POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

sexta-feira, 15 de abril de 2022

De Nobel da Paz a Senhor da Guerra

 


Na região norte da Etiópia uma guerra civil está em curso há quase dois anos. À frente das ações bélicas, pasmem, o prêmio Nobel da Paz, Primeiro Ministro etíope Abiy Ahmed. No artigo  intitulado “Os impactos do conflito na Etiópia sobre populações civis da região”(1) de Luiza Batista Ferreira, uma análise sobre a desesperança dos que pensavam que a paz e a prosperidade econômica chegariam à Etiópia após o Primeiro Ministro assumir o cargo em 2018: "Embora a posse de Abiy tenha sido encarada como uma proposta de renovação para a Etiópia, o ministro já era membro do antigo governo, que ocupava o poder desde 1993, e realizava um papel de oposição interna no poder público. Suas principais promessas de campanha eram a soltura em massa de presos políticos do país, o aumento de liberdades para a sociedade civil e, principalmente, a realização de eleições livres e democráticas. Ainda que tenha cumprido algumas dessas propostas após tornar-se primeiro-ministro, como a libertação de presos políticos, Abiy não mudou consideravelmente sua posição em relação à sociedade civil e tampouco convocou eleições, adiando-as em razão da pandemia de COVID-19. O grande trunfo de Abiy foi pôr fim à guerra com Eritreia, questão que se alongava desde 1998, quando o conflito começou e deixou mais de 80 mil mortos em poucos anos. A assinatura do acordo de paz entre Abiy e o presidente da Eritreia,  Isaias Afwerki, levou o etíope a receber o Nobel da Paz de 2019 e o colocou em uma posição de destaque internacional como político promissor para o continente africano. Pouco tempo após receber o Nobel, os conflitos étnicos na Etiópia intensificaram-se novamente e ficou claro que esse seria o maior desafio de Abiy enquanto ministro: conciliar o seu próprio projeto de fortalecimento da unidade nacional com as demandas das dez principais etnias que vivem no país. É válido lembrar que Abiy faz parte do povo Oromo, maior grupo étnico do país, que há tempos luta por maior autonomia da região de Oromia e mais representatividade política no governo federal. Outro grupo étnico envolvido em conflitos são os Tigrés, que ocupam a região do norte da Etiópia - de nome Tigré ou Tigray. Os Tigrés não compõem uma grande parcela da população do país, embora tenham governado a Etiópia por mais de 20 anos, até fevereiro de 2018, quando o então primeiro ministro, Hailemariam Desalegn, demitiu-se. Após a saída de Desalegn, Tigrés passaram a ser sistematicamente exonerados de cargos públicos”.

Os ataques violentos na região separatista nasceram de uma campanha militar bem articulada muito antes de que a guerra eclodisse. Movimentos clandestinos de tropas, meses de preparação silenciosa para uma guerra que segundo os planos de Ahmed deveria ser rápida e sem repercussão negativa internacional. O ditador da vizinha Eritréia que já tinha um "longo e amargo rancor" contra a Frente de Libertação do Povo Tigray, grupo revolucionário que luta pela autonomia regional, viu na guerra uma oportunidade de vencer seus rivais. Atualmente, vários bloqueios impedem o acesso de ajuda humanitária para os mais de sete milhões de tigrés, muitos impedidos de deixar a região, sofrendo ataques indiscriminados, assassinatos, expulsão de suas casas, além de violência sexual. "A população da região de Tigray, no extremo norte da Etiópia, enfrenta fome, falta de água potável, medicamentos, saneamento básico e atrocidades sexuais em massa, alerta o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Informes do último mês apontam que a região estaria à beira da fome e do genocídio. […] 'Vivendo em acampamentos lotados, crianças e famílias precisam urgentemente de comida, abrigo e água potável (...). Imunizações foram paralisadas, instalações de saúde e água foram danificadas ou destruídas e suprimentos essenciais foram saqueados', disse o comunicado do Unicef”.(2) É como se houvesse uma aprovação oficial vinda de Adis Abeba, sede do governo do país, para que forças ligadas ao regime promovam uma campanha de limpeza étnica no Tigray. Ataques organizados por grupos paramilitares oriundos da região vizinha, Amhara, são levados a cabo com aval do governo, que não quer negociar com lideranças locais. Milícias de Amhara se uniram às forças armadas etíopes e a outros aliados para forçar a rendição incondicional do Tigray, e submete-lo sem negociação ao poder central em Addis Abeba. União Africana, governos de países vizinhos e representantes da ONU  devem pelo menos tentar, conjuntamente, dar uma chance às negociações, exercer alguma influência sobre Addis Abeba para conter essa campanha de limpeza étnica e de extermínio do povo tigré. Esse povo tem o direito de regressar a suas casas com segurança e obter uma resposta firme para os crimes hediondos que têm sido cometidos, impossibilitando uma negociação justa sobre o status político da região. Em vez disso, testemunha-se a negativa de grupos paramilitares e autoridades constituídas de Amhara a pelo menos permitir a entrada de ajuda humanitária a civis do Tigray. O fechamento de estradas impossibilita que suprimentos e combustível cheguem à região, o que obriga as diferentes organizações de ajuda humanitária a interromper seu trabalho. Também em Mekelle, capital do Tigray, os efeitos macabros das ações paramilitares, a escassez de víveres, medicamentos e até mesmo de água potável vem, como em toda a região, trazendo o aumento da fome e do desespero na população. Parece que o abuso dos civis, maiores vítimas no fogo cruzado dessa guerra insólita que continua a se desenrolar na Etiópia, não vem sensibilizado a comunidade internacional que atualmente tem seus olhos voltados quase exclusivamente para a invasão russa na Ucrânia. 



Fortaleza, 15 de abril de 2022.
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(1) FERREIRA, L. B.Os impactos do conflito na Etiópia sobre populações civis da região.  Disponível em: <http://petrel.unb.br/destaques/117-os-impactos-do-conflito-na-etiopia-sobre-populacoes-civis-da-regiao>. Acesso em 15 abr. 2022.
(2) Conflito na Etiópia deslocou 220 mil pessoas e pode levar a genocídio. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/02/19/conflito-na-etiopia-deslocou-220-mil-pessoas-e-pode-levar-a-genocidio.> Acesso em: 15 abr. 2022.



terça-feira, 12 de abril de 2022

Na Palestina, a questão LGBT+ é sinônimo de rejeição, hostilidade e violência física

  

                                    Foto: cartaz do filme “Os homens invisíveis” de Yariv Mozer (2012).




Os britânicos deixaram um rastro de discórdia, miséria moral e insensatez por onde passaram como colonizadores. “Donos do Mundo” por muito tempo, levaram seus costumes e hipocrisia moral para implantar em terras estrangeiras, destruindo culturas locais e escrevendo leis ancrônicas e perversas. Deixaram para trás um legado maldito que repercute até os dias de hoje, mesmo em territórios sobre os quais há muito tempo já não têm poder de colonizador ou qualquer relação de mando político ou diplomático. Quando eram senhores da Palestina, importaram do próprio código penal do Reino Unido a condenação à atividade sexual entre pessoas do mesmo sexo. Na legislação palestina atribuíram uma pena máxima de dez anos de prisão a esses casos. A lei é até hoje mantida em vigor em Gaza, ainda que noutras partes do território palestino não tenha a mesma valia. A notícia mais evidente de que tal lei seja aplicada traz o caso de um escritor que no ano de 2017 foi ameçado por publicar um romance que incluia temas LGBT+: "Em fevereiro, o procurador-geral palestino decidiu processar  o escritor Abbad Yahya, proibindo seu romance Crime em Ramallah e acusando-o de ameaçar a moralidade e a decência pública”.(1) O romance explora temas de política, religião e homossexualidade através de seus protagonistas. No entanto, sabe-se que ainda hoje a Palestina pode se tornar um inferno para quem se assuma gay em seus domínios. A perseguição vai além se suas fronteiras e se estende a pessoas que consigam fugir para Israel, onde continuam vulneráveis e sob ameaça de deportação e retorno à sua região de origem, quando lhe esperam, na maioria das vezes, se não a fúria da justiça local, aquela de parentes raivosos que querem se livrar do “mal" que se abate sobre a família na figura do “pervertido" fugitivo. Essa punição pode resultar na morte da vítima de homofobia, muitas vezes pelas mãos de parentes próximos, sem necessitar chegar a uma punição formal pelas autoridades locais. A exemplo do que se vê em outros países muçulmanos onde a criminalização de conduta sexual entre pessoas do mesmo sexo, ainda que entre maiores e consensual, leva sempre a reações violentas, discriminação, culminando com assassinato. No Irã testemunhou-se em 2021 o caso revoltante do sequestro de Alireza Fazeli Monfared pelos próprios parentes na cidade de Ahvaz para a seguir ser morto e ter seu corpo abandonado em uma rua qualquer. Num círculo vicioso, o assédio que Alireza Monfared sofria já há vários anos não foi por ele e outros companheiros denunciado por medo de enfrentar maior violência por parte das autoridades que deveriam protege-los. Segundo a Anistia Internacional, "pessoas LGBT+ no Irã enfrentam discriminação generalizada, vivem com medo constante de assédio, prisão e processo criminal e permanecem vulneráveis à violência e perseguição com base em sua orientação sexual e identidade de gênero reais ou percebidas. De acordo com o Código Penal Islâmico do Irã, a conduta sexual consensual entre pessoas do mesmo sexo é criminalizada e punida com penas que vão do açoitamento à pena de morte”.(2) Apenas por ser percebida, baseada em estereótipos e preconceitos, uma pessoa pode correr risco de morte nessas sociedades que se deterioraram com o passar dos anos, tornando-se um exemplo de intolerância e antidemocracia, um perigo para qualquer pessoa que não reze na cartilha dos fundamentalistas intolerantes e seus seguidores. Os horrores continuam atuais nas teocracias muçulmanas. Ainda no Irã, Mehrdad Kaimpour e Farid Mohammadi, ambos com 32 anos haviam sido preso há seis anos, acusados de prática de relações homossexuais, sendo por isso condenados à morte por enforcamento no mês de janeiro de 2020. Conforme afirma Peter Tatchell(3), ativista LGBT+ e de direitos humanos, o Irã, juntamente com outros onze países de maioria muçulmana, aplica a lei da Sharia e impõe a pena de morte para pessoas LGBT+. Na Palestina essas pessoas têm direitos básicos negados e quando conseguem fugir para Israel vivem na clandestinidade e, em regra, têm seus pedidos de asilo rejeitados. Essa realidade para gays em Israel e na Palestina os torna pessoas inexistentes nos dois Estados. Resta, se conseguirem chegar a Israel, solicitar por meio de ONGs de apoio, asilo humanitário em terceiros países, na maioria das vezes no continente europeu. Localizada em Jerusalém, a organização de direitos humanos "alQaws for Sexual & Gender Diversity in Palestinian Society", é uma organização da sociedade civil  que tenta contribuir "para a construção de uma sociedade palestina vibrante e justa que celebre as diversas sexualidades, orientações sexuais e gêneros”. Uma missão nobre mas de difícil realização face à realidade homofóbica e extremista da sociedade palestina. Não por menos, apesar de tratar exclusivamente dos direitos dos palestinos LGBT+, a organização se localiza em Israel e não na Palestina. Para os burocratas e extremistas locais, uma organização como a alQaws não passa de um alvo a ser combatido em nome da preservação de “ideais e valores da sociedade palestina”. A negação da existência de pessoas gays palestinas e o combate aos que insistam em protege-los ou evidenciar sua existência, seja assumindo-se publicamente gay ou apoiando aqueles que ousem “sair do armário” e fugir ao código heterossexual, são práticas comuns e aceitas pelas autoridades e famílias palestinas. Negar o óbvio em nome da hipocrisia, manutenção de costumes e leis draconianas fazem parte do dia a dia da sociedade palestina. Como afirmou a alQaws em nota contra as intimidações e ameaças da polícia a seus membros, a polícia e a sociedade palestina em geral deveriam "se concentrar no combate à ocupação e outras formas de violência que destroem o tecido sensível de nossa sociedade [palestina] e valores, em vez de processar ativistas que trabalham incansavelmente para acabar com todas as formas de violência”.(4) Forçados a procurar abrigo em Israel e tendo consequentemente a permanência recusada por serem considerados estrangeiros, palestinos que são submetidos a tortura e ameaçados de morte por sua sexualidade em sua terra natal continuam sendo muitas vezes perseguidos e chantageados também em solo israelense: Se você é gay e conhece alguém que conhece uma pessoa procurada pela polícia israelense, ela tratará de tornar sua vida miserável até que obtenham o que creem você poder informar, quer seja possível ou não. Enfim, fugir para Israel pode ser interpretado como uma traição à causa palestina, enquanto permanecer em território palestino não significa, necessariamente, uma garantia de sobrevida, pois continuarão catalogando quem for gay como pessoa suspeita. Os homens gays palestinos arriscam suas vidas na tentativa de cruzar a fronteira para Israel, onde, apesar de todos os riscos, alegam se sentirem mais seguros entre os israelenses do que com seu próprio povo. No meio da rivalidade dos dois Estados há um fosso no qual os gays palestinos se precipitam em busca de uma liberdade que dificilmente conquistarão.


Fortaleza, 12 de abril de 2022.

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(1) Palestine.Disponível em: <https://www.humandignitytrust.org/country-profile/palestine/>. Acesso em: abr. 2022.

(2 )rã: Assassinato de homem gay destaca perigos de abusos sancionados pelo Estado contra pessoas LGBTI. Disponível em: <https://www.amnesty.org/en/latest/news/2021/05/iran-murder-of-gay-man-highlights-dangers-of-state-sanctioned-abuses-against-lgbti-people/>. Acesso em: 31 jan. 2022.

(3)  Weinthal, B. O regime do Irã executou dois homens com base em acusações anti-gay. Disponível em: <https://www.jpost.com/breaking-news/article-695006>. Acesso em: 31 jan. 2022.

(4) Palestine.Disponível em: <https://www.humandignitytrust.org/country-profile/palestine/>. Acesso em: abr. 2022.