POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

O conto "O quarto da Luz Brilhante" de Saadat Hasan Manto como exemplo de sua escrita em Bombaim.

 





Saadat Hasan Manto examinou as divisões físicas e morais da sociedade em seu estilo quase científico, ainda que sarcástico... Quando morreu em Lahore, em 1955, deixou para trás uma conquista incomparável, uma obra muito procurada como grande arte e como um marco da tradição liberal-humanista no Sul da Ásia.

Alamgir Hashm


Saadat Hasan Manto, um escritor à frente de seu tempo, raro em seu estilo, pôde captar o que havia de mais autêntico e essencial nas cidades em que viveu. Refiro-me aqui, em especial, à cidade de Bombaim, seu grande e inesquecível amor. Vejo-o captando os lados sombrios daquela metrópole da Índia, antes da divisão que ocorreu no subcontinente indiano em 1947. Escreveu sobre o que viveu, com grande intensidade. Apesar de ser originário do Punjab, passou muitos anos na cidade que adotou como sua, Bombaim, onde trabalhou como escritor, além de colaborar com o cinema local. Inegável que corpo e alma emergiam nos seus contos e que suas experiências pessoais faziam parte daquilo que escrevia. Histórias urbanas que traziam humor mas também seriedade, às vezes eram soturnas, satíricas e cheias de projeções do que ele próprio passava e sentia naqueles dias. Em constante movimento, foi cada vez mais se entregando ao vício do álcool para aguentar a dura realidade da vida naquela cidade ao mesmo tempo atraente e complicada para alguém que desejava viver do ofício da escrita. Uma cidade vítima dos muitos infortúnios do país em processo de divisão e das lutas que destruíam laços comunitários. Esse era o alto custo que todo um povo pagava para se libertar do jugo britânico.  


O mundo de Manto nem sempre foi agradável; porque era real. Quando as pessoas se opunham à obscenidade em suas histórias, ele dizia: ‘Se você não consegue suportar essas histórias, então a sociedade é insuportável. Quem sou eu para tirar as roupas desta sociedade, que já está nua? Eu nem tento vesti-la, porque não é meu trabalho, esse seria um trabalho de “costureiros”.(1) 


Um autodidata que causava desconforto com sua escrita e estilo de vida, com a verdade dita e praticada por ele. Na cara dos leitores confusos, chocados, decepcionados ou mesmo orgulhosos e admirados com seu texto inconfundível, jogava seus dois maiores vícios: a escrita e o álcool.


Tudo o que ele fez foi capturar a realidade ao seu redor sem perder nenhum detalhe. Alguns de nós tentamos ser politicamente corretos e deixar a feiura da realidade fora da escrita; Manto nunca fez isso. Quando via sangue, não desviava o olhar. Quando via qualquer sujeira, não se esquivava de falar sobre isso. É por isso que a peculiaridade está sempre presente no que escreve. Mesmo quando falava de política, ele não escolhia um lado, confortavelmente. Na verdade – como sempre faz – ele deixava você desconfortável com verdades não ditas.(2)


Em sua breve carreira Manto escreveu quase sem interrupção, apesar das dificuldades pelas quais passou antes durante e depois dos eventos da Partição no subcontinente indiano. Escrevia sempre em urdu, seu idioma materno, para o qual também traduziu várias obras inglesas, russas e francesas. Muitos dos seus escritos autorais foram traduzidos para o inglês, um dos quais traduzi livremente para o português a fim de introduzi-lo neste ensaio. A partir de certa altura da sua vida, ainda na Índia,   tratou de temas relacionados ao evento da Partição, que estão permeados pelas tragédias dela resultantes. A obra de Manto, como nos revelam os personagens do conto traduzido, mergulha na vida dos marginalizados da sociedade, acompanhando a trajetória de famílias desestruturadas, gangues, prostitutas e de outras vítimas em seus cotidianos, seja da exploração sexual ou de abusos ainda mais extremos como o estupro. Histórias sem rodeios, cheias de indignação que querem dar voz aos que eram obrigados a silenciar.

O conto que transcrevo foi, como toda sua produção literária, originalmente escrito em urdu. Trata-se de uma tradução livre a partir da versão em inglês de Khalid Hasan. O quarto da Luz Brilhante traz um sabor do que se pode esperar do cardápio literário desse gênio da literatura indo-paquistanesa e grande humanista.





O Quarto da Luz Brilhante


Ele ficou em silêncio perto de um poste de luz nos Jardins Qaiser, pensando em como tudo parecia tão desolado. Algumas tongas(4) aguardavam clientes que não apareciam nem estavam à vista.

Há alguns anos, este costumava ser um lugar tão alegre, cheio de homens e mulheres animados, felizes e despreocupados, mas tudo parecia ter ido por água abaixo. A área agora estava cheia de arruaceiros e vagabundos sem ter para onde ir. O bazar ainda estava lotado, mas havia perdido seu brilho. As lojas e prédios pareciam abandonados e sujos, olhando uns para os outros como viúvas de olhos vazios.

Ele ficou ali parado, imaginando o que havia transformado os outrora elegantes Jardins Qaiser em uma favela. Para onde tinham ido toda a vida e a agitação? Aquilo o fazia lembrar uma mulher de quem se havia retirado toda a maquiagem.

Recordou-se de que, há muitos anos antes, quando se mudara de Calcutá para Bombaim a trabalho, tentara em vão, durante semanas, encontrar um quarto naquela área. Não havia nada.

Como os tempos haviam mudado. A julgar pelo tipo de gente nas ruas, qualquer um podia alugar um local ali agora — tecelões, sapateiros, merceeiros.

Olhou ao redor novamente. O que costumava ser escritórios de empresas cinematográficas agora eram quartos com fogões, e onde as pessoas elegantes da cidade costumavam se reunir à noite passou a ser quintais com lavanderias.

Não foi nada menos que uma revolução, mas uma revolução que trouxe decadência. Nesse meio tempo, ele deixou a cidade, mas soube por meio de reportagens de jornais e amigos que ficaram para trás, o que aconteceu com Qaiser Gardens durante sua ausência.

Houve tumultos, acompanhados de massacres e estupros. A violência que Qaiser Gardens testemunhou deixou sua horrenda marca em tudo. Os outrora esplêndidos prédios comerciais e casas residenciais agora pareciam sórdidos e imundos.

Disseram-lhe que, durante os tumultos, mulheres foram despidas e seus seios decepados. Seria então surpreendente que tudo aqui parecesse nu e devastado?

Ele estava lá esta noite para buscar um amigo que havia prometido encontrar-lhe um lugar para morar.

Qaiser Gardens costumava ter alguns dos melhores restaurantes e hotéis da cidade. E se alguém se interessasse por isso, as melhores garotas de Bombaim podiam ser obtidas graças aos bons serviços dos cafetões de alta classe da cidade que costumavam frequentar o local.

Lembrou-se dos bons momentos que tivera ali naqueles dias. Pensava com nostalgia nas mulheres, na bebida, nos elegantes quartos de hotel! Por causa da guerra, era quase impossível conseguir uísque escocês, mas ele nunca tivera que passar uma noite sem beber. Qualquer quantidade de uísque escocês caro era sua, bastava pedir, desde que pudesse pagar.

Olhou para o relógio. Eram quase cinco horas. As sombras da noite de fevereiro começavam a se alongar. Amaldiçoou o amigo que o fizera esperar. Estava prestes a entrar em um lugar à beira da estrada para tomar uma xícara de chá quando um homem malvestido se aproximou dele.

'Quer alguma coisa?', perguntou ao estranho.

'Sim', respondeu em um tom conspiratório.

Ele o confundiu com um refugiado que estava passando por dificuldades e queria dinheiro. "O que você quer?", perguntou.

Não quero nada. Ele fez uma pausa, aproximou-se e disse: 'Precisa de alguma coisa?'

'O quê?'

'Uma garota, por exemplo?'

'Onde ela está?'

Seu tom não era nada encorajador para o estranho, que começou a se afastar. 'Parece que você não está realmente interessado.' 

Ele o interrompeu. Como sabe? O que você pode fornecer é algo de que os homens sempre precisam, mesmo na forca. Então, olhe, meu amigo, se não for muito longe, estou preparado para ir com você. Viu que eu estava esperando por alguém que não apareceu?' 

O homem sussurrou: 'É perto, muito perto, eu lhe asseguro.'

'Onde?'

'Aquele prédio a nossa frente.'

'Você quer dizer aquele?', perguntou ele.

'Sim.'

'Devo ir com você?'

'Sim, mas, por favor, ande atrás de mim.' Eles atravessaram a rua. Era um prédio decadente, com o gesso descascando das paredes e montes de lixo espalhados na entrada.

Atravessaram um pátio e depois um corredor escuro. Parecia que a construção havia sido abandonada em algum momento antes da conclusão. Os tijolos das paredes estavam sem reboco e havia pilhas de cal misturada com cimento no chão.

O homem começou a subir um lance de escadas em ruínas. "Por favor, espere aqui. Volto em um minuto", disse ele.

Ele olhou para cima e viu uma luz brilhante no final do patamar.

Esperou alguns minutos e então começou a subir as escadas. Ao chegar ao patamar, ouviu o homem que o havia trazido gritando: "Você vai se levantar ou não?" Uma voz de mulher respondeu: "Deixe-me dormir."

O homem gritou novamente: "Você me ouviu, vai se levantar ou não? Ou você sabe o que vou fazer com você."

A voz da mulher ecoou novamente: "Você pode me matar, mas eu não vou me levantar. Pelo amor de Deus, tenha misericórdia de mim.”

O homem mudou de tom: "Querida, não seja teimosa. Como vamos ganhar a vida se você não se levanta?"

"Que se dane a vida. Vou morrer de fome, mas, pelo amor de Deus, não me tire da cama. Estou com sono”, respondeu a mulher.

O homem começou a rugir de raiva: "Então você não vai sair da cama, sua vagabunda, sua vagabunda imunda...!" 

A mulher gritou de volta: "Não vou, não vou, não vou!”

O homem mudou de tom novamente: "Não grite assim. O mundo inteiro pode te ouvir. Vamos, levante-se. Poderíamos ganhar trinta, até quarenta rúpias."

A mulher começou a choramingar: "Eu imploro, não me faça ir. Você sabe quantos dias e noites eu fiquei sem dormir. Tenha pena de mim, por favor."

‘Não vai demorar muito,’ disse o homem, ‘só algumas horas e depois você pode dormir o quanto quiser. Olha, não me faça usar outros métodos para te persuadir.

Houve um breve silêncio. Ele atravessou o patamar na ponta dos pés e espiou o cômodo de onde vinha a luz muito forte. Não era um cômodo grande. Havia algumas panelas vazias no chão e uma mulher esticada no meio, com o homem com quem ele viera, agachado sobre ela. Ele apertava as pernas dela e dizia: "Seja uma boa menina agora. Prometo que voltaremos em duas horas e então você poderá dormir à vontade."

Ele a viu a se levantar de repente como um foguete no qual foi riscado um fósforo. "Tudo bem", disse ela, "eu vou." 

De repente, ele sentiu medo e desceu as escadas correndo. Queria se distanciar o máximo possível daquele lugar e de si mesmo, que se abrisse um grande espaço entre ele e aquela cidade.

Pensou na mulher que queria dormir. Quem era ela?

Por que estava sendo tratada com tanta desumanidade?

E quem era aquele homem? Por que o quarto era tão incessantemente iluminado? Os dois moravam lá? Por que moravam ali?

Seus olhos ainda estavam parcialmente ofuscados pela luz forte que vinha da lâmpada naquele quarto horrível lá em cima. Não conseguia enxergar direito. Será que não podiam ter colocado uma iluminação mais suave naquele quarto? Por que uma luz tão nua e impiedosamente brilhante?

Houve um barulho no escuro e um movimento. Tudo o que ele conseguia ver eram duas silhuetas, uma delas obviamente a do homem que ele havia seguido até aquele lugar horrível.

'Dê uma olhada', disse o homem.

'Sim', respondeu ele.

‘O que acha dela?'

'Está bem.'

'São quarenta rúpias.'

'Tudo bem.'

'Posso ficar com o dinheiro?'

Ele não conseguia mais pensar com clareza. Colocou a mão no bolso, tirou um punhado de notas e as entregou.

'Conte-as', disse.

'Tem cinquenta aí.'

‘Pode ficar.'

‘Obrigado.’

Ele sentiu vontade de pegar uma pedra bem grande e esmagar sua cabeça.

Por favor, leve-a, mas seja gentil com ela e traga-a de volta em algumas horas.

‘Certo.’

Ele saiu do prédio com a mulher e encontrou uma tonga esperando do lado de fora. Pulou rapidamente para o banco da frente. A mulher sentou no banco de trás.

A tonga começou a se mover. Pediu que o condutor parasse em frente a um hotel decadente e vazio. Eles entraram. Primeiramente olhou para a mulher. Os olhos dela estavam vermelhos e inchados. Ela parecia tão cansada que temeu que ela caísse no chão.

'Levante a cabeça', disse ele.

'O quê?', ela respondeu assustada.

'Nada, tudo o que eu disse foi para levantar a cabeça.'

Ela olhou para cima. Seus olhos eram como buracos vazios cobertos com pimenta moída.

'Qual é o seu nome?', perguntou.

‘Deixa pra lá.’ Seu tom era ácido.

‘De onde você é?’

‘O que isso importa?’

'Por que você é tão hostil?’

A mulher agora estava bem desperta. Ela o encarou com seus olhos vermelho-sangue e disse: ‘Termine seus negócios porque eu preciso ir?’

‘Para onde?’

‘Para onde você me pegou.’ Respondeu indiferente.

‘Você está livre para ir.’

‘Por que você não faz logo o que tem que fazer? Por que está tentando me ridicularizar?’

‘Não estou tentando ridicularizar você. Na verdade, sinto pena de você’, disse-lhe com uma voz simpática.

Não preciso de sua simpatia. Faça o que quer fazer, o motivo pelo qual tenha me trazido aqui e depois me deixe ir’, disse quase gritando.

Ele tentou colocar a mão em seu ombro, mas ela a afastou rudemente.

'Me deixe em paz. Não durmo há dias. Estou acordada desde que cheguei àquele lugar.'

'Você pode dormir aqui.'

'Eu não vim aqui para dormir. Esta não é a minha casa.'

'Aquele quarto é a sua casa?'

Essa pergunta pareceu enfurecê-la ainda mais.

'Pare com essa bobagem. Eu não tenho casa. Faça o seu trabalho ou me leve de volta. Você pode ter seu dinheiro devolvido por não ter feito nada, por isso...'

'Tudo bem, eu levo você de volta', disse ele.

No dia seguinte, ele contou sobre o ocorrido ao amigo que não tinha comparecido ao encontro. Ele ficou bastante comovido. 'Ela era jovem?', perguntou.

'Não sei', respondeu. 'O fato é que eu realmente quase nem olhei para ela. Eu só tive um desejo selvagem de matar aquele homem que me levou até ela.'

Os dois se separaram porque o amigo dele precisava ir a algum outro lugar. Ele ficou se sentindo morbidamente deprimido.

Caminhou em direção aos Jardins Qaiser, vasculhando atentamente a área, procurando por aquele homem, mas ele não se encontrava em lugar algum. Já era noite. Do outro lado da rua, podia ver o prédio. Involuntariamente, começou a caminhar em sua direção.

Atravessou o pátio e se viu ao pé da escada em ruínas. Olhou para cima. Havia uma luz forte no quarto no topo do patamar. Começou a subir, um degrau de cada vez. Tudo estava muito silencioso. Nenhuma voz, nada.

A porta estava aberta. Ele espiou. A primeira coisa que o atingiu foi a luz ofuscante da lâmpada nua. Virou o rosto abruptamente para afastar aquele brilho dos olhos.

Protegendo-os com a mão, olhou pela porta aberta novamente. Uma mulher dormia no chão, com o rosto coberto por um lençol fino, o peito subindo e descendo suavemente enquanto respirava ritmicamente. Ele deu um passo para dentro do quarto e quase gritou.

Ao lado da mulher, no chão descoberto, jazia um homem, com a cabeça esmagada com um tijolo ensanguentado.

Ele saiu correndo, escorregou e caiu escada abaixo. Mas não parou para examinar os ferimentos. Como um louco, continuou correndo pátio afora e entrou na rua escura.


Fortaleza (CE) setembro de 2025

Antonio C. R. Tupinambá

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(1) Rana, D.  Inside Saadat Hasan Mantos World. Disponível em:  <https://kalampedia.org/2020/12/10/inside-saadat-hasan-mantos-world/>. Acesso em: set. 2025.

(2) idem.

(3) Manto, S. H. A. The room with the Bright Light. In: A Wet Afternoon. Translated by Khalid Hasan. Islamabad (Pakistan): Alhamara, p. 173-179.

(4)  Veículo de duas rodas com tração animal.

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