Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá
Professor - UFC
Dia 60.
Uma rotina de domingo. Tomo os domingos como Domingo: nele não se limpa, arruma, cose, passa ou cozinha. Não porque me proíbo, mas porque isso me ajuda a saber que amanhã é segundo e ontem foi sábado. Nele se descansa, se toma banho de sol, se deleita com música, literatura e arte. Qual seja o desejo e o alcance.
Pois poderia ser apenas mais um desses domingos em que se impõe, voluntariamente, um dolce far niente. E eis que neste me caiu no colo a obra de arte cinematográfica de Rob Epstein e Jeffrey Friedman: HOWL (Uivo)!
Filme de 2010 com James Franco e Aaron Tveit como, respectivamente, Allen Ginsberg e seu companheiro Peter Orlovsky traz cenas entre Nova Iorque e São Francisco, onde, Ginsberg em 1957 lança seu livro de poesia “Howl and other poems”. Acusado de obscenidade, é levado aos tribunais para ser banido como obra maldita. A brilhante e exitosa defesa fica a cargo do jovem advogado libertário Jake Ehrlich.
É isso o que você deve fazer: Amar a terra e o sol e os animais, desdenhar as riquezas, dar esmolas a todos que pedirem, defender os dementes e os loucos, dedicar sua renda e trabalho aos outros, odiar os tiranos, não discutir sobre Deus, ter paciência e indulgência com as pessoas, não tirar o chapéu para o que é conhecido ou o que é desconhecido nem a homem nenhum ou grupo de homens, acompanhar livremente as poderosas pessoas analfabetas e os jovens e as mães de família, ler estas folhas ao ar livre em todas as estações todos os anos da sua vida, examinar tudo que foi dito na escola ou na igreja ou em qualquer livro, rejeitar tudo que insulte sua própria alma, e sua própria carne será um grande poema e terá a fluência mais rica não só na forma de palavras mas nas linhas silenciosas de seus lábios e rosto e entre os cílios do seus olhos e em toda junta e todo movimento do seu corpo. (WHITMAN, 2005, p.19)
Foto: JoJo Whilden/Oscilloscope Laboratories
Quem poderia encarnar melhor o homossexual, judeu, drogado, outsider, Ginsberg? Ninguém mais que James Franco. Seu brilhantismo se fez ver nas telas como o poeta “público”, um desses que ainda não existe até nossos tempos. Pois foi do tempo do prestigio e da força da poesia, inclusive para ser levada a um tribunal, sendo dissecada por senhores professores, advogado de defesa que viam o cerceamento da liberdade de expressão e o reflexo da ignorância literária naquela tentativa de obstrução; do outro lado, advogado de acusação e professores arrebanhados no baixo clero, afinados com a falsa moral vigente e com uma sociedade puritana em regime de consolidação. Ginsberg tornou-se, com sua vida e sua escrita um estandarte, às vezes à revelia, anti-stablishment dos anos 1950 na retrógrada sociedade americana do pós-guerra. Um ativista com causas libertárias as mais diversas, pode-se, facilmente, nomear várias em perspectiva histórica. Todas mostraram sua coragem e compromisso com o que pensava e sentia: “a censura, a barbárie da guerra, o preconceito sexual e racial, a repressão, o etnocentrismo, a destruição do meio ambiente e, sobretudo, a liberdade de expressão.1"
James Franco é um Midas no cinema. A esse filme-documentário-poema, empresta seu carisma e talento de modo a nos levar ao âmago de cada estrofe desse Uivo libertador. Sendo lido hoje, ainda pode nos ajudar superar o temor e a insólita experiência da peste que assola nossos dias. É um grito de libertação da hipocrisia e do mal estar contemporâneo, de fácil transposição para a realidade amarga mas não insuperável, que ora nos quer oprimir. Ora, somos seres de coragem que se deixam iluminar pela arte. E aqui, a arte do cinema se une à da poesia “obscena” e redentora de Ginsberg em perfeita comunhão espiritual por Franco, ao incorporar, sem dificuldades, o poeta do sofrimento e da redenção.
A maldição está apenas na forma rudimentar de afetação e juízo dos que querem destruir a arte. No tribunal o retrato da falsa moralidade, conviniente e retrógrada, aquela mesma que tanto conhecemos, a que cria monstros soltos e pássaros aprisionados. O conformismo, o macarthismo, os bons costumes e sua correspondente hipocrisia social, o consumismo e todo seu paramento: racismo, pobreza de espírito, conservadorismo e medo ao non-stablishment, têm peso e parecem impossíveis de se combater. Mas a força da palavra da poesia de Ginsburg prova o contrário.
Referenciando Walt Whitman (“Me contradigo?/ Tudo bem então... me contradigo;/ Sou vasto... contenho multidões.”)2 dele se liberta, ou melhor, a partir daí evolui chegando aos próprios tons: "Ginsberg, com seu uivo, atualiza e radicaliza a mensagem básica do 'Poeta do Cosmos' … de que liberdade individual, liberdade sexual e de linguagem, liberdade política e poética tinham de andar lado a lado.”
Não deixei de lembrar da maldição de Oscar Wilde na sociedade londrina do século dezenove. Poderia até a querer anunciar algum traço de interseção entre os destinos? Talvez sim, talvez não.4
Ginsberg, aliás Franco, sai, com seu Uivo, "cruzando os Estados Unidos por inteiro e vivenciando manifestações coletivas da contracultura, tais como a libertação sexual, as experiências com drogas e o jazz de resistência dos guetos.5"
A leitura de Uivo foi uma descoberta que veio em imediata decorrência do filme. Sua escrita confessional, sua imagética fantástica mas, digamos real, como se encontra nos ditos loucos ou rebeldes, ele, rebelde radical tão imprescindível às metrópoles sem alma… Afinal, também não existe amor em Nova Iorque.
Em anos distintos, cidades americanas, Nova Iorque e São Francisco, hospitais psiquiátricos, apartamentos e submundos, Franco leva em cores e em preto e branco a vida e o poema, concomitante e alternadamente, para tentar decifrar os dois e o próprio Ginsberg. Com louvor nos faz vibrar cada palavra de cada estrofe no ambiente e nas circunstâncias em que o poeta e os poemas foram concebidos, produzidos, aplaudidos e odiados. Cigarro e máquina de datilografia acompanham a busca do autoconhecimento, a superação pessoal e o encontro com a felicidade no meio do caos que tem nome e se chama Peter.
Fortaleza, 17 de maio de 2020.
1 Retirado de https://revistacult.uol.com.br/home/o-uivo-vivo-de-allen-ginsberg/
2 WHITMAN, 2011, p.129.
3 Retirado de https://revistacult.uol.com.br/home/o-uivo-vivo-de-allen-ginsberg/
4 "O girassol de Wilde, além da referência direta ao sol poente, é um símbolo comum do amor homoerótico, recorrente nos poemas de Mário de Andrade e Allen Ginsberg". (https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/57055/R%20-%20D%20-%20FRANCISCO%20ASSIS%20DE%20MATTEU%20MONTEIRO.pdf?sequence=1&isAllowed=y, p. 169).
5Retirado de:
Alguns versos e estrofes que dão início ao Uivo, no livro e no filme:
"Uivo
para Carl Solomon
I
Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,1
hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado na maquinaria da noite,3
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando so- bre os tetos das cidades contemplando jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado4 e viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas de cômodos,5
que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de Blake entre os estudiosos da guerra,6
que foram expulsos das universidades por serem loucos & publicarem odes obscenas nas janelas do crânio,
que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descascada em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestos de papel,8 escutando o Terror através da parede,
que foram detidos em suas barbas púbicas voltando por Laredo com um cinturão de marijuana para Nova York,(…)"
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