POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

O mundo não pode virar as costas para o Sudão



Apenas mais uma guerra no Sul Global? É esse o sentimento que se tem quando são ignorados os conflitos em países africanos. Não importa a dimensão do conflito, a região não é midiática, é desimportante e disponível para as investidas dos senhores da guerra. O mundo só têm olhos para conflitos na Europa e no Oriente Médio. Enquanto isso, a população sudanesa tenta sobreviver mesmo com a grande escassez de comida e sem qualquer assistência médica. A morte ronda milhares de sudaneses em sua capital Cartum e noutras cidades como Darfur. O conflito entre o Exército sudanês e as nomeadas Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês) é responsável pela violência que domina o país desde o mês de abril de 2023, quando se planejava uma transição para um governo civil. O quadro é desolador. Deslocamento de mais de quatro milhões de pessoas, quase um milhão delas fugiu para países que fazem fronteira com o Sudão. Centenas de mortos em ataques bélicos indiscriminados. Um aumento significativo de agressões sexuais completa o quadro de terror. Aquelas pessoas que ficam para trás nas cidades sofrem com os saques, falta de energia e de água, além de se manterem praticamente incomunicáveis. Um país com história de instabilidade política na África que sofre, desde sua independência em 1956, com o efeito de governos autocráticos e muitas disputas entre militares, supostos líderes e milícias. Até o ano de 2011 havia somente um Sudão, cujo nome tem origem em dialetos árabes e significa terra dos homens negros". Já fez parte do Reino Unido e do Egito, de quem obteve sua independência em 1956. Como no Egito, também corre no seu solo o rio Nilo e tem à fronteira oriental o Mar Vermelho. Depois de muitas disputas internas e um referendo nascia um novo país nas suas terras ao sul e, não por menos, se chamaria Sudão do Sul. Esta nova nação que corresponde a um terço do território do vizinho ao norte e tem uma população predominantemente cristã e animista (94%) em contraste com o atual Sudão de maioria muçulmana (70%) é agora um Estado soberano na África, o 193o membro da comunidade internacional. Destino semelhante ao da Eritreia, sua vizinha de fronteira e antiga colônia italiana que havia sido incorporada à Etiópia. Após o resultado de um referendo, a Eritreia também obteve o reconhecimento formal da sua independência em 24 de Maio de 1993.  Assim como no caso da Eritreia e da Etiópia, as relações entre o Sudão e o Sudão do Sul, longe de estarem normalizadas, são caracterizadas por retrocessos e avanços no que tange a negociações sobre questões que não foram resolvidas, como a partilha de recursos, o traçado de fronteiras, decisões na área monetária e a definição sobre os mínimos direitos de cidadania.(1) Localizado no centro-norte africano, com geografia de regiões desérticas e tropicais, o Sudão é detentor de uma história rica e antiga apesar de não tão conhecida como a do seu vizinho ao norte, o Egito. O país abriga milhares de construções antigas que pertenceram ao reino de Cuche, uma superpotência da África com larga influência regional. Este reino chegou a conquistar o Egito, governando-o por décadas. Diversas tribos, dentre elas aquelas formadas pelos povos mais conhecidos, os núbios, iniciaram o processo de habitação da região sudanesa. O Sudão, como é conhecido atualmente, nunca experimentou estabilidade econômica ou política que valesse a pena ser registrada, nem antes e nem depois da divisão. Com uma população eminentemente jovem resultante de uma elevada taxa de natalidade, depende quase completamente da exploração de petróleo para a geração de emprego, renda e sobrevivência. Povoado por muitas e diferentes tribos, tornou-se uma nação multiétnica e multilinguística. A divisão do seu antigo território em dois países independentes não conseguiu, como esperado, trazer paz para a região. O referendo que criou o mais novo país foi realizado em 2011 e teve um resultado acachapante a seu favor, com a aprovação de 98,8% dos votantes. A separação do país com fronteiras imprecisas e conflitos permanentes pelas disputas por regiões ricas em petróleo fez com que uma guerra civil nacional se tornasse um conflito internacional.  


Foto:/AFP/Getty Images


Apesar do Sudão já ter experimento a realidade cruel de outros distúrbios violentos, hoje Cartum, sua capital, protagoniza confrontos ininterruptos que assolam a vida dos seus habitantes, incluíndo aqueles que ali estão temporariamente por razões de trabalho ou estudo. Por trás das ações destruidoras estão as forças do exército lideradas pelo seu atual presidente, o general Abdel Fattah al-Burhan e o grupo paramilitar conhecido por Forças de Apoio Rápido (FAR), liderado pelo vice-presidente, o general Mohamed Hardan Dagalo ou, como é mais conhecido, Hemedti. Abdel Fatah al-Burhan entrou em cena em 2019 quando o Exército derrubou o ditador Omar al-Bashir, que vinha enfrentando uma onda de protestos contra seu (des)governo no país. Bashir foi um governante corrupto e acusado de crimes contra a humanidade (homicídio, tortura, extermínio, estupro), crimes de guerra (ataque intencional a populações civis) e genocídio na região sudanesa de Darfur. Também é alvo de dois mandados de prisão pelo Tribunal Internacional de Crimes de Guerra (Den Haagen — Países Baixos). Com o golpe de 2022, o Primeiro Ministro Abdalla Hamdok foi derrubado, e Buhran pôs fim a qualquer plano de transição democrática, reforçando seu controle autocrático sobre o país. O general Abdel Fattah al-Burhan, então chefe do conselho de transição do país para uma democracia anunciou estado de emergência e dissolveu o próprio conselho e o governo de transição, então comandado por Hamdok. Testemunhava-se mais um golpe em um país africano, com a tomada de poder pelos militares, após a prisão do primeiro ministro interino, Hamdok, ministros e outras autoridades civis. Na atual disputa entre Buhran e a RFS acusações mútuas são feitas para justificar a guerra. O chefe do Exército, general Abdel Fattah al-Burhan, acusa a RSF de querer levar o país de volta a um modelo de governo arcaico, distante daquele que se conhece atualmente, para que se permita a prática de crimes inimagináveis. Por outro lado, a RSF acusa o Exército de tentar tomar o poder por meio de partidários de Omar al-Bashir, líder autocrata derrubado na revolta popular de 2019. Os combates começaram após meses de tensões entre esses dois líderes militares rivais. Fortes interesses econômicos dão lastro ao atual conflito, ou seja, entra no jogo do poder o controle de recursos minerais. O Sudão possui consideráveis reservas de ouro, que interessam, por exemplo, à Rússia. O ditador Bashir já havia afirmado anteriormente ao presidente russo, Vladimir Putin, que o Sudão poderia ser "a chave da África" para seu país. Não por acaso a milícia russa privada conhecida por Wagner” é acusada de desenvolver operações militares no Sudão, o que em vez de ajudar a resolver, acirra o conflito. Há uma empresa de fachada desse grupo miliciano russo, que segundo autoridades norte-americanas, recebeu o direito de exploração de minas sudanesas em parceira com as FAR. Como afirmou Marc Lavergne, diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, há um projeto russo para a África, qual seja, tomar a África pelo Darfur (oeste do Sudão), a partir do interior, ou pela costa a partir de Porto Sudão. Portanto, a Rússia joga com a estratégia e o enfraquecimento do Ocidente fortalece a sua imagem na região. "Em suma, enquanto o Ocidente virou as costas para o Sudão, por meio de sanções e distanciamento por causa do massacre de Darfur, a Rússia teceu laços que aproximaram as duas nações nos âmbitos comercial, militar e estratégico”.(2) A guerra em curso impossibilita o retorno ao país de um governo civil e democrático, além de fazer com que nenhum estrangeiro, nem mesmo os funcionários das Nações Unidas, se sintam seguros quanto a permanecer no país, pois sabem o grau de instabilidade e risco concreto de se tornarem mais um número na estatística macabra desse conflito insano. Combates ininterruptos em Cartum, capital do país, além de colocar os cidadãos no meio do tiroteio, destroem a rede elétrica, inviabilizam a distribuição de alimentos e tornam precário o funcionamento da internet e dos meios de comunicação. A maioria dos países trata de retirar seus funcionários de embaixadas enquanto muitos estudantes estrangeiros, inclusive de outras nações africanas e do Oriente Médio, já viveram horas de desespero por que não tinham os meios de deixar o Sudão para qualquer outro lugar que lhes parecesse uma alternativa mais segura. No presente momento, o chefe do exército e ainda atual chefe de Estado de facto do país, Abdel Fattah al-Buhran, nomeou Kanil Idris (ex-funcionário das Nações Unidas) para o posto de Primeiro-Ministro, sob o fogo de uma guerra civil que já dura mais de três anos. Nesse período de incertezas, morreram milhares de pessoas, a infraestrutura do país continua sendo destruída e o deslocamento de sudaneses chega à cifra dos 12 milhões. Idris já havia concorrido como candidato independente nas eleições presidenciais de 2010 contra o então governante militar Omar al-Bashir, deposto em um golpe militar em 2019. A União Africana parabenizou a nomeação de Idris, creditando-a a viabilização de uma futura governança que inclua o desejo do povo sudanês e dos países que formam a União Africana para o estabelecimento de uma ordem constitucional e a conquista de um governo democrático no Sudão. O Primeiro-Ministro Kamil Idris afirmou que a paz alcançada de acordo com os acordos aceitos pelo povo e fundamentada no princípio da dignidade humana está entre as principais prioridades do Governo da Esperança. Em entrevista televisionada, enfatizou o foco em serviços essenciais — principalmente eletricidade, água, saúde e educação —, além da segurança e dos meios de subsistência dos cidadãos. O Primeiro Ministro destacou que o Governo da Esperança alcança o mundo por meio da satisfação do cidadão sudanês, afirmando que “Cidadãos em Primeiro Lugar” é o slogan do governo.(3) No entanto, resta saber se tal pode se concretizar mesmo quando uma população cética questiona a legitimidade de um líder que lá foi posto sem eleições. Ademais, há muitos críticos que apontam a insistência de uma influência militar no poder instituído, como uma restrição às ações do Primeiro-Ministro. Isso  pode aumentar a insegurança da população e de observadores que esperavam maior neutralidade das Forças Armadas Sudanesas (FAS) face ao novo governo.

Foto: AFP


Fortaleza, 23 de agosto de 2023/15 de outubro de 2025.

Antonio Ribeiro Tupinambá 

Professor titular. Universidade Federal do Ceará — Brasil.

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(1)Compare: Sudão do Sul: independente e inevitavelmente ligado ao Sudão. Alexandra Magnólia Dias. https://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/799/1/Alexandra%20Dias.pdf.

(2) Lima, D. R. Por que o mundo precisa olhar para o Sudão?. Disponível em: <https://www.headline.com.br/por-que-o-mundo-precisa-olhar-para-o-sudao-d0b40299>. Acesso em: ago. 2023.

(3) Kamil Idris: The Slogan of the Government of Hope is “Citizens First”. Disponivel em:

<https://sudanhorizon.com/kamil-idris-the-slogan-of-the-government-of-hope-is-citizens-first/>. Acessso em: out. 2025. 

 

Um comentário:

  1. Um resumão para se entender esse conflito que parece sem fim. Obrigado pela partilha.

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