POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Quem te disse que não tem miséria em Berlim?




        Sem-teto na estação de metrô. Um dos lugares mais comuns para buscar algumas moedas

Há um número crescente de sem-tetos em Berlim; estima-se chegar a quarenta mil a população que perambula pelas ruas da capital alemã e que dorme em diferentes lugares da cidade: pontes, viadutos, parques, paradas de ônibus, estações e outros lugares abandonados. 



                   Sem-teto levando a "casa" pelas ruas de Berlim.


Durante o dia, quando conseguem se movimentar, deambulam em busca do que seja. Mendigam ou vendem o “Jornal dos Sem-Teto”, embarcam nos metrôs tentando obter algumas moedas ou ficam parados em qualquer canto de rua pedindo por ajuda ativa ou silenciosamente. Comida, Schnapps, cigarro, um olhar de atenção ou uma conversa que seja fazem parte do rol de súplicas ou pedidos. Uns querem isso, outros aquilo. Não se pode julgar nem dizer o que é bom ou ruim, certo ou errado. Isso de julgamento, de avaliação deve ficar somente com os que se envolvem e se dedicam a vê-los como pessoas carentes/needy/Bedürftige e, efetivamente, tentam ajuda-los. Julgar, avaliar não é tarefa daqueles que lhes jogam uma moeda e continuam alheios ao que se passa com eles. Nós, apenas passantes indiferentes, desatentos ou "piedosos" temos pouco a dizer muito menos a cobrar. Como já bem disse minha amiga Adelaide ao se referir aos “nossos" moradores de rua no Brasil, “isso se trata de um longo e penoso caminho que afina as histórias de vida do Povo Sem Direitos, expulsos de casa, jogados à errância e à vida nômade na cidade do capital. Sem moradia, sem trabalho, mutilados da vida, descartados, engrossam os espantosos números da gente que mora na rua, na desgraçada arte de morrer um pouco a cada dia. Abandonados, esquecidos nas coxias das cidades, morrem aos poucos sem saber por que, mas sabem que estão morrendo aos pedaços a cada dia. Doenças? dói tudo…”  



         Cena de um sem-teto perambulando pelas ruas do centro de Berlim.(1)


As nações e as cidades, quando traduzidas, sofrem dos mesmos males: “Enquanto o coração bater na Bolsa, não tem jeito”, dizia meu amigo austríaco Roman, que ora vive e trabalha em Berlim. Acho que ele se referia à acumulação de riquezas como único princípio norteador das pessoas. Nessa cidade, que é a capital da Alemanha e considerada uma das mais vibrantes da Europa o drama dos que vivem na rua se assemelha, apesar da dimensão ser outra, ao dos demais sem-teto mundo afora. Do Jornal taz.de extraio as queixas de um deles: "Manni P. 'tem cérebro', como ele fala sobre si mesmo, mas de alguma forma sempre escorregou pelas brechas da vida. Finalmente precisa de alguém que o olhe, que o leve a sério. Tem 30 anos agora, e o trem está partindo e lhe deixando para trás, diz ele, enquanto traga o cigarro por um longo tempo. Parece bem cuidado e sua dentadura está completa; usa um blusão preto, porta cabelo curto, limpo e penteado. Sente-se exausto, tem pequenas olheiras, mas ainda sorri muito. Nesta noite de início de verão, está sentado em um pequeno muro de pedra não muito longe da antiga escola Gerhart Hauptmann, com uma porção do que seria seu jantar a seu lado. Sua história não é única. Vários milhares de pessoas vivem em Berlim sem endereço certo… "Não estou com vontade de dormir na rua de novo esta noite", diz Manni P., enquanto se apoia com uma mão na pequena parede. Continua: ”Eu não sei o que fazer. Tenho pensamentos doentios. Quero me acalmar. Quero poder me desligar.” Para os sem-teto, a vida é uma ameaça constante; Confiança e apoio são desconhecidos para eles: "Quem se dirige a mim?", se pergunta de dentro do seu saco de dormir. Dormir com segurança é impossível no Görlitzer Park”.

Às vezes uma atitude amistosa, algo que raramente acontece, aquece nossos corações. Um dia, no metrô testemunho uma cena muito rara e original para a metrópole fria e indiferente. Uma jovem senhora muito bem vestida interagia com seu filhinho no carrinho, empurrando-o de lado a outro do vagão, entretendo-o durante a viagem. Parou por acaso ao lado de um certo senhor com seu carro de supermercado cheio de sacolas cheias de não sei o que. Muito comum os moradores de rua carregarem seus pertences nesses carros, “sua casa” ambulante. Fiquei observando a cena da jovem mulher com seu menino sorridente passando casualmente por perto desse senhor e quando dele se aproximava a criança lhe acenava com uma das mãos, sorridente, ao que o senhor prontamente procurou no meio dos seus muitos sacos, aquele que tinha um pão. Apressou-se a passar para o menino que lhe havia estendido a mão, em cortesia espontânea. A mãe acolheu a oferta e não somente, abriu o saco e deu o pão que a criança a seguir e com gosto levou à boca. Continuaram interagindo, conversando, conversa que senti como espontânea e verdadeira, até chegar sua parada. Trago a cena aqui porque se trata de uma raridade, pois geralmente o olhar no metrô é de distância e indiferença em qualquer circunstância ou, no caso dos sem-teto, com uma piedade incômoda, quando não mesmo de pura agressividade, de desconforto ou rejeição. Desta feita meu coração foi aquecido pela atitude tão humanizada dessa bela e jovem senhora, que muito bem vestida e com seu filho não menos belo me fizeram ganhar o dia.


                                Cena de um sem-teto no Metrô Neukölln. 



Para os que perambulam pelas ruas de Berlim acesso a roupas é o de menos. A história é outra. Há muitas ações para distribuição de roupas doadas e não é difícil ver numa cerca ou no muro de algum parque algumas, penduradas em cabides, para serem levadas livremente, às vezes com um aviso: "Podem levar o que necessitar mas por favor deixem o cabide na cerca”. Em muitos containers espalhados pela cidade também é possível colocar roupas para doação com diferentes fins, inclusive para essas almas peregrinas, esquecidas, transparentes (termo que tomo emprestado do presidente Lula, ao falar no G20 no Rio de Janeiro sobre a “transparência” dos pobres, de sua invisibilidade na sociedade), que apenas sobrevivem nas ruas, agora já começando a ficar bem frias. Há diferenças conceituais e reais entre moradores de rua; no Brasil os conhecemos principalmente das grandes cidades mas que cada vez mais passam a fazer parte da paisagem urbana de outras menores. Os sem-teto seriam aqueles que não se encontram nesse estágio e em vez disso ainda podem encontrar um lugar de estada temporária (no Brasil, em abrigos ou ocupações, aqui em apartamentos cedidos pela prefeitura, governo do estado ou federal, lugares subsidiados ou em outros tipos de abrigo). Essa parte da população, tampouco é pequena aqui em Berlim, chegando, como já dito, a 40 mil pessoas.(2) Na Alemanha, Berlim está em terceiro lugar em número de pessoas vivendo nas ruas, quando se leva em conta a relação entre o número desses moradores e o da população em geral, ficando atrás apenas de Baden-Württemberg e Renânia do Norte-Vestfália (estado onde fica Colônia). Acredita-se que as áreas metropolitanas sejam mais atraentes também para essa população que procura moradia. Nas grandes cidades há, de fato, mais lugares para ficar e outros serviços sociais e assistenciais a que se recorrer. Não estamos falando de refugiados oriundos de outros países. Estes só entram na contagem se o procedimento de pedido de asilo tiver sido concluído e bem-sucedido. Há uma leva de refugiados sem teto e sem papéis fora dessa conta. 

Dependendo do bairro em que se ande na cidade se vê tipos diferentes de moradores de rua. Os que vivem em grupos e já resumem sua vida cotidiana a vícios diversos, que impedem ou dificultam uma “reinserção” social. Outros que tentam obter algum dinheiro para comida e ainda outros que fogem ao estereótipo de pessoas descuidadas, muitas vezes mesmo bem vestidos senhores e senhoras que se submetem a mendigar porque a vida lhes deve ter roubado tudo o que ainda lhes restava e as chances de recuperar o perdido são mínimas ou inexistentes.  É evidente a dificuldade de quem saiu do sistema econômico, deixou de ser produtivo, necessário, passando a ver se expirar o tempo e perder as chances de reinserção social e laboral, o que só piora com o passar dos anos. A pobreza aumenta.



                Uma pessoa sem-teto "vivendo" no Volkspark Wilmersdorf -- Berlim.


Para alguns, porém, Berlim é considerada a capital dos sem-teto, pois se vê poucas metrópoles da Alemanha com tanta gente vivendo nas ruas. Susanne Gerull, professora da Universidade Alice Salomon, juntamente com representantes da Associação para o Trabalho Sócio-Cultural (VskA), apresentou na sexta-feira a última fase de um projeto inédito em todo o país: Voluntários contam os sem-teto e combatem esse desconhecimento ou conhecimento apenas parcial sobre eles. "Quase exatamente em um mês, na noite de 22 para 23 de junho, cerca de 2.000 berlinenses devem estar se movimentando pela cidade para registrar as pessoas dormindo debaixo de pontes, em entradas de casas ou em estacionamentos de vários andares. Este chamado 'tempo de solidariedade' é apoiado pela administração social de Berlim e se baseia em modelos já vigentes em outras metrópoles. Em Boston, por exemplo, o 'Censo dos Sem-teto' vem pesquisando o número de moradores de rua há 40 anos; em Nova York existe um programa semelhante desde 2005, em Paris os sem-teto foram contados pela quinta vez no 'Nuit de la Solidarité' este ano [2022]”.(SZ, 21.05.22). Semelhante àquela contagem que o Padre Júlio Lancelotti tenta fazer em São Paulo, com a ajuda de muitos voluntários para conhecer de perto a população sem-teto, o que termina contradizendo o resultado obtido por meio do trabalho oficial de mapeamento com pouca credibilidade feito pela prefeitura.

Aqui em Berlim se vê muita miséria pelas ruas. Nada comparado ao Terceiro Mundo, é claro, mas é incomparável àquele cenário dos velhos ditos “melhores” tempos que já tivemos por aqui, quando se via nessa situação apenas uma minoria se comparado ao número atual. Lembro de uma senhora austríaca que me dizia: — Aqui a gente só não tem favela porque é muito frio. O que ela me dizia em 1981 vem de encontro ao que mais tarde escutaria nas músicas do Titãs(3) em 1989: “Miséria é miséria em qualquer canto, Riquezas são diferentes” e do Pedro Luís(4) de 1998: "E quem te disse que miséria é só aqui?” 


  

                                               

                                 Sem-teto na estação de metrô 👆👇








                    Cenas de um sem-teto pelas ruas de Berlim




Antonio C R Tupinambá

Originalmente escrito em Berlim, 2022.



Link: https://www.instagram.com/reel/DBZWyZtxCEJ/?igsh=b2JiYnV0anF4bDF6


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1) As fotos são autorais.

2) "Etwa 40.000 Menschen leben allein in Berlin ohne Wohnung und erleben in den kalten Wintermonaten eine besonders harte Zeit". <https://www.ch.roominabox.com/pages/unterstuetzte-projekte>.

3)Miséria -- Paulo Miklos / Sergio Affonso / Arnaldo Filho.

4) Miséria no Japão -- Pedro Luís.


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