POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

O voo solitário do guerreiro Aruká

 


Aruká (Foto: Odair Leal/Amazônia Real-2014)



Aruká era um símbolo de resistência a todo esse massacre — por arma de fogo, mas também por doenças que são levadas pelo não indígena para dentro das aldeias, que é uma forma de genocídio e etnocídio cultural

(Ivaneide Bandeira, indigenista)



Os Juma são parte dos povos da família linguística Tupi-Guarani denominados Kagwahiva. Já somaram mais de 15 mil no século XVIII  mas após sucessivos massacres e a expansão das frentes invasoras extrativistas foram reduzidos a poucas dezenas na década de 1960. Em 2002 sobreviveram apenas cinco índios Juma aos sucessivos massacres e ao descaso governamental. Em uma aldeia a mais de mil quilômetros de Manaus vivia o último sobrevivente da etnia Juma, povo da família linguística Tupi-Guarani, que sofreu, nos anos 1960, vários massacres em resposta à heróica defesa de seus territórios das constantes invasões de seringalistas e exploradores de castanha. Com ele, o pequeno grupo de sua etnia chegou ao Século XXI, vulnerável e desassistido. Os Juma formavam uma etnia numerosa que foi atacada também por garimpeiros em busca de ouro e diamantes provocando sua dispersão territorial. Após sucessivos massacres perpetrados pelos invasores, somados ao descaso governamental, uma população de milhares de Juma se viu reduzida a apenas 100. A situação piorou no período da Ditadura Militar, quando ocorreu o maior massacre aos Juma, que levou à efetiva extinção da etnia. Seringalistas e comerciantes/extrativistas de castanha invadiram suas terras e assassinaram mais de 60 dos remanescentes Juma: “Crianças, mulheres e homens foram mortos a tiros na defesa dos territórios”.(1) O líder indígena Aruká, naquela altura com cerca de 15 anos, sobreviveu a esse massacre a seu povo mas hoje, nos seus 80 anos não conseguiu venceu a batalha contra a Covid-19. Com insuficiência respiratória, morreu em um hospital de Rondônia em consequência do vírus que também vem causando perdas irreparáveis a outros indígenas de diferentes etnias, principalmente na região amazônica. Mortes causadas também pelo descaso dos governos em seus diferentes níveis, mas principalmente no nível federal, que tem se mostrado inepto para tomar as medidas necessárias à proteção dos povos indígenas da pandemia e suas consequências. Aruká recebeu o tratamento “placebo" preventivo em um hospital do Amazonas, com o emprego de medicamentos anti-covid defendidos pelo presidente Bolsonaro e seu Ministro da Saúde: 

Na terça-feira (16), a agência Amazônia Real recebeu informações de uma profissional da Casai Humaitá, pelo Whatsapp, descrevendo que o guerreiro Aruká Juma recebeu medicamentos não indicados para o tratamento de Covid-19 no Hospital Sentinela, de Humaitá. Segundo a profissional, na lista de medicamentos prescritos no tratamento constavam azitromicina, ivermectina, nitazoxanida e sulfato de zinco. "Esse remédios fazem parte do coquetel do 'tratamento precoce promovido pelo governo do presidente Jair Bolsonaro e que não são reconhecidos para paciente de Covid-19 pela OMS, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). Procurado pela reportagem, o assessor do Conselho Distrital Indígena (Condisi), do Ministério da Saúde, Aurélio Tenharim, disse que quando esteve doente de Covid-19 foi medicado com o “tratamento precoce”, confirmando a administração dos remédios sem eficácia, inclusive no ancião Juma. “O mesmo medicamento que eu tomei, ele [Aruká Juma] tomou também. O médico prescreve aquilo lá [tratamento precoce]”, afirmou Aurélio. As filhas de Aruká Juma, Borehá, Maitá e Mandeí afirmam que não foram informadas sobre o tratamento com medicamento não eficaz para a Covid-19 na assistência ao pai pelo Hospital Sentinela. (2)


Trata-se de povos indígenas de contato recente que já se encontram em extremo risco de contrair doenças, o que se agravou com a pandemia de Covid-19. As Organizações Indígenas(3) já haviam denunciado a ausência de políticas para a proteção dos povos indígenas e em dura nota aberta expuseram sua posição face à morte de Aruká: 


É desoladora a morte por complicações de Covid-19 do último homem do povo Juma, o guerreiro Amoim Aruká. O povo Juma sofreu inúmeros massacres ao longo de sua história. De 15 mil pessoas no início do século XX, foi reduzido a cinco pessoas em 2002. Um genocídio comprovado, mas nunca punido, que levou seu povo quase ao completo extermínio. O último massacre ocorreu em 1964 no rio Assuã, na bacia do rio Purus, perpetrado por comerciantes de Tapauá interessados pela sorva e castanha existente no território Juma. No massacre foram assassinadas mais de 60 pessoas, apenas sete sobreviveram. Integrantes do grupo de extermínio contratados pelos comerciantes relataram atirar nos Juma como se atirassem em macacos. Os corpos indígenas foram vistos por ribeirinhos da região, após o massacre, servindo de comida para porcos do mato, inúmeras cabeças decapitadas espalhadas pelo chão da floresta. O mandante do crime, ciente do ocorrido, se vangloriou por ter sido o responsável de livrar “Tapauá dessas bestas ferozes”. Essa história jamais deve ser esquecida. Aruká, um dos sobreviventes, continuou sua luta de resistência, vendo seu povo beirar o desaparecimento. Lutou pela demarcação do território Juma, que foi homologado apenas em 2004, a Terra Indígena (TI) Juma. Os sobreviventes Juma, apesar do risco de desaparecimento, viram seu povo crescer novamente na década de 2000, por meio de casamentos com indígenas Uru Eu Wau Wau, povo indígena também de língua Tupi-Kagwahiva. Por estarem sujeitos a uma imensa vulnerabilidade e risco de desaparecimento, o povo Juma é considerado de recente contato e consta entre os povos a serem protegidos por Barreiras Sanitárias, cuja instalação foi determinada pelo Supremo Tribunal Federal a pedido dos povos indígenas, de representantes da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), por meio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 709 (ADPF 709). O pedido foi feito em julho de 2020 e o Ministro Luís Roberto Barroso deferiu. Porém, diante das dificuldades alegadas pelo Governo Bolsonaro, o ministro deu o prazo de até setembro de 2020 para que as Barreiras na TI Juma fossem instaladas. Em agosto de 2020 o Governo Bolsonaro disse que iria fazer a Barreira no rio Assuã, na REBIO Tufari, fora da TI Juma, seria uma Barreira Sanitária composta pela Polícia Militar e DSEI-Humaitá. No entanto, em dezembro do mesmo ano, afirmou que faria apenas um posto de controle de acesso na BR 230 - Rodovia Transamazônica, mas não comprovou o seu efetivo funcionamento. Se o posto de acesso funcionou ou não, como vinha representantes da COIAB e APIB cobrando há meses nas Salas de Situação com o Governo Bolsonaro, já não importa mais para Aruká. O que se sabe, comprovadamente, é que ele agora está morto. É tristemente com seus mortos que os povos indígenas comprovam seus apelos. A COIAB e APIB avisaram que os povos indígenas de recente contato estavam em extremo risco. O último homem sobrevivente do povo Juma está morto. Novamente, o governo brasileiro se mostrou criminosamente omisso e incompetente. O governo assassinou Aruká. Assim como assassinou seus antepassados, é uma perda indígena devastadora e irreparável. 


Os últimos descendentes do guerreiro se casaram com indígenas da etnia  uru-eu-wau-wau. Isso significa que os descendentes de Aruká carregam no sangue as duas etnias e, segundo o sistema patrilinear, são Uru-eu-wau-wau, e não Juma. "É por isso que Aruká era considerado o último guerreiro de seu povo”.(4)



Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá

Fortaleza, 18 de fevereiro de 2021.


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1) Brasil, K. Índios Juma, uma história de abandono e sobrevivência na Amazônia. Disponível em: <https://amazoniareal.com.br/indios-juma-uma-historia-de-abandono-e-sobrevivencia-na-amazonia/>. Acesso em 18 fev. 2021.

2) Kaxinawá, L. Morre de covid-19 o guerreiro Aruká, o último homem do povo Juma. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/02/18/morre-de-covid-19-o-guerreiro-aruka-o-ultimo-homem-do-povo-juma.>. Acesso em 18 fev. 2021.

3)A devastadora e irreparável morte de Aruká Juma. https://coiab.org.br/conteudo/a-devastadora-e-irreparável-morte-de-aruká-juma>. Acesso em 18 fev. 2021.

4) Gragnani, J. 'Governo não cuidou, e agora temos que manter legado', diz neto de último indígena Juma morto por covid-19. Disponível em: https://www.bol.uol.com.br/noticias/2021/02/21/governo-nao-cuidou-e-agora-temos-que-manter-legado-diz-neto-de-ultimo-indigena-juma-morto-por-covid-19.htm. Acesso em 18 fev. 2021.


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A última colônia

 



                                Mapa do Sahara Ocidental


A população do Saara Ocidental enfrenta a violência da guerra contra o Marrocos que deseja anexar o território, enquanto os sahauarís reivindicavam independência. Grande parte da população sahauarí teve que fugir para o país vizinho, a Argélia, por não ter como resistir à violência do exército marroquino, maior e mais bem treinado do que os combatentes da Frente Polisário. O conflito armado que durou de 1975 a 1991 com efeitos permanentes se reacende com a violação do acordo de paz, pelos marroquinos, em novembro de 2020.


O Saara Ocidental é um país localizado na África Setentrional, que se limita a norte pelo Marrocos, a leste pela Argélia, a leste e sul pela Mauritânia e a oeste pelo Oceano Atlântico, onde ainda faz fronteira marítima com as Ilhas Canárias (Espanha). A sua capital é El Aiune. Com seus 266.000 km² o Saara tem aproximadamente o tamanho do Reino Unido (242.495 km²) e do estado de São Paulo (248.209 km²). O povo original, os saharauís, é refém de uma violenta ocupação de seu território pelo Marrocos, que ocorreu imediatamente depois de conquistar sua independência dos colonizadores espanhóis em 1975. Em vez de festejar sua libertação das amarras coloniais tornou-se, por meio da força dos invasores marroquinos, a última colônia no continente africano. Há mais de quarenta anos o povo saharauí continua sua luta para recuperar a independência conquistada após a saída dos espanhóis. Uma luta desigual e complexa quando se compara o poderio bélico do Marrocos e o da Frente Polisário (acrônimo de Frente Popular para a Libertação de Saguia el-Hamra e Rio do Ouro) que luta para a libertação do país e recentemente voltou a declarar guerra ao Marrocos. Por outro lado, testemunha-se a falta de apoio internacional para a luta sahauarí que se deve a interesses específicos dos diferentes países com participação direta ou indireta no conflito. A Espanha divide sua fronteira marítima ao sul com o Marrocos e depende do país africano para conter os avanços dos milhares de imigrantes ilegais que tentam atravessar essa fronteira; a França, que colonizou o Marrocos e manteve boas relações com o país posteriormente funciona como um apoiador para que não se concretize a consulta sobre a independência; outros países, incluíndo o Brasil, não querem deixar de fazer negócios com o Marrocos, nem mesmo se tratando da aquisição do fosfato explorado ilegalmente em suas terras ou do pescado dos mares sahauaris, o que para a população local é considerado um roubo que contribui para seu empobrecimento enquanto enche os bolsos dos generais marroquinos e do rei Mohammed VI: "O Saara Ocidental não será um território autônomo até a descolonização. Portanto, qualquer presença de empresas internacionais ou acordos com o ocupante marroquino são ilegais de 1975 até hoje. Qualquer exploração dos recursos naturais no Saara Ocidental sem o consentimento do povo saharauí é ilegal e é um roubo. Exigimos dessas empresas que parem de saquear nossos recursos até o fim do conflito, pois o dinheiro dos investimentos no Saara Ocidental vai para os bolsos dos generais marroquinos e do corrupto rei Mohammed VI, que ocupam nosso território ilegalmente. Exigimos que todas as empresas deixem nosso território imediatamente, especialmente neste atual estado de guerra”.(1) Apenas a Argélia continua apoiando a luta dos vizinhos e mantém em seu território vários acampamentos para o povo sahauarí que foge das armas letais e das minas instalados pelos invasores marroquinos. Desses acampamentos, em uma espécie de governo de exílio, saem as diretrizes dos seus líderes para a continuação da luta pela liberdade. Enquanto isso, para conter os revolucionários independentistas, o Marrocos desenvolveu a conhecida política de ocupar o território com seu povo e assim enfraquecer a população local. Quando ainda não fazia um ano da ocupação já haviam sido deslocados pelo menos 350 mil marroquinos para ocupar cidades sahauarís. "A ONU, que acompanha o caso há muito tempo, propõe que seja feito um referendo de autodeterminação para decidir sobre a independência. O Saara Ocidental pede que o referendo seja realizado com a população que já vivia no país em 1974, antes da ocupação marroquina ter início. O Marrocos, contudo, deseja uma consulta com toda a população, que inclui a grande parcela de marroquinos que ali vivem”.(2) Chaba Seini Brahim, integrante da União Nacional das Mulheres Saharauis (UNMS) e da Marcha Mundial das Mulheres fala sobre o caráter patriarcal e violento da ocupação marroquina desde seu início em 1975.  Segundo Brahim, sempre atuaram repressivamente e com mão de ferro contra os cidadãos saharauís e ativistas de direitos humanos, o que se intensificou ad extremum quando a Frente Polisário declarou guerra em novembro de 2020, depois que o exército marroquino violou o acordo de paz ainda vigente. "A maioria dos nossos ativistas saharauís estão em prisão domiciliar obrigatória, com a polícia na porta de suas casas. A intimidação é tamanha que esses ativistas não podem nem receber visitas ou sair de casa sem serem seguidos pela polícia”.(3) A militante afirma que na comunidade internacional não há resposta à altura das preocupações com a integridade do povo detido e com as violações de direitos humanos que atingem a todos. Também se queixa do pífio efeito do mandato da Minurso (Missão das Nações Unidas para o Referendo do Saara Ocidental) que deveria servir para implementar a consulta sobre a independência, proteger o povo sahauarí e os direitos humanos em sua missão no Saara Ocidental mas apenas cria esperanças para uma solução pacífica do conflito que nunca vem.  Por essa razão a ONU cai, cada vez mais, no descrédito da maioria dos saarauís, que perdem a confiança no processo de paz, o que aumenta a sensação de abandono com relação à comunidade internacional, e o temor da inevitabilidade da guerra.(4) Para o ativista de direitos humanos Jamaa Baih, a Espanha é a principal responsável pela ocupação marroquina e pelo atual conflito que, segundo ele, só deve terminar quando o referendo prometido pela ONU há quase trinta anos trouxer a libertação completa dos territórios sob ocupação marroquina. 


Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá

Fortaleza 19 de fevereiro de 2021.


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1) CAPIRE. A luta da mulher no Saara Ocidental: ativista traz a luta de um povo sob ocupação. 2021. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/02/18/ate-que-nossos-territorios-sejam-livres-mulheres-do-saara-ocidental-em-luta>. Acesso em 18 fev. 2021.

2) SANZ, B. Entenda o conflito do Saara Ocidental, a última colônia africana. 2018. Disponível em: <https://noticias.r7.com/internacional/entenda-o-conflito-do-saara-ocidental-a-ultima-colonia-africana-23092018)>. Acesso em 18 fev. 2021.

3) CAPIRE. A luta da mulher no Saara Ocidental: ativista traz a luta de um povo sob ocupação. 2021. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/02/18/ate-que-nossos-territorios-sejam-livres-mulheres-do-saara-ocidental-em-luta>. Acesso em 18 fev. 2021.

4) O fracasso da missão de paz da ONU no Saara Ocidental. 2017. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/mundo/o-fracasso-da-missao-de-paz-da-onu-no-saara-ocidental/>. Acesso em 18 fev. 2021.


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

"Bharat bandh": A maior greve geral do mundo para a Índia!




                                            Foto: Site Uol - Manifestantes em greve na índia


Em novembro de 2020 ocorreu na Índia o que pode ser considerado um dos maiores protestos da história da humanidade, quando milhares de trabalhadores da terra marcharam até a capital para protestar contra a proposta de nova legislação do governo central. Mais de 250 milhões de pessoas em todo o subcontinente participaram de uma greve geral que uniu diferentes categorias de trabalhadores e estudantes por cerca de 24 horas. O movimento popular de massa que teve repercussão em todo o mundo obrigou o governo a ouvir dos representantes dos manifestantes o que reivindicavam, em vez do procedimento habitual de reprimi-los e hostiliza-los.

Em pleno ano pandêmico, a greve planejada por três meses culminou com adesão quase total dos trabalhadores e com a paralisação e fechamento de cerca de 15 cidades, com participação massiva em todo o país. Bancos, transportes, comércio, serviços públicos, construção e indústria em muitas partes do país fecharam suas portas. Os trabalhadores bloquearam rodovias e trilhos de trem, com seus corpos, fizeram barricadas e queimaram pneus. Carros de polícia e prédios do governo foram atacados em alguns lugares. (Martha Grevatt)1. Os primeiros protestos ocorreram após se tomar conhecimento da mudança na legislação mesmo antes de ser aprovada. A revolta se consolidou quando houve a aprovação da controversa legislação pelo parlamento, levando à  convocação de um “Bharat bandh”, que em hindi significa o chamamento para uma greve geral e quer dizer, literalmente, “Fechar a Índia”. Dos estados de Punjab, Haryana e outras localidades os protestos foram levados à capital Nova Delhi.

A fúria dos trabalhadores do campo começou a ser acirrada pelo Primeiro-Ministro, Narendra Modi bem como por conta do seu programa de 12 pontos, considerado abertamente anti-trabalhador. Outras reivindicações foram incluídas na agenda grevista e tratavam de problemas que atingiam a população em geral e não apenas os agricultores como as altas taxas de desemprego, inflação, baixos salários e pensões em um país em que dois terços da população vivem com menos de US $ 2 por dia; cerca da metade desses são considerados “extremamente pobres”, sobrevivendo com US $ 1,25 por dia ou menos. (Martha Grevatt)2. Os grevistas apoiam também outras causas, como por exemplo aquelas que dizem respeito à nomeada Lei de Cidadania, com a qual o Primeiro-Ministro quer que seja negada a cidadania a muçulmanos.

Mais da metade da força de trabalho do país está ligada a atividades na agricultura, que na Índia ainda mantém suas tradições e é também a maior fonte de sustento da população. Isso ocorre por meio de pequenas fazendas locais. Os mesmos agricultores que alimentam a grande nação se encontram em situação precária, uma herança da colonização britânica predatória, da atual política governamental burocrática e opressora somadas à exploração desses agricultores pelos proprietários de terra, além dos efeitos visíveis das mudanças climáticas. A Índia é o terceiro maior emissor mundial de gases de efeito estufa e sofre as consequências, principalmente na agricultura, desse título. A pandemia se somou a essa vasta lista de problemas precipitando a população do campo para o abismo das dívidas e perdas que os incapacitam e os empobrecem cada vez mais.

O governo de Modi e suas medidas de “apoio" aos agricultores e fazendeiros vendidas como uma contribuição para o avanço e a desburocratização para o setor eram na verdade um "presente de Odisseu". Foram, portanto, rejeitadas porque de fato aumentariam em momento posterior a situação de penúria em que vivem. A aparente oferta de uma saída que permitiria vender os produtos do campo diretamente e para mais compradores tiraria o pouco apoio que ainda lhes é concedido e abriria uma porta para que fossem explorados por grandes empresas e corporações do agronegócio. Com essas proteções sendo descartadas, incluindo a garantia de mercados com base no governo e em estruturas que estabeleçam preços mínimos para os produtos, pouco restaria para impedir as grandes empresas agrícolas da Índia de terem o controle do mercado, tornando-os completamente submissos e dependentes. (Nitish Pahwa)3.

A massa de pobres de um lado e, do outro, os enormes lucros das empresas, especialmente as multinacionais estadunidenses por meio da exploração sem precedentes de uma mão de obra quase escravizada é o quadro atual da economia indiana. Os Estados Unidos são o quarto maior investidor na Índia. Não por menos a proximidade que sempre teve o bilionário presidente Trump dos EUA com Modi, que sempre elogiou abertamente a política do correligionário norte-americano e seu discurso de querer fazer uma América “grande novamente” independente do que isso significasse de mal para o mundo. Em resposta a seus elogios e alinhamento, Trump cultivou um discurso anti-muçulmano e enalteceu o trabalho de Modi. "Uma coisa deve ficar clara para os trabalhadores e oprimidos aqui no ventre da besta: na Índia, como aqui, há uma batalha entre duas forças de classe antagônicas. Nossa luta é ao lado dos 250 milhões de trabalhadores, camponeses e estudantes que fecharam seu país em 8 de janeiro.”(Martha Grevatt)4. 

250 milhões de pessoas protestando e em greve é um número gigante que não pode ser ignorado, nem mesmo na superpovoada Índia. A sua mega dimensão pode ser medida ao se comparar com protestos que tiveram repercussão mundial e reuniram grandes contingentes em diferentes países, a exemplo da manifestação contra o presidente americano George W. Bush de invadir o Iraque em 2003 que reuniu de 10 a 15 milhões de pessoas em mais de 600 cidades em todo o mundo e dos protestos gerados pela brutalidade policial contra os negros nos EUA que tiveram a participação de até 26 milhões de pessoas somente naquele país, culminando com o movimento contra a discriminação “Black Lives Matter - Vidas Negras Importam”. (Nitish Pahwa)5.

O movimento grevista na Índia continua e resiste aos ataques do governo. Em 3 de fevereiro, os agricultores prometeram fortalecer o protesto, se necessário, até conseguir derrubar o atual governo, caso as leis agrícolas não sejam revogadas, mesmo já tendo sido, temporariamente, suspensa a sua implementação. Apesar de ser um governo chefiado por um Primeiro-Ministro que vem se provando cada vez mais truculento, sem se utilizar de diplomacia ou demonstrar qualquer respeito com os movimentos populares, ao contrário do que se espera para aquela que é considerada a maior democracia do mundo, não significa que o povo indiano abra facilmente mão de suas lutas em defesa do pouco que lhes resta em soberania agrária e direitos trabalhistas. 


Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá

Fortaleza, 10 de fevereiro de 2021.


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1) Disponível em: <https://www.workers.org/2020/01/45470/>. Acesso em fevereiro de 2021.

2) idem

3) Disponível em: < https://slate.com/news-and-politics/2020/12/india-farmer-protests-modi.html>. Acesso em fevereiro de 2021.

4) Disponível em: <https://www.workers.org/2020/01/45470/>. Acesso em fevereiro de 2021.

5) Disponível em: < https://slate.com/news-and-politics/2020/12/india-farmer-protests-modi.html>. Acesso em fevereiro de 2021.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Os ditadores e a dama da paz




                        Birmaneses protestam em Tóquio contra militares de Mianmar

                        e pela libertação de Aung San Suu Kyi.


O país pode ser chamado de Birmânia, Burma ou Mianmar, pois para a junta militar, o que importa é destruir o que resta de sua democracia e manter seu controle a qualquer custo. A “terra dourada”, antes conhecida por suas riquezas naturais e relativa paz social, já não recebe qualquer benefício resultante do esforço e do trabalho excessivo de sua população, que quase escravizada, é mantida à margem das decisões política.  Os militares, que permaneceram décadas à frente do país, sempre comandaram ditaduras sanguinárias e novamente não aceitaram a vitória clara da oposição nas últimas eleições de novembro de 2020. O partido "Liga Nacional para a Democracia", liderado pela Prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, não pode, portanto, sentir o gosto da vitória por muito tempo. As Forças Armadas anunciaram na madrugada desta segunda-feira (1º/02) a tomada do poder no país asiático. O golpe se consumou com a prisão da líder de facto, Aung San Suu Kyi, e outros membros importantes do seu partido no comando do governo, juntamente com o presidente eleito Win Myint. Antes de ser detida pelos algozes da ditadura que se reinstala em Mianmar, Suu Kyi escreveu afirmando que as ações dos militares colocaram o país novamente sob uma ditadura e pediu aos partidários apoiadores para não aceitar esse desfecho e para que os correligionários protestem contra esse novo golpe.  A história dos Estados Unidos através da CIA em Mianmar remonta aos anos 1950 quando mantinha seu apoio ao tráfico de drogas como um bastião na luta contra a China comunista, ajudando a converter o “Triângulo de Outro" (Tailândia, Laos e Mianmar) no maior produtor mundial de ópio.  As conturbadas relações diplomáticas entre os dois países se aprofundaram nos períodos dos subsequentes golpes militares que enfraqueceram a democracia local e tornaram a vida dos opositores e da população em um verdadeiro inferno. Após este mais recente golpe militar, Os Estados Unidos voltam à cena e ameaçam reimpor sanções ao país. O governo estadunidense recém eleito pensa em reinstituir as sanções suspensas após 2011, quando Mianmar havia saído da ditadura militar que já durava décadas. O presidente Joe Biden classificou as ações do Exército birmanês como um ataque direto à transição rumo à democracia e ao Estado de Direito que vinha se delineando em Mianmar. A transição à democracia acordada após 2011 que possibilitou a suspensão de sanções contra Mianmar mal completou uma década.  No entanto, o fim desses esforços para a transição democrática pode levar o governo dos Estados Unidos e de outros países ocidentais a retomar as sanções que façam com que os militares venham a suspender o golpe. Sanções que também, mais uma vez, trarão sofrimento a uma população já massacrada e sem esperança pela permanente situação de miséria do país. A experiência da maior líder política de Mianmar com as agressões dos militares contra ela e seu povo que se testemunha em 2021, já vem da década de 1980 com seu ápice em 1990, através do golpe militar, que proibiu a organização e atuação de qualquer partido de oposição ao regime. Como consequência da sanguinária atuação das forças armadas nesse golpe de 1990, os EUA forçaram um isolamento diplomático do país. Devido a seu histórico de repressão direcionada principalmente  contra os civis, como ocorreu em 1988 com o brutal ataque a estudantes durante as manifestações pró-democracia, os EUA retiraram, em protesto, seu embaixador do país, que ficou isolado diplomaticamente. Dois anos depois, a Casa Branca adotou sanções econômicas em desagravo às eleições de 1990, quando apesar da vitória da líder oposicionista, a cúpula militar não reconheceu o resultado. Os mesmos militares que transformaram Mianmar, com seus subsequentes golpes, em uma das mais pobres nações do planeta, com um crescimento vertiginoso de várias mazelas: aumento do trabalho infantil, decadência econômica e perseguição política generalizada. O povo birmanês contava com mudanças que poderiam vir com o novo governo por ele escolhido nas urnas; mudanças essas asseguradas pela participação de Aung San na configuração da equipe do presidente eleito. O partido militar foi o grande derrotado nas últimas eleições e se recusou a aceitar os resultados, pois significaria abrir mão de seus privilégios e do controle absoluto do país. A experiência já mostrou aos birmanêses o que significa esse controle: prisão arbitrária de políticos e religiosos que se manifestem contra seus desmandos, negócios espúrios e corrupção. Apesar da má reputação internacional por ações políticas em detrimento da minoria Rohingya no país, Aung San continua sendo uma referência para os birmanêses e a única esperança de luta a favor da população no combate à ditadura militar que afronta diretrizes de órgãos internacionais, abriga abertamente patrocinadores do narcotráfico e leva o país à ruína. Todos os que torcem pela vitória da democracia em Mianmar acreditam que os apelos do partido de Aung San Suu Kyi para a imediata libertação de sua líder sejam atendidos imediata e incondicionalmente pelos golpistas. Espera-se que a veemente condenação internacional somada às ameaças vindas de Washington de adotar sanções contra o governo ilegítimo e uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU para tratar do tema pressionem os militares a recuarem e a devolver o poder aos legítimos representantes do povo birmanês escolhidos nas urnas. "O Exército tem que reconhecer o resultado das eleições de novembro!”



Antonio C. R. Tupinambá

Fortaleza, 02 de fevereiro de 2021.