Foto: cartaz do filme “Os homens invisíveis” de Yariv Mozer (2012).
Os britânicos deixaram um rastro de discórdia, miséria moral e insensatez por onde passaram como colonizadores. “Donos do Mundo” por muito tempo, levaram seus costumes e hipocrisia moral para implantar em terras estrangeiras, destruindo culturas locais e escrevendo leis ancrônicas e perversas. Deixaram para trás um legado maldito que repercute até os dias de hoje, mesmo em territórios sobre os quais há muito tempo já não têm poder de colonizador ou qualquer relação de mando político ou diplomático. Quando eram senhores da Palestina, importaram do próprio código penal do Reino Unido a condenação à atividade sexual entre pessoas do mesmo sexo. Na legislação palestina atribuíram uma pena máxima de dez anos de prisão a esses casos. A lei é até hoje mantida em vigor em Gaza, ainda que noutras partes do território palestino não tenha a mesma valia. A notícia mais evidente de que tal lei seja aplicada traz o caso de um escritor que no ano de 2017 foi ameçado por publicar um romance que incluia temas LGBT+: "Em fevereiro, o procurador-geral palestino decidiu processar o escritor Abbad Yahya, proibindo seu romance Crime em Ramallah e acusando-o de ameaçar a moralidade e a decência pública”.(1) O romance explora temas de política, religião e homossexualidade através de seus protagonistas. No entanto, sabe-se que ainda hoje a Palestina pode se tornar um inferno para quem se assuma gay em seus domínios. A perseguição vai além se suas fronteiras e se estende a pessoas que consigam fugir para Israel, onde continuam vulneráveis e sob ameaça de deportação e retorno à sua região de origem, quando lhe esperam, na maioria das vezes, se não a fúria da justiça local, aquela de parentes raivosos que querem se livrar do “mal" que se abate sobre a família na figura do “pervertido" fugitivo. Essa punição pode resultar na morte da vítima de homofobia, muitas vezes pelas mãos de parentes próximos, sem necessitar chegar a uma punição formal pelas autoridades locais. A exemplo do que se vê em outros países muçulmanos onde a criminalização de conduta sexual entre pessoas do mesmo sexo, ainda que entre maiores e consensual, leva sempre a reações violentas, discriminação, culminando com assassinato. No Irã testemunhou-se em 2021 o caso revoltante do sequestro de Alireza Fazeli Monfared pelos próprios parentes na cidade de Ahvaz para a seguir ser morto e ter seu corpo abandonado em uma rua qualquer. Num círculo vicioso, o assédio que Alireza Monfared sofria já há vários anos não foi por ele e outros companheiros denunciado por medo de enfrentar maior violência por parte das autoridades que deveriam protege-los. Segundo a Anistia Internacional, "pessoas LGBT+ no Irã enfrentam discriminação generalizada, vivem com medo constante de assédio, prisão e processo criminal e permanecem vulneráveis à violência e perseguição com base em sua orientação sexual e identidade de gênero reais ou percebidas. De acordo com o Código Penal Islâmico do Irã, a conduta sexual consensual entre pessoas do mesmo sexo é criminalizada e punida com penas que vão do açoitamento à pena de morte”.(2) Apenas por ser percebida, baseada em estereótipos e preconceitos, uma pessoa pode correr risco de morte nessas sociedades que se deterioraram com o passar dos anos, tornando-se um exemplo de intolerância e antidemocracia, um perigo para qualquer pessoa que não reze na cartilha dos fundamentalistas intolerantes e seus seguidores. Os horrores continuam atuais nas teocracias muçulmanas. Ainda no Irã, Mehrdad Kaimpour e Farid Mohammadi, ambos com 32 anos haviam sido preso há seis anos, acusados de prática de relações homossexuais, sendo por isso condenados à morte por enforcamento no mês de janeiro de 2020. Conforme afirma Peter Tatchell(3), ativista LGBT+ e de direitos humanos, o Irã, juntamente com outros onze países de maioria muçulmana, aplica a lei da Sharia e impõe a pena de morte para pessoas LGBT+. Na Palestina essas pessoas têm direitos básicos negados e quando conseguem fugir para Israel vivem na clandestinidade e, em regra, têm seus pedidos de asilo rejeitados. Essa realidade para gays em Israel e na Palestina os torna pessoas inexistentes nos dois Estados. Resta, se conseguirem chegar a Israel, solicitar por meio de ONGs de apoio, asilo humanitário em terceiros países, na maioria das vezes no continente europeu. Localizada em Jerusalém, a organização de direitos humanos "alQaws for Sexual & Gender Diversity in Palestinian Society", é uma organização da sociedade civil que tenta contribuir "para a construção de uma sociedade palestina vibrante e justa que celebre as diversas sexualidades, orientações sexuais e gêneros”. Uma missão nobre mas de difícil realização face à realidade homofóbica e extremista da sociedade palestina. Não por menos, apesar de tratar exclusivamente dos direitos dos palestinos LGBT+, a organização se localiza em Israel e não na Palestina. Para os burocratas e extremistas locais, uma organização como a alQaws não passa de um alvo a ser combatido em nome da preservação de “ideais e valores da sociedade palestina”. A negação da existência de pessoas gays palestinas e o combate aos que insistam em protege-los ou evidenciar sua existência, seja assumindo-se publicamente gay ou apoiando aqueles que ousem “sair do armário” e fugir ao código heterossexual, são práticas comuns e aceitas pelas autoridades e famílias palestinas. Negar o óbvio em nome da hipocrisia, manutenção de costumes e leis draconianas fazem parte do dia a dia da sociedade palestina. Como afirmou a alQaws em nota contra as intimidações e ameaças da polícia a seus membros, a polícia e a sociedade palestina em geral deveriam "se concentrar no combate à ocupação e outras formas de violência que destroem o tecido sensível de nossa sociedade [palestina] e valores, em vez de processar ativistas que trabalham incansavelmente para acabar com todas as formas de violência”.(4) Forçados a procurar abrigo em Israel e tendo consequentemente a permanência recusada por serem considerados estrangeiros, palestinos que são submetidos a tortura e ameaçados de morte por sua sexualidade em sua terra natal continuam sendo muitas vezes perseguidos e chantageados também em solo israelense: Se você é gay e conhece alguém que conhece uma pessoa procurada pela polícia israelense, ela tratará de tornar sua vida miserável até que obtenham o que creem você poder informar, quer seja possível ou não. Enfim, fugir para Israel pode ser interpretado como uma traição à causa palestina, enquanto permanecer em território palestino não significa, necessariamente, uma garantia de sobrevida, pois continuarão catalogando quem for gay como pessoa suspeita. Os homens gays palestinos arriscam suas vidas na tentativa de cruzar a fronteira para Israel, onde, apesar de todos os riscos, alegam se sentirem mais seguros entre os israelenses do que com seu próprio povo. No meio da rivalidade dos dois Estados há um fosso no qual os gays palestinos se precipitam em busca de uma liberdade que dificilmente conquistarão.
Fortaleza, 12 de abril de 2022.
_________________________________
(1) Palestine.Disponível em: <https://www.humandignitytrust.org/country-profile/palestine/>. Acesso em: abr. 2022.
(2 )rã: Assassinato de homem gay destaca perigos de abusos sancionados pelo Estado contra pessoas LGBTI. Disponível em: <https://www.amnesty.org/en/latest/news/2021/05/iran-murder-of-gay-man-highlights-dangers-of-state-sanctioned-abuses-against-lgbti-people/>. Acesso em: 31 jan. 2022.
(3) Weinthal, B. O regime do Irã executou dois homens com base em acusações anti-gay. Disponível em: <https://www.jpost.com/breaking-news/article-695006>. Acesso em: 31 jan. 2022.
(4) Palestine.Disponível em: <https://www.humandignitytrust.org/country-profile/palestine/>. Acesso em: abr. 2022.
Artigo pungente
ResponderExcluirGrato!
ResponderExcluir