POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

SOBRE A VIOLÊNCIA - NOVE CENAS DE AUTO-DEFESA ANTIIMPERIALISTA

 























A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumaniza-los. Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga. Desnutridos, enfermos, se ainda resistem, o medo concluirá o trabalho: assestam-se os fuzis sobre o camponês; vêm civis que se instalam na terra e o obrigam a cultivá-la para eles. Se resiste, os soldados atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um homem; a vergonha e o temor vão fender-lhe o caráter, desintegrar-lhe a personalidade. (Sartre).1


Frantz Fanon nasceu na ilha caribenha da Martinica em 1925 e cresceu como um cavalheiro do Império Francês, mas teve que encarar a sua condição de homem negro, "nada além disso”, inferiorizado face aos homens brancos franceses, quando passou a viver no país dos seus colonizadores. Privilégios de classe não o livraram desta marca racista na pátria francesa.  É a parir da própria experiência que Fanon escreve e publica seu primeiro livro em 1952, um ensaio no qual analisa o racismo. No entanto, seu processo de politização e engajamento em lutas de emancipação e libertação humana do jugo colonialista teve seu início quando foi viver e trabalhar nas colônias francesas no norte da África.


Fanon completa seus estudos médicos em 1951. Após trabalhar durante alguns anos na clínica de Saint Alban La Losère, em 1953 parte para Blida (Argélia), onde dirige o hospital psiquiátrico local. A mudança irá transformar-lhe a vida. Na Argélia ele entra em contato com o movimento de libertação, engajando-se na luta revolucionária. Devido a sua posição política, é expulso de Blida em 1957. Fanon parte então para a Tunísia, juntando-se aos militantes argelinos da Frente de Libertação Nacional. Ao lado do trabalho médico, desenvolvido no hospital psiquiátrico de Tunis, torna-se membro da equipe editorial de El Moudjahid, jornal que difunde as diretrizes políticas da FLN. O processo de politização tem implicações substantivas para seu pensamento. Os escritos desse período refletem o clima da guerra anticolonialista e em parte, mas não inteiramente, afastam-se das premissas fenomenológicas anteriores. Fanon aproxima-se do marxismo, e uma nova problemática emerge em seus textos: a questão nacional. O tema integra o “espírito da época”, pois os anos 1950 caracterizam-se sobretudo pela descolonização dos povos africanos e asiáticos. Dien-Bienphu e Bandung são datas-símbolo do declínio do colonialismo tradicional. A guerra da Argélia insere-se dentro deste movimento mais amplo. O nacionalismo árabe não se circunscreve ao mundo argelino; outros países, como a Síria, a Tunísia, o Egito de Nasser,  firmam-se como nações independentes diante das antigas metrópoles. Dentro deste quadro, a questão nacional adquire toda sua relevância.2 


Como afirma Jean-Paul Sartre em prefácio ao livro de Fanon: no século XIX, ainda que a burguesia considerasse os operários invejosos, corrompidos por apetites grosseiros, os incluía na espécie humana; refletindo uma aceitação de um humanismo que se pretendia universal. Isso, no entanto não era a atitude dessa mesma burguesia face aos colonizados:


Nossos soldados no ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao gênero humano o numerus clausus; uma vez que ninguém pode sem crime espoliar seu semelhante, escraviza-lo ou mata-lo, eles dão por assente que colonizado não é o semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar essa certeza abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do macaco superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga.3 

Spivak escreveu um texto de apresentação para o filme4 nascido do mesmo livro prefaciado por Jean- Paul Sartre. Nessa apresentação mostra a contraviolência do colonizado sendo justificada por Fanon pelo fato de não haver outra saída para ele (o colonizado): “não há outra resposta possível a uma ausência absoluta de resposta e a um exercício absoluto de violência legitimada dos colonizadores."5

O livro “Os condenados da terra” de Frantz Fanon foi publicado na mesma semana em que o autor morreu em 1951 aos 36 anos. No mesmo dia da publicação o livro foi condenado e banido na França. A partir dessa obra, ou através dela,  como sugere Ana Maria Cordeiro em matéria sobre o filme ao Jornal português “Público”, Göran Hugo Olsson realizou Concerning Violence/A Respeito da Violência (2014).  O título corresponde àquele dado por Fanon ao primeiro capítulo do seu livro Os Condenados da Terra: "Da Violência", "Sobre a Violência" ou "A Respeito da Violência", conforme edições ou traduções distintas. Dessa obra que só foi publicada postumamente nasceu, portanto, esse filme considerado, segundo diferentes críticos e órgãos de imprensa: uma lição de história que faz pensar no futuro (Público); esclarecedor sobre a colonização na África (Hollywood Reporter); “um testemunho denso e espantoso sobre as guerras de descolonização em África” (Le Monde) e "um filme que produz uma multiplicidade de ecos de uma actualidade incendiária" (Libération).

Muitas imagens e depoimentos de períodos de embates entre colonizadores e colonizados em diferentes países subsaharianos denunciam, comovem e, ao mesmo tempo, remetem diretamente ao texto de Fanon, ilustrando e apresentando in loco suas ideias e suas experiências. Um filme que nos põe a par não só do pensamento de Fanon mas também de sua luta e engajamento pela liberdade dos colonizados e escravizados da África. 


A lição de Fanon foi que você usa o que os mestres desenvolveram e reverte no interesse daqueles que foram escravizados ou colonizados[…] Fanon não parou de pensar na colonização, mas queria fazer algo a respeito. Ele dedicou seu tempo e habilidade para a superação dos que sofreram da violência imperialista.6

 












                                                                         Cena do filme Concerning Violence/Sobre a Violência (2014).


Dentre muitas cenas do filme que retratam as guerras, as invasões e suas nefastas consequências, Gayatri Spivak destaca em seu prefácio para o filme aquela que, para ela, carrega a simbologia e a prova da violência contra a mulher em contextos nacionais diversos:


Eu adiciono uma palavra sobre gênero. Este filme nos lembra que, embora as lutas de libertação obriguem as mulheres a uma aparente igualdade - começando no século 19 ou mesmo antes - quando a poeira baixa, a chamada nação pós-colonial volta às estruturas invisíveis de longo prazo de gênero. A cena mais comovente deste filme é a Vênus negra, lembrando-nos da Vênus de Milo sem o braço, que também é uma Madona negra, amamentando uma criança, com os seios nus. Este ícone deve nos lembrar a todos que o endosso do estupro continua não apenas na guerra, mas também, independentemente de uma nação estar se desenvolvendo ou ser desenvolvida - em mulheres lutando em exércitos legitimados. Colonizador e colonizado estão unidos na violência do gênero, que muitas vezes celebra a maternidade com pathos genuíno.7


Entre texto literário e imagem cinematográfica, Fanon vai sendo revelado, um Fanon que se movimenta de um choque original com o racismo francês para a tentativa de compreender a colonização ao redor do mundo; um Fanon que também dedicou suas habilidades para a cura daqueles que sofriam com a violência (Spivak, 2014).

Durante o filme, são narrados diversos trechos do livro que o fundamenta para introduzir ou comentar cada uma das nove partes em que se divide e tratam, eminentemente, sobre a violência da colonização. Vale a pena destacar alguns trechos extraídos dos escritos originais narrados para acompanhar as imagens de violência resultante da presença colonial na África.

A divisão temática do filme é feita, portanto, em nove partes sobre a "autodefesa contra o imperialismo". 

Usa filmagens feitas em África por equipas suecas, entre 1966 e 1984, inscrevendo frases da obra mais conhecida do Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, o livro que o psiquiatra martiniquês escreveu em 10 dias, já perto da morte, depois do golpe dos generais e da repressão sangrenta de 17 de Outubro de 1961, em Paris, opondo a polícia francesa aos manifestantes argelinos. O filme traz à tona a crueldade do colonialismo em África, repensando as complexidades e efeitos devastadores deixados aos povos colonizados.8


A seguir, títulos e definições sucintas do que é abordado em cada uma dessas nove partes do filme; extratos do texto do livro de Fanon, narrados ao longo do filme, bem como transcrições de trechos de outras falas de personagens entrevistados. A narração foi feita por Ms. Lauryn Hill. No texto atual foram feitas adaptações livres das traduções legendadas em português.



O colonizado não é uma máquina pensante, nem um corpo dotado de aptidões racionais. É a violência em seu estado natural e só sucumbirá, quando for confrontada com uma violência maior.


1. Descolonização: Tratando o processo de descolonização com o MPLA, em Angola, 1974.

"Libertação Nacional. Renascimento Nacional. A restituição de nacionalidade ao povo: quaisquer que sejam as denominações ou as novas fórmulas utilizadas, a descolonização é sempre um fenômeno violento.”

“Não se vira nenhuma sociedade, por mais primitiva que seja, do avesso com um programa assim, se não se tiver decidido, desde o início, ultrapassar os obstáculos com que vai se deparar, ao faze-lo. O nativo que decide colocar em prática o programa e tornar-se na sua força motriz está sempre pronto para a violência.”



2. Indiferença: 

Entrevista com o Dr. Tonderai Makoni

Rodésia, Zimbabwe

Realizada em Estocolmo, 1970.

Makoni foi preso político.

“Depois, olhei para os dias do colonialismo. Também percebi que o negro estava novamente no fundo de tudo. Estava sob opressão do homem branco. Depois olhei para os Estados Unidos e Grã-Bretanha. Nos Estados Unidos, percebi que, apesar da emancipação, o negro continuava no fundo de tudo. Como se fosse um objeto. E depois olhamos para a África do Sul e a Rodésia. Percebemos que esses países tinham institucionalizado o racismo. (Makoni).


3. Rodésia

Exemplos de arrogância do colonizador, da incapacidade de partilhar e do desejo de vingança.

O colono não quer mudanças. O status quo deve ser mantido. O colono diz que não pode “despachar” os africanos que os incomodam porque se encontram na proporção de 36 para 1. Já ná África do Sul, onde essa proporção é de 4 para 1, talvez seja possível: “Bom, eu despachava quatro afros antes de eles me despacharem.”


4. Um mundo dividido ao meio

O mundo colonial é um mundo dividido ao meio. De um lado as cidades dos brancos, limpas e seguras; do outro as cidades dos "árabes e dos negros sujos", que vivem com os pés nas lamas, amontoados em favelas.


5. Lamco, Libéria, 1966.

Uma greve na companhia mineradora sueco-americana Lamco, em Nimba. Por acaso, nessa altura, estava presente uma equipe da TV sueca. 

“Quando você examina de perto o contexto colonial fica evidente que o que define o lugar de uma pessoa no mundo é o fato de pertencer ou de não pertencer, a uma dada raça, a uma dada espécie. Nas colônias, a infraestrutura econômica também é uma superestrutura.  A causa é a consequência: você é rico, porque você é branco. Você é branco, porque você é rico.”


6. Essa pobreza de espírito

A negação da vida, da cultura  e qualquer coisa que possa humanizar o ser nativo.

“A sociedade nativa não se descreve simplesmente como não tendo valores. Declara-se o nativo insensível à ética. Ele representa não apenas a ausência de valores, mas também a negação de valores."


7. O FIAT G.91

Com a FRELIMO, em Moçambique 1972.

Com a Frelimo se luta pela independência do nosso país até o fim. 

“A invisibilidade a que o nativo está condenado só pode ser posta em causa se o nativo decidir por fim à história da colonização, à história de roubo, e fazer existir a história da nação, a história da descolonização”.


8. Derrota

Guerra da Independência da Guiné Bissau

“O homem colonizado encontra sua liberdade na e através da violência. A violência ilumina, porque aponta para os meios e para os fins.”

“…Os destroçados são também portugueses: o corpo ferido de um soldado jaz no chão, enquanto se ouve Vai dizer à minha mãe que eu não vou p’rá guerra, da canção de Luís Cília O canto do desertor. A câmara capta o momento em que, na cerimónia da proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau, em Setembro de 1973, os presentes, em silêncio, ouvem um discurso de Amílcar Cabral.9"


9. Matérias-primas

O diretor não esquece de incluir o tema da exploração do povo das Colônias e o saque de suas riquezas; o saque dos recursos naturais que enchia os palácios de ouro e as cozinhas de especiarias.  Nesse contexto, o assassinato do líder revolucionário e primeiro Presidente de Burkina Faso, o chamado “Che africano”, que pagou com a vida por sua postura política, suas críticas ao FMI e recusa à ajuda alimentar. Para ele, ajuda alimentar deveria vir em ajuda em infra-estrutura para produzir alimentos e não em “esmolas”. O golpe de Estado de outubro de 1987 que matou Thomas Sankara foi orquestrado com ajuda dos Estados Unidos e da França.


"A riqueza das nações imperialistas é nossa riqueza também". 

"A Europa é, literalmente, uma criação do Terceiro Mundo".

"A riqueza que a asfixia é a que foi roubada dos povos subdesenvolvidos".

"Não há muito tempo, o nazismo transformou toda a Europa numa verdadeira colônia. Os governos europeus pediram indenizações e exigiram a riqueza que lhes fora roubada. Tesouros culturais, pinturas, esculturas e vitrais foram devolvidos aos seus proprietários. A riqueza dos países imperiais é também a nossa riqueza".


Nas cenas finais do filme ecoam as fortes palavras de Fanon sobre os caminhos para a libertação e emancipação dos colonizados e suas nações: 


Para muitos de nós, o modelo europeu era o mais inspirador. Mas quando procuramos a humanidade na técnica e no estilo da Europa, vemos apenas uma sucessão de negações da humanidade. […] A Europa assumiu a liderança do mundo com ardor, cinismo e violência. Vejam como a sombra dos seus palácios se alonga e multiplica. Temos de nos livrar da escuridão pesada em que fomos lançados, e deixá-la para trás […] Há dois séculos, uma antiga colônia européia, decidiu colocar-se a par da Europa. Teve tanto sucesso, que os Estados Unidos se tornaram um monstro, onde os podres, a doença e a desumanidade da Europa atingiram dimensões horripilantes."


O filme, um documentário de cerca de uma hora e meia de duração, nasce de um material que vai além da notícia ou da reportagem que caminha pari passu com a obra de Fanon. A matéria jornalística ganha, por meio do seu texto, vida e sentido, tornando-se um apelo apaixonado : “Em vida Fanon assistiu à independência do Gana (em 1957) e de vários outros países (em 1960). Mas não viveu para ver o que se seguiu.10"


____________________________

1) Fanon, Frantz. (1968). Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 9.

Extraído do Prefácio de Jean-Paul Sartre para o livro de Fanon. A grafia foi atualizada.

2)Ortiz, R.  Frantz Fanon: um itinerário político e intelectual. Contemporânea, 

 v. 4, n. 2 p. 425-442 Jul.–Dez. 2014 , p. 434 e 435.

3) Fanon, Frantz. (1968). Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 9.

Extraído do Prefácio de Jean-Paul Sartre. Grafia atualizada.

4)Filme de Göran Hugo Olsson. Baseado no livro de Frantz Fenon”Os condenados da terra". Sveriges Television Louverture Films, 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BFNa4zwP7F8&t=356s. Acesso em setembro de 2020.

5) Spivak, G. C. Preface To Concerning Violence. (2014). Film Quarterly. Outono, 2014, vol. 68, n. 1, 29 de outubro de 2014.

6) Spivak, G. C. Preface To Concerning Violence. (2014). Film Quarterly. Outono, 2014, vol. 68, n. 1, 29 de outubro de 2014.

7) Spivak, G. C. Preface To Concerning Violence. (2014). Film Quarterly. Outono, 2014, vol. 68, n. 1, 29 de outubro de 2014.

8)Disponível em: https://www.geledes.org.br/documentario-inspirado-nas-ideias-de-fanon/. Acesso em setembro de 2020.

9) Cordeiro, A D. (2015). Este é um filme sobre os mecanismos da violência. Disponível em: <https://www.publico.pt/2015/04/28/culturaipsilon/noticia/concerning-violence-tudo-o-que-quero-e-que-as-pessoas-oicam-frantz-fanon-1693767>. Acesso em setembro de 2020.

10) Cordeiro, A D. (2015). Este é um filme sobre os mecanismos da violência. Disponível em: <https://www.publico.pt/2015/04/28/culturaipsilon/noticia/concerning-violence-tudo-o-que-quero-e-que-as-pessoas-oicam-frantz-fanon-1693767>. Acesso em setembro de 2020.


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