Parece que foi ontem mas já faz cinco anos que João Pedro Mattos Pinto foi assassinado por forças do Estado. Foi exatamente em 18 de maio de 2020 durante uma operação policial realizada no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Nesse dia não tão distante, o adolescente de 14 anos, era assassinado por forças policiais em mais uma de suas incursões nas favelas. João Pedro brincava com amigos em casa quando foi atingido nas costas por um disparo de fuzil. O imóvel foi crivado com mais de 70 tiros efetuados por agentes da Polícia Federal e da Polícia Civil. Das seis crianças que estavam dentro da residência no momento do ataque João Pedro foi a vítima fatal. O adolescente veio a ser socorrido mas não resistiu aos ferimentos. A versão dos policiais envolvidos na ação era de que haviam sido alvos de disparos de bandidos que teriam se escondido no imóvel. Versão veementemente contestada pela família da vítima, que afirmou terem os agentes já chegado atirando. Os autores da operação foram denunciados pelo Ministério Público por homicídio duplamente qualificado e fraude processual e, conforme o MP, de terem plantado explosivos e uma pistola no imóvel para justificar o ataque. A repercussão do caso atravessou as fronteiras nacionais e chegou a ser denunciado à ONU e à OEA. Não foi o suficiente para reconhecer como um ato criminoso o que fizeram os policiais; apesar dessa repercussão internacional, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro absolveu sumariamente os três policiais envolvidos na operação, alegando "falta de provas”.
Naquela altura viveu-se logo a seguir o drama da execução de George Floyd nos Estados Unidos. O homem negro de 40 anos foi morto por asfixia depois de ter o pescoço pressionado pelo joelho de um policial durante uma abordagem em Minneapolis, Minnesota, em 25 de maio de 2020. Derek Chauvin, o policial acusado de realizar a execução, manteve o joelho no pescoço da vítima por cerca de nove minutos e trinta segundos, o que resultou na morte de Floyd. Enquanto isso, no Brasil, João Pedro, menino negro de 14 anos parecia ter sido mais uma vítima de racismo de Estado. George não havia sido acusado de qualquer crime, mas era negro. João Pedro brincava em casa, dentro de sua casa; mas era pobre, negro e morava em uma favela, mais exatamente, no Complexo do Salgueiro no município fluminense de São Gonçalo, quando foi atingido no peito, por um tiro de arma de fogo. A repercussão internacional do caso Floyd reforça também, no Brasil, a luta por justiça para casos como o de João Pedro. Em Minneapolis, as ruas foram ocupadas, prédios incendiados e milhares de cidadãos, não somente negros, reivindicavam justiça, exigindo a prisão dos culpados pela tragédia que resultou na morte de George Floyd.
Foto mostra um policial branco ajoelhado no pescoço de Floyd.
A frase de George suplicando para que não o matassem I can’t breathe (Eu não consigo respirar) foi repetida nos protestos de rua em diferentes cidades. Em função do crescimento dos protestos, Derek Chauvin, o policial que sufocou sua vítima até a morte foi detido, mas seus três colegas que participaram com ele da ação desastrosa continuaram soltos. As manifestações nesses casos vinham mostrando outras cores. A multidão era composta por tons diferentes e, em muitos casos, formada por maioria branca, o que quase não se via em protestos da década de 1960. “É disso que se trata nessas manifestações de protesto pela morte de George Floyd, em Minneapolis (EUA). Gente de toda cor de pele está farta de tolerar a leniência das autoridades [...] em relação a policiais que achincalham, torturam e matam pobres, imigrantes ilegais e negros”.(1) “[...] Leis e decisões judiciais que vão de encontro a interesses dominantes em uma determinada sociedade só ‘pegam’ após muita luta, muita obstinação e coragem daqueles que, por elas, podem ter suas situações de exploração ou opressão pelo menos mitigadas”.(2)
Na trilha das crescentes manifestações antirracismo nos Estados Unidos, começaram a ocorrer noutros países, a exemplo do Brasil, manifestações organizadas em protesto pelos jovens negros mortos por policiais. No dia 31 de maio de 2020, a sede do governo do estado do Rio de Janeiro, o Palácio Guanabara, foi palco de uma delas. Uma semana antes dos protestos do dia 31, aconteciam manifestações de dimensão nacional nas redes sociais. Nesses atos virtuais organizados pela Coalizão Negra Por Direitos, participaram 800 entidades.
Neilson Costa Pinto, pai de João Pedro, fez a abertura dos atos, destacando a importância da luta por justiça: "É um momento que eu não desejo para ninguém, perder um filho é como perder a própria vida. O Estado é falido e sem responsabilidade nenhuma. Fazer o que fizeram com o meu filho e com outros filhos também, entrar no seu próprio lar e tirar a vida de um menino de 14 anos significa que o Estado é falido. E vamos lutar por justiça, é isso que esperamos, que a justiça venha a ser feita em nosso país, destacou".(3) Esse é o resultado de uma necropolítica instituída pelo então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Apesar de ter se tornado um circunstancial desafeto político do então presidente, continuou sendo seu par na macabra escalada do fascismo no Brasil. Aqueles acontecimentos nas favelas do Rio mostravam que a pandemia do covid-19 não tinha freado o aumento da violência institucional e o modus operandi racista parecia ganhar cada vez mais espaço no Rio de Janeiro e no país. Principalmente em estados como esses que adotaram a linha de um governo central militarista e antidemocrático com estratégias e arreganhos ditatoriais era onde não se podia esperar uma polícia que visasse, como deveria, à proteção cidadã. Paralelos entre países tão diferentes podiam ser feitos porque guardavam semelhanças em sua necropolítica e no abissal autoritarismo nas figuras estultas dos seus líderes, evidenciados em tristes notícias: "Um estudante de 14 anos foi morto durante uma operação da Polícia Federal (PF) e da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, na tarde da última segunda-feira (18). João Pedro Mattos Pinto foi atingido na barriga enquanto brincava no quintal de casa. O adolescente foi levado em um helicóptero da Polícia Civil após ser baleado. Até a manhã desta terça-feira (19), a família estava sem informações sobre o jovem. Segundo o Corpo de Bombeiros, o corpo da vítima foi deixado na última segunda (18), às 15h, no Grupamento de Operações Aéreas (GOA), na zona sul do Rio. Na manhã desta terça-feira (19), familiares do adolescente estiveram no Instituto Médico Legal (IML) de São Gonçalo e reconheceram seu corpo. João Pedro foi descrito por amigos e familiares como um menino calmo e que frequentava a igreja".(4)
PM joga spray no rosto de morador de Heliópolis, maior favela de São Paulo — Foto: Reprodução/Redes sociais
Aos mais pobres, restava então morrer de fome ou de coronavírus, como afirmou o pesquisador Dennis de Oliveira.(5) Na sequência de um pensamento pretensiosamente racional de “seleção natural”, justifica-se, segundo o pesquisador, um processo genocida que se quer instalar no país [nesses países]; uma necropolítica de soberanistas querendo decidir os que devem viver ou morrer: “Mbembe descreve essa suposta soberania como a busca constante de um exercício de poder que supera qualquer limite racional e científico”. A necropolítica fluminense foi exportada para São Paulo por meio do atual governo de Tarcísio de Freitas. Já há vários protestos organizados contra a política de Segurança Pública do governo paulista, comanda por Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Guilherme Derrite, secretário de Segurança Pública do estado. Atos que ocorrem após uma sequência de execuções cometidas por policiais militares em São Paulo. Governos de extrema direita e de viés fascista, nos quais também se enquadra o governo estadunidense de Donald Trump, aprofundam suas práticas racistas. Apesar de não ter qualquer constatação, o presidente Trump liberou asilo para membros da comunidade branca da África do Sul sob alegação de serem vítimas de “discriminação racial”. Enquanto isso a administração Trump suspende todas as outras admissões de refugiados, incluindo aquelas pessoas provenientes de zonas de guerra. Para um pequeno alento, não há apenas más notícias; ao projeto perigoso de necropolítica e genocídio que é visto nas periferias brasileiras, Oliveira (2020) identifica, felizmente, uma contraofensiva de um movimento civil para contribuir com o rompimento da nefasta ideia de Estado mínimo e incentivar a solidariedade em face a problemas da vida nas favelas e na periferia das grandes cidades: “Então, eu vejo que hoje há uma questão objetiva, em que existe, de fato, uma situação perigosa de um projeto de necropolítica e genocídio sem precedentes nas periferias brasileiras..., mas, por outro lado, temos também uma ação organizada e reativa da população das periferias e suas organizações contra esses efeitos”.(6) Nas mais de mil favelas do Rio de Janeiro se sobrevive sem direito à cidadania, educação, saúde, moradia, cultura… Favelas e periferias continuam sofrendo com a criminalização da pobreza, a negligência do Estado, violações de direitos e, para piorar essa situação, com as operações policiais que frequentemente terminam em mortes de moradores, como ocorreu com João Pedro. Ninguém está livre desse sistema que condena alguns “mal escolhidos” ao racismo estrutural. Sistema que beneficia alguns e prejudica outros, nessa lógica perversa. Uma coisa é certa: só há uma forma de combater o racismo, que é tendo consciência e agindo de forma antirracista, isso significa se comprometer em compreender e agir diretamente contra o sistema que o promove e o sustenta.
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(1) STARLING, S. A nigger que me mostrou a neve. Os Divergentes, 2020. Disponível em: <https://osdivergentes.com.br/outras-palavras/a-nigger-que-me-mostrou-a-neve/>. Acesso em: jun. 2020.
(2) idem.
(3) DEISTER, J. Em memória de João Pedro: 800 organizações denunciam violência do Estado nas favelas. Rio de Janeiro: Brasil de Fato, 27 maio 2020. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/05/27/em-memoria-de-joao-pedro-800-organizacoes-denunciam-violencia-do-estado-nas-favelas>. Acesso em: mai. 2020.
(4) MIRANDA, E. Procura-se João Pedro: jovem desaparecido em ação policial é encontrado morto no Rio. Rio de Janeiro: Brasil de Fato, 19 de maio de 2020. Disponível em: <https://www.brasildefatorj.com.br/2020/05/19/procura-se-joao-pedro-jovem-desaparecido-em-acao-policial-no-rio-e-encontrado-morto>. Acesso em: 10 mai. 2020.
(5) Coordenador do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação da USP.
(6) PEREIRA, M. R. “Opção aos mais pobres é morrer de fome ou coronavírus”, diz pesquisador. Disponível em: <https://ponte.org/pandemia-escancara-necropolitica-e-violencia-estrutural-no-brasil-diz-pesquisador/>. Acesso em: jun. 2020.
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