POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

A terra de homens (nem tão) honestos!

 


Foto: Mikhail Metzel/AFP

Gostaria de expressar minha gratidão a todos os patriotas amantes da paz e da liberdade e pan-africanistas que se reuniram ao redor do mundo para apoiar nosso compromisso e nossa visão de um novo Burkina Faso e uma nova África, livre do imperialismo e do neocolonialismo. 

Ibrahim Traoré

Versus:

Em um cenário político marcado por instabilidade e repressão, Burkina Faso criminaliza a homossexualidade pela primeira vez em sua história recente. A decisão foi oficializada no dia 1º de setembro de 2025, quando o parlamento de transição do país — sob controle da junta militar liderada pelo capitão Ibrahim Traoré — aprovou, de forma unânime, uma emenda ao Código da Pessoa e da Família que torna ilegais as relações entre pessoas do mesmo sexo. (1)



Fonte: AgênciaBrasil.

Golpes de Estado significam longas e traumáticas transições, sem data para terminar. Quando um líder golpista toma a iniciativa para dizer que a transição chegou ao fim? A normalidade democrática será um dia restituída e haverá eleições?  Ibrahim Traoré, atual presidente burkinense, justificou seu golpe de Estado de 2022 contra o então presidente interino, Tenente-Coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba, acusando-o de abandonar a missão de restaurar a segurança e a integridade territorial do país. Burkina Faso, que era o antigo Alto Volta, tem seu novo nome oriundo das línguas nacionais mooré e dioula e quer dizer: “terra de homens honestos.” Após tomar o poder, Traoré prometeu priorizar o combate ao terrorismo e trazer de volta a esperança de uma vida melhor para seu povo. Desde o início do seu governo, vem gravitando em direção a nações como Rússia, China e Turquia, alternativas às potências ocidentais com tradição colonial. Considera-se um sucessor de Thomas Sankara, o presidente que também havia chegado ao poder por meio de um golpe militar, no dia 4 de agosto de 1983. Sankara, jovem, eloquente, carismático e muito querido pela juventude de seu país, defendia o renascimento, pela revolução, da nação africana e antevia para ela um futuro promissor, qualidades e visão também compartilhadas por Ibrahim Traoré. Atributos e metas do então presidente Sankara seriam um prato cheio para desagradar seus ex-colonizadores. Com seu antecessor, compartilha muitas características e sonhos. Dele vem a mesma inspiração em moldar uma África independente e solidária com a ajuda de seu povo. Considerado um farol de esperança para grande parte do continente, Ibrahim Traoré se coloca na mesma tradição de Thomas Sankara, o que lhe põe na mira dos “canhões” franceses e de outros regimes imperialistas, que preferem líderes submissos e corruptíveis, sem desejos independentistas e que sigam à risca a cartilha dos neocolonizadores. 

O declínio da influência francesa na região do Sahel e na África Ocidental veio, segundo Traoré, em consequência das próprias ações paternalistas e negativistas dos europeus. Para eles, o africano é incapaz de se desenvolver, inventar, inovar, tomar iniciativa ou se autogerir. Traoré venceu uma batalha para lutar pela emancipação de sua terra e provar que tudo isso é possível, ao contrário do que pensam os governantes da França e de outros países ocidentais: “essa visão do povo africano como subumano precisa ser detida, modificada; pois enquanto tratarem os africanos dessa forma, terão a recusa para se tornarem parceiros de negócios e isso apenas aumentará o distanciamento entre os povos.” Como já afirmava o filósofo martinicano Frantz Fanon, a violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito dos homens africanos subjugados; procura desumaniza-los: “Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga. Desnutridos, enfermos, se ainda resistem, o medo concluirá o trabalho: assestam-se os fuzis sobre o camponês; vêm civis que se instalam na terra e o obrigam a cultivá-la para eles. Se resiste, os soldados atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um homem; a vergonha e o temor vão fender-lhe o caráter, desintegrar-lhe a personalidade.”(2)

Da forma em que eram definidas as relações entre europeus e africanos nunca seria possível construir uma parceria com a qual se pudesse colher benefícios mútuos, afirma o novo líder do Sahel. Para justificar sua ingerência no país, o presidente francês prefere acusar Burkina Faso de se submeter ao poderio de “estrangeiros”, especialmente do presidente russo, Vladimir Putin. Desvalorizar a prática de multilateralismo pelos países africanos e assim continuar com seu domínio neocolonial é o que está por trás do discurso falacioso de Macron. A disseminação de fake news para convencer a população local desses argumentos já não vinga no país; as pessoas estão acordando e tomando consciência de que essa é mais uma estratégia neocolonizadora para, segundo Traoré, perpetuar o controle econômico e cultural da nação. Há um temor nesses governantes ocidentais com sede de domínio na África de que os novos líderes africanos, os legítimos representantes dos desejos de toda uma região, consigam viver com independência e soberania, livrando-se das correntes do colonialismo. O que fazer em face do atual modelo de governo comandado por Traoré, que chegou ao poder por meio de um golpe e, ao mesmo tempo, apresenta-se como um líder capaz de salvar Burkina Faso das garras do neocolonialismo? O que de fato se passa em Burkina Faso? Trata-se apenas de mais uma ditadura a ser combatida? Há divergências acerca dos resultados da prometida reconstrução do país. Ele fala sobre progresso e autonomia, mas há sinais de que Burkina Faso se transforma em um estado policial, sem conseguir por fim a uma crise de segurança, com avanço visível da insurgência jihadista e a emergência de uma nova crise humanitária com requintes de perseguição a minorias e desafetos. Ibrahim Traoré, que estudou geologia na Universidade de Uagadugu, capital do país, entrou no exército e lutou contra esses grupos de insurgentes jihadistas no norte de Burkina, afirma que seu objetivo é consolidar a autodeterminação do seu país com a participação ativa de seu povo. Na busca desse ousado objetivo vem empreendendo múltiplas e desafiadoras tarefas: inicialmente expulsar as tropas francesas de Burkina Faso para, a seguir nacionalizar suas minas, criar bancos públicos, e fazer acordos com países fora do eixo neocolonizador. Isso permitirá a desvinculação e a independência monetária francesa, além do fortalecimento da industrialização e do uso majoritário da produção alimentar nacional para atender às necessidades internas em detrimento da exportação. Já no plano cultural, um passo importante foi dado com a revogação da língua dos colonizadores, o francês, enquanto língua oficial. O governo burquinense adotou um projeto de lei que revisa a Constituição e declara línguas nacionais como as línguas oficiais da nação em substituição ao francês, que ficou relegado à categoria de “língua de trabalho”. O Primeiro-Ministro Apollinaire Joachimson Kyelem,  justificou a necessidade da redação de uma nova Constituição por uma questão de soberania política, econômica e cultural: “ninguém pode prosperar verdadeiramente a partir dos conceitos dos outros", declarou o Primeiro-Ministro, aludindo a textos que foram inspirados na Constituição francesa. Tudo ia muito bem até o dia em que a junta resolveu incluir nos gestos revolucionários e independentistas um conceito que sequer estava presente na constituição: a Homofobia. Como em outras nações africanas, os esforços de autodeterminação e evolução para uma nação que respeite seus cidadãos foi maculada pela hipocrisia e falta de visão sobre a natureza humana. Respeitar diferenças significa não somente querer fazer o povo africano evoluir economicamente mas também em seu humanismo. Ao contrário dessa rota evolutiva, uma involução para um estágio ainda pior do que aquele em que se encontravam no tema do respeito e da tolerância. Toda a conquista que Troaré estava colocando em curso será maculada. Todo o apoio que nós, os progressistas e empáticos, oferecemos à emancipação dos burquinense, bem como africanos foi comprometido pelo egoísmo do líder que se dizia altruísta e preocupado com o bem-estar do seu povo. Agora sabe-se que, assim como o ditador Vladimir Putin, apenas almeja este bem-estar para uma parcela da população, aquela que é vista como a eles alinhada. Claro está que nessa parcela não cabem os que deles diferem, ainda que sejam igualmente construtores e batalhadores sociais com o mesmo ímpeto e desejo de transformar uma África com justiça e soberania.  Os militares no poder em Burkina Faso adotaram um projeto de lei que proíbe a homossexualidade no país, embora ainda não tenha sido aprovado pelo Parlamento até esse momento. Eles começam a gritante discriminação por meio de um grupo minoritário, os homossexuais, mas não se iludam pois isso, muito certamente, se expandirá para outros alvos. Amanhã poderão ser incluidos nas suas reservas de não-cidadania certos grupos religiosos, grupos étnicos, familiares, linguísticos ou políticos. Enfim, é ilusório acreditar que uma discriminação “constitucional” encerrará no ponto onde começou. Ela seguramente será estendida, e aquela revolução que beneficiaria uma nação inteira terminará por beneficiar apenas alguns setores da sociedade que se alinhem a um pensamento tacanho de governantes que perpetuarão sua ditadura e nunca quererão largar o poder que tomou. Todos os esforços anteriores em nome da legitimidade do governo poderão cair por terra. O Conselho de Ministros aprovou um decreto que cria um novo Código das Pessoas e da Família (CPF, sigla em inglês) que "consagra a proibição da homossexualidade" no país, afirmou a Presidência interina em nota." A partir de agora, a homossexualidade e as práticas semelhantes são proibidas e punidas por lei”. Sabe-se muito bem que os quase trinta países africanos que já têm em suas cartas essa condenação, o fazem a partir de ideias que beiram a patologia e baseadas em fundamentalismos religiosos, preconceitos sociais e pessoais que resultam em perseguição e não em busca de proteção à família. Assuntos que realmente impedem a paz e harmonia familiar não são tratados por esses governos. A desculpa é apenas a velha hipocrisia social para encobrir o que sempre existirá em seus países e em suas famílias mas deverá ser mascarado e escondido para que, aparentemente a nação pareça “livre de indesejáveis”. Traoré perdeu uma chance de ser um líder apoiado por quem torcia por uma África soberana e que trouxesse, com sua soberania, a paz, o progresso e a liberdade para todos os que dela fazem parte. Repete erros de outros regimes ditos revolucionários que perseguem minorias, negando o respeito aos diferentes que poderiam somar esforços na busca da construção de uma sociedade verdadeiramente democrática.


Fortaleza, 18 de setembro de 2025.



Foto: DW (Deutsche Welle)(3)


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(1) Disponível em: 

<https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/burkina-faso-criminaliza-a-homossexualidade-e-impoe-prisao-e multas,0c91428bdb91e76043e4f4380378c7c4823ig4kt.html?utm_source=clipboard>. 

Acesso em: set. 2025.

(2) FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968,  p. 9. Texto extraído do Prefácio de Jean-Paul Sartre para o livro de Fanon. A grafia foi atualizada.

(3) Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/burkina-faso-aprova-lei-que-pro%C3%ADbe-atos-homossexuais/a-73886286>. Acesso em: set. 2025.




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