ignorância que quer nos reger e que devemos combater e não imitar!
Vivas às artes e ao cinema!
Parabéns Francis Lee, Alec Secăreanu e Josh O’Cornner (diretor e atores).
Fortaleza 21 de maio de 2020.
1 Roudinesco (1998) apud Myriam Chinalli (2010). A chegada da peste: cem anos da viagem de Freud aos EUA (1909-2009). Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 4, n. 7, out. 2010.
2 Idem.
3 Worcester e As cinco lições de psicanálise apud Myriam Chinalli (2010). A chegada da peste: cem anos da viagem de Freud aos EUA (1909-2009). Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 4, n. 7, out. 2010.
4 Todas as citações deste parágrafo: .(Ricci 2005 apud Myriam Chinalli (2010). A chegada da peste: cem anos da viagem de Freud aos EUA (1909-2009). Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 4, n. 7, out. 2010.
5 Roudinesco & Plon, 1998 , apud Myriam Chinalli (2010). A chegada da peste: cem anos da viagem de Freud aos EUA (1909-2009). Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 4, n. 7, out. 2010.
6 Yossi & Jagger (Delicada Relação). Filme israelense de 2002, dirigido por Eytan Fox, sobre a rotina diária de soldados na fronteira entre Israel e Líbano e o romance secreto entre o sargento, Lior (Yehuda Levi), cujo apelidado é "Jagger" por seu estilo de astro do rock e Yossi, reservado e taciturno.
7 Apesar de ser traduzido por “Reino de Deus”, prefiro a tradução literal “País de Deus” porque livra desse pejo religioso que agradaria aos fundamentalistas norte-americanos. Talvez para nós “português-hablantes” melhor seria traduzido (livremente) como “Terra de Ninguém”.
8 “Filadélfia” foi absolutamente dessexualizado seguindo um padrão hipócrita hollywoodiano, onde tudo acontece por debaixo dos panos, mas na tela tudo tem que ser “limpinho” — uma cena na cama com os personagens de Hanks e Banderas fora inclusive cortada. Para Hanks cenas como aquela poderiam tirar o foco da empatia que a produção queria promover junto ao [ridículo e obtuso] público norte-americano.
9 Ricci, 2005 apus Myriam Chinalli (2010). A chegada da peste: cem anos da viagem de Freud aos EUA (1909-2009). Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 4, n. 7, out. 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário