SÉRGIO,
UM CIDADÃO DO MUNDO.
Antonio
Caubi Ribeiro Tupinambá
Professor
Titular - Departamento de Psicologia (UFC)
Email:
tupinamb@ufc.br
Estrelado por Wagner Moura e Ana de
Armas.
Teve sua estreia mundial no Sundance Film Festival em 28 de janeiro de 2020. Tem o baiano Wagner Moura vivendo
Sergio Vieira de Mello e a argentina Ana de Armas como Carolina Larriera.
Podia ser
apenas mais uma tentativa de dormir em uma noite dessa prolongada quarentena.
No entanto, dormir depois de ter assistido ao filme Sérgio, foi dormir
tranquilo, sabendo que, mesmo nesse eventual sentimento de impotência e/ou
letargia em que possamos mergulhar, há coisas que valem a pena, nos reanimam e
e nos resgatam para continuar na luta. E como há. Há Wagner Moura, que é do
Brasil, como Sérgio Vieira de Mello. Wagner, esplendoroso protagonista que
paralelo ao ser querido que representou, quase alcança a perfeição, aquela que
a gente costuma dizer só podem alcançar os Deuses. Mas Wagner é um deus. Não
lhe faltam beleza, talento, carisma, empatia, compromisso e tudo que um homem
na terra pode alcançar, deixando-o perto desses deuses da perfeição. Casa e botão.
Wagner e Sérgio. Sérgio, cujo nome se confunde com o desejo de paz entes os
povos. 34 anos de ONU, 34 anos de busca de solução para conflitos de toda
natureza. Talentoso no que fazia como seu correspondente na arte, ia a qualquer
parte do planeta, aos destinos os mais difíceis para, com êxito, resolver
problemas aparentemente insolúveis. Testemunhou a transformação do antigo
Paquistão Oriental na nova Bangladesh independente no ano de 1971; esteve
presente no Chipre durante a invasão do exército turco em 1974; na guerra civil
de Moçambique em 1975 e no Líbano na altura da sua invasão por tropas
israelenses. Além dessas missões pode acompanhar a volta de refugiados ao
Camboja, resultado de sua presença e força nas negociações que levaram a esse
desfecho quase inimaginável na época. Sérgio integrou a missão especial das Nações
Unidas no Kosovo, antiga Iugoslávia em 1993; esteve presente em Ruanda quando
ocorreram os massacres de 1996; pode ver renascer de suas mãos o novo Estado do
Timor Leste, quando lá esteve em 1999, liderando a transição da ex-colônia
portuguesa para a independência, passagem essa da vida do do filósofo e
diplomata carioca que foi explorado centralmente nessa trama atual. Reorganizou
de forma exemplar um país mergulhado em conflitos de um pós-guerra, o que lhe
rende hoje as homenagens dos timorenses que afirmam terem perdido um irmão.
Wagner nos traz o Sérgio que ocupa o cargo máximo no país em emancipação,
mostrando também seu lado humano, apaixonado e apaixonante. Como todo homem de
bem, Sérgio não é apenas mais um burocrata da ONU no Timor. É todo afeto e alma
que transita por Dili, capital do país, onde conhece o grande amor da sua vida,
com quem, a partir de então ficaria até seus últimos minutos de presença viva
no Iraque. Wagner é Sérgio até os átomos, talvez porque Wagner e Sérgio são
seres sublimes, iluminados, humanistas
e, portanto, possa ter havido comunicação espiritual e permissão divina
suficientes para incorpora-lo no papel. Não há, portanto, para nosso mundo ou
para a arte diferenças entre os dois. As
paixões, o compromisso com a humanidade e com a terra se igualam e, na tela, se
revelam. Há o cuidado de mostrar as relações cotidianas de Sérgio porque ele
era um homem a quem isso importava. O acesso, por meio do amor conquistado na
terra estranha que se torna familiar, leva-o a adentrar na alma do Timor, e
compreender a amplitude de sua ação e de sua missão nesse até então, novo e
desconhecido mundo. O descortinar das vidas simples com que cruza,
deliberadamente, em procura do conhecimento que lhe é característico, leva Sérgio,
segundo a história representada primorosamente por Wagner, a saber a medida
certa das suas intenções e a obstinação para consegui-las. Bem percebido no
encontro que tem com o então presidente indonésio, de quem exige um pedido de
desculpas formal à nova nação timorense pelos danos irreparáveis causados à sofrida
população por todo o período da brutal ocupação. Afinal de contas sabe-se da
dimensão da tragédia: Trata-se do primeiro assassinato em massa, promovido pela
Indonésia, um verdadeiro genocídio sob o comando do ex-ditador Suharto que
custou a vida de um terço da população do Timor[1]. “Você está
louco, isso não se pede de um presidente”, é o que contra-argumenta o ditador.
E quer deixá-lo a ver navios. Mas Sergio o impede de sair ao dizer: Não, não é loucura,
eles merecem esse pedido. A forma mesquinha como o senhor os vê será a forma
como todo mundo verá a Indonésia se esse pedido de desculpas não for feito.
Sergio foi
nomeado após a missão bem cumprida no Timor Leste para chefiar o Alto
Comissariado de Direitos Humanos, com sede em Genebra, sendo, contudo, logo
convocado pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan, para ajudar na reconstrução
do Iraque, arrasado pela brutal invasão estadunidense. Timor não lhe trouxe só louros,
mas também amor. Amor de uma bela e também engajada argentina, Carolina (Ana de
Armas), que lhe acompanha daí até seu último dia de vida. Apesar de sempre ser
convocado a deixar tudo e voltar ao Rio, por seu amor, por desejo pessoal e
pelas doces lembranças da vida familiar carioca, perto da pedra do Arpoador,
pelo Rio que tanto ama, mas não cedeu.
Após curto período de vida social entre missões, parte para o Iraque. A
partir de 2003, vinha tentando sustentar a ideia de uma ação não
intervencionista no Iraque, pois para ele “nenhum estrangeiro poderia governar
o Iraque” e nessa direção deveria ser criado um conselho provisório formado por
nacionais iraquianos, enfim, era a favor de uma iniciativa que pudesse garantir
ao povo que o processo de ocupação não virasse indefinido no tempo. Queria só quatro
meses por lá. Tempo, segundo ele, suficiente para deixar o Iraque com os
iraquianos e seguir para seu Rio amado, com seu novo amor. Buscou, portanto,
contribuir para um melhor entendimento entre os envolvidos naquela delicada
tarefa, no país invadido e destroçado. Sentia-se, no seu discurso, a meritória
ideia de não achar natural o país ser comandado ad infinitum por forças
estrangeiras, o trabalho que ali realizasse deveria, portanto, apontar na direção
da promoção de uma progressiva autonomia política do país. Assim como se
orgulhava de ter participado da missão no Timor, missão essa responsável pelo
encerramento do ciclo de descolonização. Palavras que Wagner proferia e às
vezes, dada a perfeição da atuação, nos fazia acreditar ser o próprio Sergio ao
dizer sobre o Iraque: "Esse deve ser um dos períodos mais humilhantes da
história desse povo. Quem gostaria de ver o seu país ocupado? Eu não gostaria
de ver tanques estrangeiros em Copacabana”. Isso mostra a dimensão absurda e
insana do ato terrorista que o matou, mesmo que em princípio qualquer ato
terrorista seja injustificável. Há na
narrativa do filme pontos que me intrigaram quando comparado com dados históricos
por mim já antes lidos sobre a ocupação e o ataque terrorista, que covardemente
atingiu nosso grande Sérgio, causando essa perda irreparável. Especulo que se
vivo estivesse mesmo como catedrático no Rio, no seu Arpoador, como planejava,
o mundo certamente teria alguém contribuindo com sua melhora. As dúvidas que o
drama, baseado na história do Sérgio e contada por nosso Wagner, me trouxeram são
atrozes. Por que, segundo o que foi retratado, se demorou a socorre-lo se ainda
esteve tanto tempo sob os escombros, lúcido e com vida? Por que salvaram
primeiro o companheiro americano a seu lado e só muito depois chegaram a ele?
Qual foi a atuação do seu correligionário representante do governo americano
nesse evento, onde esteve presente pós atentado? Para mim aparentou uma possível
negligência e pouca determinação para salvar o Sérgio. Claro fica na tela que o
representante americano competia com Sérgio pelo poder na missão do Iraque,
sendo que sua competência é visivelmente questionável e diria, incomparável à do
nosso querido diplomata, cuja alma foi emprestada ao brilhantismo de Wagner
para lhe fazer imortal. Rever o filme para mais uma vez pensar sobre esses tópicos
é quase uma necessidade. Não se trata de teoria da conspiração, mas o incômodo
que as mensagens da trama deixaram. Não há, pela história da invasão do Iraque
por Bush, como acreditar na boa vontade de quem chefia, para Washington uma
missão pós invasão, que queria a ONU sob seu comando. A inveja do representante
americano e seu desejo em controlar Sérgio de Mello são inquietantes.
O jornal The New
York Times resumiu a perda do nosso Sérgio de Mello numa única frase: “um
grande defensor da paz e da reconciliação [foi] assassinado em uma ato de
niilismo.”
Um grande
ator que brilhou em Praia do Futuro (filme do cearense Karim Ainouz) e o grande
diretor que fez renascer nas telas Marighella (Festival de Berlim, 2019), honrou
um dos nossos bens preciosos com seu inegável dom e talento incomparáveis, sem
esquecer seu incomensurável humanismo.
Tudo isso fundamental para viver Sergio de Mello.
FIQUE EM CASA. SALVE VIDAS!
Fortaleza, 19 de abril de 2020.
Um cidadão de extrema grandeza. Aliado a outro cidadão de igual grandeza que o representa nas telas do cinema.
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