Não é, portanto, coincidência que Fanon se apresente como tão relevante hoje. Por meio de suas origens e de sua trajetória, ele cruza com os acontecimentos do século passado, do qual foi protagonista, lidando com as situações traumáticas que marcaram aquela época. Ele também é relevante hoje por sua vida e pelo movimento de seu pensamento: para além do que chamamos de fracasso das ideologias, nesta era de globalização econômica e exclusão do sujeito, a frase escrita pelo jovem Fanon, que norteia todo o seu pensamento em ação — "Ó meu corpo, fazei de mim sempre um homem que questiona!" — ressoa em muitos jovens do nosso tempo, independentemente de sua língua ou local de nascimento.
Há cem anos, em 20 de julho de 1925, nascia o revolucionário psiquiatra e filósofo político Frantz Fanon. Veio ao mundo na ilha caribenha da Martinica mas cresceu como um cavalheiro do Império Francês, onde teve que encarar sua condição de homem negro, "nada além disso”, inferiorizado na sociedade dos homens brancos franceses. Privilégios de classe não o livraram desta marca racista no país que o adotou. O intelectual negro e militante anti-colonial publicou seu primeiro livro, Pele negra, máscaras brancas, em 1952; um ensaio sobre o racismo. Quando já se completava sete anos da guerra na Argélia, em 1961, ano de sua morte, foi publicado um outro livro intitulado “Os condenados da Terra.”
O colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. É a violência em estado natural (Fanon)
Quando o escreveu se encontrava doente e seguro de que lhe restava pouco tempo de vida. O livro se tornou um clássico indubitável que sumariza seu pensamento; um tratado sobre as relações entre colonialismo, racismo e resistência. Nele Fanon nos traz sua escrita anticolonialista, afinal de contas deixava claro que a colonização é um processo violento — qualquer colonização — e que desumaniza o colonizado ao lhe negar o próprio passado, sua essência e seus valores.
O sistema colonial constrói e perpetua estereótipos. Fanon os denunciou constantemente. Em 1961, argumentava que o opressor foi definido pelo colonizado como inimigo dos valores, desprovido destes, assim como de moral. A desumanização levou ao extremo de comparar o africano aos animais. “A linguagem do colono é uma linguagem zoológica”, acrescentou o psiquiatra. (Omer Freixa, El país, 3 de dezembro de 2021).
Seu processo de politização e engajamento em lutas de emancipação e libertação humana do jugo colonialista iniciou no período em que viveu e trabalhou, como psiquiatra, nas colônias francesas no norte da África. Como afirma Jean-Paul Sartre em prefácio ao livro de Fanon, apesar da burguesia do século XIX considerar os operários pessoas invejosas, supostamente corrompidas por apetites grosseiros, ainda os incluía na espécie humana; eles ainda refletiam um certo humanismo que se pretendia universal. Essa não seria a atitude da mesma burguesia frente aos colonizados. Os soldados no ultramar rechaçavam tal universalismo metropolitano, rebaixavam o gênero humano no território anexado ao nível de um “macaco superior” para justificar seu tratamento pelos colonos como simples bestas de carga. O livro “Os condenados da terra” de Frantz Fanon foi publicado na mesma semana em que o autor falece em 1961 aos 36 anos. No dia de sua publicação, foi banido e apreendido diversas vezes pelas autoridades francesas em meio à Guerra da Argélia, por ter sido considerado um atentado à segurança do Estado. O livro, um verdadeiro tratado esclarecedor sobre a colonização e descolonização no continente africano, proporciona uma visão lúcida do pensamento de Fanon e nos faz chegar ao momento de sua luta e engajamento pela liberdade dos colonizados e escravizados da África. Certamente, e por razões óbvias, o banimento dessa obra pelos censores franceses não o teria abalado, ao contrário, teria sido motivo de orgulho para Fanon. Nele, o combate ativo ao racismo é implacável, muito da ideia atual sobre “antirracismo” já ganhava corpo naquela obra. Em seu tempo ousou falar abertamente de um tema que não era aceito nos salões literários franceses, tampouco na academia ou no meio político colonialista predominante. O chamado para uma ação antirracista, na qual se precisa desestruturar de maneira radical o inconsciente que normalizou a ideia de raça como inferioridade abalava as estruturas sócio-políticas calcificadas do neocolonialismo. Ao longo de sua vida, Fanon foi deixando se revelar como um homem que se movimenta de um choque original com o racismo francês e que chega até a compreensão profunda da colonização ao redor do mundo; um Fanon que também dedicou suas habilidades para a cura daqueles que sofriam com a violência da colonização e do racismo.
Como bem havia afirmado Sartre de acordo com Fanon, o colonizado se cura da neurose colonial expulsando o colono pelas armas.
Entretanto, de algum modo o neocolonialismo se perpetua, transcorridos 60 anos desde a publicação de “Os condenados da terra.” As ex-metrópoles não abandonaram totalmente a África, como supunha-se após a maior parte da libertação política continental na década de 1960. Ainda hoje, vários mecanismos submetem populações e governos africanos, como alertou e escreveu Frantz Fanon em 1961. (Omer Freixa, El país, 3 de dezembro de 2021).
Para constatar essa permanência do vírus colonizador, basta observar o que ora ocorre nas ex-colônias francesas na África, entre outras, Burkina Faso e Mali. Nelas, bem como em toda a região do Sahel, a luta agora é contra as forças invasoras que se mantém ou se reinstalam, que insistem em não querer deixa-la, submetendo toda a região a um perverso neocolonialismo.
Antonio C. R. Tupinambá
Fortaleza, agosto de 2025.
Obrigado por nos trazer esse acervo da memória de uma pessoa que ousou ousar, questionar, lutar...falar sobre uma verdade ainda proibida e tão maquilada.
ResponderExcluirSim, uma vida breve mas com grandes lutas e conquistas!
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