Na região norte da Etiópia uma guerra civil está em curso há quase dois anos. À frente das ações bélicas, pasmem, o prêmio Nobel da Paz, Primeiro Ministro etíope Abiy Ahmed. No artigo intitulado “Os impactos do conflito na Etiópia sobre populações civis da região”(1) de Luiza Batista Ferreira, uma análise sobre a desesperança dos que pensavam que a paz e a prosperidade econômica chegariam à Etiópia após o Primeiro Ministro assumir o cargo em 2018: "Embora a posse de Abiy tenha sido encarada como uma proposta de renovação para a Etiópia, o ministro já era membro do antigo governo, que ocupava o poder desde 1993, e realizava um papel de oposição interna no poder público. Suas principais promessas de campanha eram a soltura em massa de presos políticos do país, o aumento de liberdades para a sociedade civil e, principalmente, a realização de eleições livres e democráticas. Ainda que tenha cumprido algumas dessas propostas após tornar-se primeiro-ministro, como a libertação de presos políticos, Abiy não mudou consideravelmente sua posição em relação à sociedade civil e tampouco convocou eleições, adiando-as em razão da pandemia de COVID-19. O grande trunfo de Abiy foi pôr fim à guerra com Eritreia, questão que se alongava desde 1998, quando o conflito começou e deixou mais de 80 mil mortos em poucos anos. A assinatura do acordo de paz entre Abiy e o presidente da Eritreia, Isaias Afwerki, levou o etíope a receber o Nobel da Paz de 2019 e o colocou em uma posição de destaque internacional como político promissor para o continente africano. Pouco tempo após receber o Nobel, os conflitos étnicos na Etiópia intensificaram-se novamente e ficou claro que esse seria o maior desafio de Abiy enquanto ministro: conciliar o seu próprio projeto de fortalecimento da unidade nacional com as demandas das dez principais etnias que vivem no país. É válido lembrar que Abiy faz parte do povo Oromo, maior grupo étnico do país, que há tempos luta por maior autonomia da região de Oromia e mais representatividade política no governo federal. Outro grupo étnico envolvido em conflitos são os Tigrés, que ocupam a região do norte da Etiópia - de nome Tigré ou Tigray. Os Tigrés não compõem uma grande parcela da população do país, embora tenham governado a Etiópia por mais de 20 anos, até fevereiro de 2018, quando o então primeiro ministro, Hailemariam Desalegn, demitiu-se. Após a saída de Desalegn, Tigrés passaram a ser sistematicamente exonerados de cargos públicos”.
Os ataques violentos na região separatista nasceram de uma campanha militar bem articulada muito antes de que a guerra eclodisse. Movimentos clandestinos de tropas, meses de preparação silenciosa para uma guerra que segundo os planos de Ahmed deveria ser rápida e sem repercussão negativa internacional. O ditador da vizinha Eritréia que já tinha um "longo e amargo rancor" contra a Frente de Libertação do Povo Tigray, grupo revolucionário que luta pela autonomia regional, viu na guerra uma oportunidade de vencer seus rivais. Atualmente, vários bloqueios impedem o acesso de ajuda humanitária para os mais de sete milhões de tigrés, muitos impedidos de deixar a região, sofrendo ataques indiscriminados, assassinatos, expulsão de suas casas, além de violência sexual. "A população da região de Tigray, no extremo norte da Etiópia, enfrenta fome, falta de água potável, medicamentos, saneamento básico e atrocidades sexuais em massa, alerta o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Informes do último mês apontam que a região estaria à beira da fome e do genocídio. […] 'Vivendo em acampamentos lotados, crianças e famílias precisam urgentemente de comida, abrigo e água potável (...). Imunizações foram paralisadas, instalações de saúde e água foram danificadas ou destruídas e suprimentos essenciais foram saqueados', disse o comunicado do Unicef”.(2) É como se houvesse uma aprovação oficial vinda de Adis Abeba, sede do governo do país, para que forças ligadas ao regime promovam uma campanha de limpeza étnica no Tigray. Ataques organizados por grupos paramilitares oriundos da região vizinha, Amhara, são levados a cabo com aval do governo, que não quer negociar com lideranças locais. Milícias de Amhara se uniram às forças armadas etíopes e a outros aliados para forçar a rendição incondicional do Tigray, e submete-lo sem negociação ao poder central em Addis Abeba. União Africana, governos de países vizinhos e representantes da ONU devem pelo menos tentar, conjuntamente, dar uma chance às negociações, exercer alguma influência sobre Addis Abeba para conter essa campanha de limpeza étnica e de extermínio do povo tigré. Esse povo tem o direito de regressar a suas casas com segurança e obter uma resposta firme para os crimes hediondos que têm sido cometidos, impossibilitando uma negociação justa sobre o status político da região. Em vez disso, testemunha-se a negativa de grupos paramilitares e autoridades constituídas de Amhara a pelo menos permitir a entrada de ajuda humanitária a civis do Tigray. O fechamento de estradas impossibilita que suprimentos e combustível cheguem à região, o que obriga as diferentes organizações de ajuda humanitária a interromper seu trabalho. Também em Mekelle, capital do Tigray, os efeitos macabros das ações paramilitares, a escassez de víveres, medicamentos e até mesmo de água potável vem, como em toda a região, trazendo o aumento da fome e do desespero na população. Parece que o abuso dos civis, maiores vítimas no fogo cruzado dessa guerra insólita que continua a se desenrolar na Etiópia, não vem sensibilizado a comunidade internacional que atualmente tem seus olhos voltados quase exclusivamente para a invasão russa na Ucrânia.
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