Texto escrito em julho de 2020 a partir de artigo publicado originalmente no Caderno Opinião do Jornal O Povo (Fortaleza CE), em 31 de setembro de 2014.
"As autoridades israelenses enaltecem a humanidade do que chamam de 'o exército mais moral do mundo', que informa os moradores que as suas casas serão bombardeadas. A prática é 'sadismo, disfarçado hipocritamente de misericórdia', nas palavras da jornalista israelita Amira Haas: 'Uma mensagem gravada exige que centenas de milhares de pessoas deixem as suas casas já transformadas em alvo para seguirem para outro lugar, igualmente perigoso, a 10 quilômetros de distância." (Comsky, 2014).
Em sã consciência e por livre escolha, jamais trocaria uma vida em Israel por outra em qualquer país muçulmano. Talvez fizesse exceção à Turquia, a única nação de maioria muçulmana que se declara laica, na qual o cidadão pode escolher sua religião embora tenha uma população de 99% de muçulmanos e 1% de cristãos e judeus:
"Em conversa com um turco, é possível perceber que apesar da fé ser uma característica forte do povo turco, não é obrigatório ir às mesquitas diariamente, nem rezar todas as vezes em que o chamado é feito. Dentro da religião, há uma liberdade de devoção pouco mencionada. O extremismo existe para quem não conhece. Dessa forma, em Istambul, que mistura a tradição e a modernidade, é possível ver mulheres com ou sem véu, usando calça jeans, ou usando um vestido de mangas compridas e mais largo com o véu cobrindo colo e cabeça. A burca, deixando apenas os olhos à mostra, é mais raro de se ver nas ruas. A constituição turca não obriga ninguém a participar de cerimônias e ritos religiosos.” 1
No entanto, apesar desse apreço e reconhecimento da relevância do Estado de Israel, que se destaca como única democracia na região, vejo com horror as consequência do comportamento do seu governo de liderança direitista, ajudado pela presença de fundamentalistas em seu parlamento, perpetrando ações bélicas desproporcionais que atingem o povo palestino. Enquanto em Israel reina a força antes da negociação e, por outro lado, nenhum dos países muçulmanos consegue se libertar das nefastas consequências da mistura entre religião e Estado, tornando a vida um fardo para qualquer um que não comungue com seus fundamentos limitantes da liberdade e da existência, os dois povos sofrem as consequências de seus governos déspotas e fantoches. Veja o exemplo maldito da Arábia Saudita, onde a mulher ainda é proibida de dirigir, ou do Irã, Sudão, Líbia, Kuaite e Iêmen, onde o apedrejamento público pode atingir dissidentes de regras de suas teocracias muitas vezes disfarçadas de Estado de direito. Há pouco, testemunhamos no Sudão o caso de uma mulher que foi condenada à morte por ter mudado de religião. A Justiça do Sudão a condenou à morte por enforcamento sob a acusação de apostasia, depois que ela se afastou do Islã para se casar com um cristão. Neste caso um juiz lhe deu três dias para se retratar e voltar para o Islã e em não o fazendo receberia a sentença de morte. A mulher, identificada como Meriam Yehya Ibrahim Ishag que se declara cristã vive no país onde a maioria da população é muçulmana e segue as leis islâmicas, segundo as quais e em um Estado fundamentalista, deixar de ser muçulmano pode levar à punição com a morte.2
"A Arábia Saudita, por exemplo, aplica uma das interpretações mais severas da sharia, com a proibição de mulheres de dirigir […], tutela de filhos para homens em todos os casos, entre outros casos. .Há diferentes categorias de ofensas na sharia. Aquelas que têm punição prescrita no Alcorão, chamadas de 'hadd', são: sexo fora do casamento e adultério, falsas acusações de ato sexual infiel, consumo de vinho (que pode se estender a todo tipo de bebida alcoólica), roubo e assalto em estradas. As penas para essas ações incluem chicotadas, apedrejamento, amputação, exílio ou execução […] De maneira geral, a legislação tem sido incorporada nos sistemas políticos de três formas. Há os sistemas integrais, em que as nações colocam a religião em sua Constituição - e a sharia passa a ser sua fonte. São exemplos a Arábia Saudita, o Kuait e o Iêmen. Há o sistema dual, usado pela maioria dos países muçulmanos, em que o governo é secular, mas aos muçulmanos é dada a opção de serem julgados por cortes islâmicas regidas pela sharia. É o caso, segundo o relatório do CFR, de países como a Nigéria e o Quênia'”3
Inquieta-me, portanto, o que ao redor do mundo se vê de reações antissemitas por conta do conflito entre Israel e Palestina, que, há dias, vem-se configurando em um massacre com relações desproporcionais de poder. Quando foi criado nos anos 1940 em consequência da inominável tragédia que se abateu sobre os judeus na Europa com o epicentro do horror na Alemanha, havia uma dívida dos vários governos e países, que se fez reparar, minimamente, nessa ação da comunidade internacional. No entanto, o que hoje ocorre na Faixa de Gaza não pode ser justificado pelo álibi de um persistente antissemitismo regional. O Estado que a população de emigrantes judeus conseguiu construir naquelas inóspitas terras a 30 graus de latitude norte, no Monte Sião, outrora centro de gravidade do mundo e das civilizações antigas, só se fez possível por conta do talento e obstinação do seu povo. Hoje o campo da educação, ciência e tecnologia israelenses está entre os mais desenvolvidos do mundo. É o único rincão naquela região de conflitos, que aceita e protege em seu meio, democraticamente, as diversas formas de ser e viver, a despeito de uma minoria radical no governo querer excluir desses privilégios alcançados os não-judeus.
Em meio a horrores que se testemunham em ofensivas israelenses em Gaza e a construção ilegal de assentamentos na Cisjordânia, a existência palestina vai sendo restringida a uma miséria, reduzindo-a à sobrevivência mínima. Isso não exime a reconhecer que havia, de fato, uma dívida que tinha que ser reparada com os judeus, homens de artes, ciência e política, que estão no fundamento da construção de muitas civilizações e nações, inclusive a brasileira, cuja lista certamente não pararia em nomes ilustres como Clarice Lispector, Moacyr Scliar, César Lattes etc.
Se em época tão difícil como a atual, com a pandemia de covid-19 que pode ser trágica para povos em terras já atingidas pela guerra e inóspitas para seus moradores se consegue, como é o caso dos dois países, unir forças e aplacar seus efeitos por um bem comum que é a preservação de vidas, por que não tentar para a conquista de uma paz duradoura? Hoje é possível identificar ações de coordenação conjunta em ambos os lados do muro que separa os dois povos, para monitoramento conjunto dos efeitos da pandemia. A colaboração entre a Autoridade Palestina e o Estado de Israel tem sido fundamental e vem em nome do bem-estar dos cidadãos da região, judeus e palestinos:
“'A saúde de todos os cidadãos da região está acima de tudo, e é nossa principal prioridade. Continuaremos a agir em colaboração com a Autoridade Palestina em um esforço conjunto', diz o major Yotam Shefer, chefe do departamento internacional da administração civil israelense na Cisjordânia […] Agentes de saúde de ambos os locais estão realizando atividades mútuas para conscientizar a população sobre o perigo da doença […] Segundo uma pesquisa do Instituto Truman para Paz da Universidade Hebraica de Jerusalém, 63% dos israelenses afirmam que Israel deve ajudar os palestinos durante a crise do coronavírus. A maioria dos israelenses acredita que, quando houver necessidade, o governo deve traçar medidas preventivas para ajudar os palestinos durante a epidemia da Covid-19[…]”4
A guerra traz desvantagens para os dois lados, pois acirra o conflito e sua não resolução vai causando perdas a todos que têm direito de viver em paz naquelas terras, sejam judeus, palestinos e outras minorias. Nada justifica o ataque generalizado aos judeus ou essa pressão bélica israelense sobre os palestinos. O recrudescimento e a falta de saídas para a crise e instabilidade no Oriente Médio não podem ser combustível que acenda a chama do fundamentalismo e comprometa a paz mundial.
Muitos judeus e até mesmo líderes palestinos (inclusive do Hamas!) já admitiram uma solução de dois Estados de acordo com o consenso internacional, solução essa que continua sendo bloqueada pelos Estados Unidos e o governo de Israel há mais de 40 anos. Não estamos tratando de um conflito regional, tampouco admitindo uma solução pela força que beneficiaria apenas um dos lados. Definitivamente, o alcance desse conflito é global e diz respeito a todos que se comprometem com a paz. Impossível se pensar numa solução sem a efetiva atuação, vontade e apoio dos governos dos países que formam a União Europeia, dos Estados do Golfo e dos EUA, com o protagonismo de israelenses e palestinos.
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Referências:
1) Rodrigues, B.; Camargo, M. A fé com liberdade, o único país islâmico que é laico. 15 de junho de 2018. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/turismo/2018/06/15/interna_turismo,688486/a-fe-com-liberdade-o-unico-pais-islamico-que-e-laico.shtml>. Acesso em: 2018.
2) G1. Sudanesa é condenada à morte por abandonar Islã por marido cristão. 15 de maio de 2014. Acessível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/05/sudanesa-e-condenada-a-morte-por-abandonar-isla-por-marido-cristao.html>. Consultado em: 2014.
3) G1. Entenda a sharia, lei islâmica que vai ser adotada na Líbia pós-Kadhafi. 26 de outubro de 2011. Disponível em: <http://g1.globo.com/revolta-arabe/noticia/2011/10/entenda-sharia-lei-islamica-que-vai-ser-adotada-na-libia-pos-kadhafi.html>. Consultado em: 2014.
4) Palestinos e israelenses se unem e realizam ações conjuntas contra o coronavírus. 20 de março de 2020. Disponível em: <https://istoe.com.br/palestinos-e-israelenses-se-unem-e-realizam-acoes-conjuntas-contra-o-coronavirus/>. Acesso em: julho de 2020.
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