Quem poderia imaginar existir em um país destruído por várias guerras alguma expressão artística ou algum artista vivendo de sua própria arte? Trata-se do Iraque e, principalmente de sua capital Bagdad, que há tempos vem buscando um lugar ao sol no mundo da criação e da expressão humana e artística. Bagdá, que já foi considerada a Paris do mundo árabe quando se falava de cultura, arte, ciência e educação, vive a realidade da destruição e do medo permanentes.
Bagdá de antes da guerra
Recuperar o seu status anterior de Capital Cultural do Mundo Árabe é tarefa hercúlea que depende da estabilidade política e, antes de qualquer coisa, da viabilização da circulação humana segura nas suas ruas e prédios. Mesmo sob o embargo econômico que durou mais de uma década antes da invasão pelo grupo de países liderados por Washington, a nação iraquiana viu florescer um movimento atípico de artistas internacionalmente reconhecidos, que foi completamente ofuscado pelos efeitos dessa última guerra. Durante o regime de Saddam Hussein, os artistas que se punham ao lado da situação recebiam subsídios e material para suas produções, e até mesmo um posto qualquer para se tornar funcionário público e poder produzir livremente sem se preocupar com vendas e busca de outros meios de sobrevivência. Até mesmo o material de difícil aquisição local era obtido por esses meios e com apoio do governo. As galerias de arte se multiplicaram, escolas de arte eram subsidiadas e terminaram por criar um ambiente e um mercado relativamente dinâmico na capital iraquiana, levando-se em conta a sua situação de isolamento econômico, comercial e cultural em função do famigerado embargo internacional. Essa “geração do embargo”, como se intitulavam os artistas da época, criou um estilo próprio e reconhecia a necessidade da arte para lidar com o recrudescimento de dificuldades da vida do pós-guerra e do seu consequente isolamento.
Antes do início da presente agressão ao Iraque [invasão de 2003], muitos meios de comunicação veicularam a notícia do grande interesse, por parte dos Estados envolvidos no conflito, em proteger o patrimônio histórico-cultural do Iraque. Interesse apoiado em escala mundial. Foram estabelecidas comissões, ouvidos diversos especialistas e enaltecido um forte sentimento de preservação da cultura e das relíquias existentes no território iraquiano [o que infelizmente não ocorreu!]1
Os poucos artistas que sobreviveram à guerra e não fugiram do país se mantiveram praticamente imobilizados em consequência do conflito e do terrorismo que ainda grassam na sociedade iraquiana. Como pode um povo pensar em arte se a busca da própria sobrevivência é seu motor diário e, se o pouco dinheiro público que deveria ser aplicado à recuperação da cultura local é embolsado por políticos corruptos, para quem arte é sinônimo de inutilidade?
Qasim Sabit (2001)
Qasim Sabti é um desses artistas sobreviventes, que resistiu a decretar o fim da arte iraquiana. Para se chegar a sua galeria em um bairro de Bagdad, era necessário passar por várias revistas antibomba e muitas vezes, durante a visita, atentar para os barulhos externos dos tanques de guerra e dos helicópteros que sobrevoavam a cidade e impediam a concentração dos admiradores de suas pinturas e o desenrolar das conversas entretidas que queriam estar distantes do caos social externo e do estresse cotidiano.
No Iraque estão os locais identificados pela tradição como o Jardim do Éden bíblico e o lugar de partida do profeta Abraão em busca da Terra Prometida. Entretanto, tal riqueza histórica não foi suficiente para impedir verdadeiros crimes cometidos contra esse patrimônio humano de tanto valor. Não respeitando a integridade territorial nem o direito inalienável do povo iraquiano, a sua autodeterminação, as potências imperialistas — com o USA à frente — promoveram uma das mais odiosas guerras de agressão de nosso século. Buscando controlar as riquezas naturais da região, principalmente o petróleo, e afirmando a ferro e fogo sua hegemonia no Oriente Médio, o USA bombardeou, saqueou e destruiu casas, hospitais, escolas e muitos vestígios dos primeiros passos da humanidade.2
Até mesmo sítios culturais milenares foram feitos de depósito pelos membros da coligação invasoraa comando dos Estados Unidos. Mas a destruição não parou por aí, ela prosseguiu em tempos posteriores à saída dessas forças invasoras do Iraque. A pilhagem dos bens culturais do país ficou então por conta do Estado Islâmico (EI), que assumiu o controle de Mosul, cidade ao Norte do país e situada em frente às ruínas da antiga Nínive, na Alta Mesopotâmia.
Mosul ao Norte do Iraque (Antiga Cidade bíblica de Nínive)
Antes de serem derrotados e abandonarem a cidade, os terroristas deixaram um rastro de destruição por onde passaram, perpetrando vários saques a museus locais e pondo abaixo prédioshistóricos e monumentos. Uma falta de respeito com o legado cultural do país resultando em perdas irreparáveis, que dificilmente poderão ser compensadas pelas ações de alguns poucos envolvidos em sua recuperação. Não podemos esquecer daqueles heróis da resistência que atuam simbolicamente e com teimosia, relutando em fazer arte para amenizar o próprio sofrimento e do seu povo, diminuindo a aridez e a desesperança deixadas para trás pelos invasores.
Como afirmava a artista e proprietária de uma galeria em época anterior, Wadad Orfali, naquela altura os artistas tentavam, com seu trabalho, amenizar o sofrimento humano através de uma expressão cultural que era parte integrante da civilização iraquiana e que nem a guerra havia conseguido mudar. Talvez seja isso o que faça, mesmo em condições extremamente adversas, surgirem ainda hoje escolas e galerias de arte no meio dos escombros da cidade, muitas vezes sob o som nauseante de disparos e bombas e a visão pública de corpos dilacerados pela violência terrorista.
No centro das atenções. Uma pintura de Yusra Alabadi.
Em exibição na exposição anual da Sociedade Iraquiana de Artistas Plásticos
em Bagdá. (Oumayma Omar, The Arab Weekly, 10.02.2019)
Oumayma Omar, reforçou recentemente em artigo3 para o jornal "The Arab Weekly", o que se vem denunciando sobre os efeitos nocivos dessa violência também para a vida artística do país. Para o autor do artigo, a rica história da arte do Iraque foi minada e ofuscada pela política, guerra e destruição. Houve uma fuga de colecionadores e artistas do país que foi causando um esmaecimento da cena artística iraquiana mas que, segundo seu testemunho, ainda pode-se surpreender com o volume e diversidade de obras de arte disponíveis no país hoje em dia: "A sociedade reviveu sua exposição anual de arte em 2008 para ajudar a reconstruir a fragmentada cena cultural do país. O maior evento cultural de Bagdá tinha sido suspenso após a invasão liderada pelos Estados Unidos em 2003. As obras de aproximadamente 160 artistas foram exibidas na exposição deste ano.” (Omar, 2019).
Quasim Sabti, presidente da Sociedade Iraquiana de Artistas Plásticos no bairro Mansour de Bagdá e proprietário da Hawar Gallery, "um dos últimos bastiões da arte abertos em Bagdá", afirma que o mercado de arte minguou após a invasão de 2003 que derrubou Saddam Hussein e da eclosão de violência sectária e da insurgência. Sabti também se queixa da baixa representatividade feminina no cenário artístico iraquiano, o que se deve a motivos variados.
Anwatef Naeem é uma premiada atriz de TV e teatro, diretora, dramaturga e crítica, com obras apresentadas nacional e internacionalmente. Natural de Bagdá, diretora e fundadora do "Children's Theatre of Baghdad” e co-fundadora, em 1994, da "Theatre Critics’ Association" (que representa todos os críticos de teatro no Iraque). Naeem é também vice-presidente da "Iraqi Union of Artists”. Para a artista e diretora, as contribuições das mulheres iraquianas vão além das artes plásticas, incluindo outros gêneros, como o teatro e o drama. Afirma que há muitas razões para a baixa representatividade feminina nesse cenário artístico iraquiano: “…incluindo o rebaixamento da cultura no Iraque em geral e a ausência de consciência cultural entre as mulheres[…] No entanto, o principal motivo é o aumento do conservadorismo social e da religiosidade que impôs fortes restrições à participação das mulheres em atividades culturais, especialmente drama e teatro.” (Omar, 2019).
A despeito do profundo sofrimento que trouxe o império com suas invasões bárbaras e do ódio que os patrocinadores do terrorismo local parece ter de qualquer expressão estética ou humana da liberdade, Bagdá deseja sim voltar a cumprir sua missão e sua vocação de centro de cultura e de expressão artística em uma região, na qual aos remanescente das inúmeras guerras injustificadas só tem sido apresentada a arte da morte e da destruição.
Obs.: Este texto foi escrito a partir de artigo autoral inédito de 2010, originalmente intitulado “Arte e Guerra”.
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1) Dias, C. K. B. ( 2003). Entre a guerra e a preservação. A nova Democracia. Ano I, n. 10, junho de 2003. Disponível em <https://anovademocracia.com.br/no-10/1122-entre-a-guerra-e-a-preservacao>. Acesso em 2010.
2) Ibdem.
3) Omar, O. Iraqi women artists face many obstacles, receive little support. (2019), The Arab Weekly. Disponível em: <https://thearabweekly.com/iraqi-women-artists-face-many-obstacles-receive-little-support>. Acesso em 2020.
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