POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Uigures: perseguidos e humilhados

 




                                                        Regiões onde vivem os Uigures.



Penso muito nos povos perseguidos: os rohingya, os pobres uigures, os yazidis - o que o Daesh fez com eles foi muito cruel - ou os cristãos no Egito e no Paquistão, mortos por bombas detonadas enquanto rezavam na igreja

Papa Francisco



Quem é o povo a que se refere o Papa Francisco no texto em epígrafe? Trata-se dos uigures, minoria étnica e religiosa que vive na porção noroeste da China; muçulmanos da região autônoma de Xinjiang, que faz fronteira com o Paquistão e o Afeganistão. Falam uma língua que divide raízes com o turco. O povo uigure também se sente mais ligado, cultural e etnicamente, à Ásia Central do que ao resto da China. Há semelhanças entre o que se passa com os Uigures e com os tibetanos, povo que não se considera chinês e tem sido também vítima de suas investidas colonialistas desde os anos 1950. Segundo o Dalai Lama líder espiritual dos tibetanos exilado na Índia, o Tibete foi transformado em um verdadeiro inferno com a morte de centenas de milhares de tibetanos resultante da ocupação chinesa em seu território. Ambos têm sonhos independentistas que são legítimos tendo em vista suas histórias respectivas. Ambos são, portanto, focos de perseguição por razões culturais, econômicas e religiosas. Há também queixas semelhantes dos dois povos: sentem-se igualmente excluídos política e economicamente por Pequim, não tendo, por esses razões, quaisquer motivos para fazer parte de um país que não cede a qualquer reivindicação e os trata com brutalidade e inferioridade. Apesar da distância geográfica, cultural e histórica há outras coincidências entre os dois povos e regiões. Habitam territórios de grande importância estratégica  para a China, com riquezas naturais e grandes áreas produtivas para a agricultura, o que faz a mão pesada de Pequim querer definir seus destinos. A perseguição étnica, religiosa e cultural deve continuar se aprofundando no Noroeste da China. Longe dos olhos da opinião pública internacional, a nação imperialista vende essa investida com feitio de terrorismo de Estado como luta antiterror para angariar simpatia do Ocidente a sua estratégia de aculturação forçada. Sabe-se, contudo, tratar-se muito mais de uma luta com alvo certo, a religião e a cultura que fazem dos Uigures, únicos na imensidão da China. As alegadas medidas de combate ao extremismo são de fato uma perseguição sistemática ao povo uigure devido, principalmente, além da questão econômica, a esses três fatores: etnia, religião e cultura. Há no passado recente o registro de um ataque terrorista na China atribuído ao povo uigure, que acirrou os ânimos no centro do poder do país e foi tomado para justificar atrocidades posteriores patrocinadas pelo governo. O ataque terrorista na região de Xinjang em 2014 matou 31 pessoas e feriu outras 94 e foi atribuído a separatistas uigures. Isso resultou na criação de um sistema de vigilância local e de campos de detenção em massa, chamados eufemisticamente de Centros de Treinamento em Formação Profissional, para o encarceramento compulsório e arbitrário de pessoas com perfil étnico determinado. Também há outras estratégias para tornar a região apenas mais um bloco chinês sob o mando inquestionável de Pequim. Urbanização, migração de trabalhadores, conexões de transportes para atingir os últimos rincões de Xinjiang, integrando-os a uma China que ainda lhes é estranha e ameaçadora; remanejamento de crianças para escolas chinesas para que abandonem sua identidade étnica e religiosa, prova clara de controle compulsório e desrespeito a um povo e sua cultura. Sequer aqueles poucos que conseguem fugir para longe se livraram da intimidação e ameaças do Estado chinês. Exilados em países longínquos, Uigures continuam sendo perseguidos e têm suas famílias que ficaram para trás feitas reféns para serem chantageados. A perseguição é estudada e executada com violência e desumanidade pelos mandantes de Pequim para eliminar todas as raízes religiosas e heranças culturais uigures, pretendento, desse modo, assegurar o domínio completo na região. A China não quer aceitar na sua dimensão continental o convívio de diferentes povos e culturas e muito menos que esses povos se beneficiem, ainda que seja com um mínimo de autonomia, da riqueza local. 




Um pastor da etnia uigur caminha com seu rebanho de ovelhas perto do Monte Tianshan em Aksu, Xinjiang, em 28 de julho de 2012 (© Reuters/Stringer). 


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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Desaprendemos a viver em paz (1)

  


                                                                Vários países rejeitam cotas estabelecidas pela UE - Getty Images




A imigração deve, assim, ser entendida como um grito contínuo de manutenção da sobrevivência frente a uma ordem hegemônica que invade, arde e maltrata a condição básica da existência-sobrevivência humana.

Karen Honório (2)


Se fosse uma população de um país, seria o quarto maior das Américas, perdendo apenas para os Estados Unidos, Brasil e México. Seria um país com quase o dobro dos habitantes da Argentina, mais que o dobro do Canadá e trinta milhões a mais que a Colômbia. Fosse a população de uma nação européia, se colocaria imediatamente após a Alemanha, ocupando o segundo lugar em número de habitantes no velho mundo. Caso consideremos todos os países no mundo seriam apenas dezenove com um número maior de habitantes. Essas comparações revelam a dimensão da tragédia humana em que vive grande parte dos oitenta milhões de imigrantes, um número que só cresce a cada ano. Há uma década havia a metade dessa cifra atual. A quantidade de pessoas que fogem ao redor do planeta nunca foi tão grande. Muitas delas estão em fuga dentro do próprio país, abandonam zonas de perigo, com guerra, fome, perseguição religiosa e por conta de outros males que têm principalmente na ação (des)humana seus fundamentos. Vale a pena ressaltar que ora a situação ainda se torna mais grave uma vez ocorrer em um cenário inusitado de pandemia em todo o mundo. Somente durante o ano 2019 se somaram quase nove milhões de pessoas refugiadas, segundo a ACNUR, agência da ONU para refugiados. Esse crescimento vertiginoso da população migrante impediu qualquer comemoração em 20 de junho, Dia Mundial do Refugiado. Em lugar de comemoração apenas uma questão deve ser colocada: O que fazer para impedir esse crescimento vertiginoso da população de migrantes? Dentre os muitos países que contam para esse aumento pode-se destacar a República Democrática do Congo, o Iêmen e a Síria, além da região conhecida como Sahel, uma faixa de transição no continente africano, região semiárida se estendendo da Mauritânia ao Sudão, compreendendo partes do Senegal, Mali, Burkina Faso, Argélia, Níger, Nigéria, Chade, Camarões, Sudão do Sul, Etiópia e Eritreia. Em Burkina Faso, cerca de 80 mil pessoas foram forçadas a se deslocar dentro do próprio país em 2019, número que se elevou para quase 850 mil nos dias de hoje, nesse caso, a maioria foge de milícias jihadistas. A ACNUR calcula que só em Burkina Faso houve um total de 300 mil novos deslocamentos internos em 2020. Nas Américas, foi na Venezuela, onde se teve a grande maioria de pessoas fugindo para outros países. Calcula-se que mais de 3,7 milhões de venezuelanos abandonaram suas casas e foram buscar asilo em países com os quais divide suas fronteiras ou Calcula-se que mais de 3,7 milhões de venezuelanos abandonaram suas casas e foram buscar asilo em países com os quais divide suas fronteiras ou alhures, passando por eles. A ACNUR também constatou que mais de dois terços dos refugiados internacionais vêm de apenas cinco países: além da Venezuela, há 6,6 milhões da Síria, 2,7 milhões do Afeganistão, 2,2 milhões do Sudão do Sul e 1,1 milhão de Mianmar. No país asiático o povo rohingya é vítima de uma limpeza étnica que resultou no seu êxodo em massa rumo a Bangladesh. No entanto, a maioria dos que fogem dos seus países de origem ao redor do mundo não chega tão longe: um grande número passa a viver no país mais próximo, o vizinho cuja fronteira é alcançada por longas caminhadas ou meio de transporte mais acessível, mesmo que perigoso ou para os já depauperados migrantes muito caro. "E assim é que a vasta maioria - 85 por cento - de todos os refugiados procuram proteção em países pobres. 80% de todas as pessoas deslocadas estão em regiões ou países afetados pela desnutrição.”(3) Há países que receberam muitos refugiados e já não contam mais com um retorno iminente desses para suas pátrias, diferentemente do que ocorria em outras épocas (décadas atrás) quando muitos terminavam por retornar. Essa nova realidade de sempre novos refugiados e deslocados, enquanto poucos retornam a suas pátrias termina por complicar a equação.


Era diferente para os refugiados nos anos 1990, quando a guerra grassava nos Bálcãs, havia uma disputa pela fronteira entre Mali e Burkina Faso ou uma guerra civil na República do Congo. Naquela época, 1,5 milhão de pessoas podiam voltar para casa todos os anos, agora são apenas 400.000 os que conseguem voltar.”(4)


Só a guerra na Síria já dura nove anos e já transformou mais de treze milhões de pessoas em refugiados, requerentes de asilo e pessoas deslocadas internamente. De um lado Venezuela, Síria, Afeganistão, Sudão do Sul e Mianmar, os cinco países que representam dois terços dos refugiados no mundo e do outro, na lista de países que mais recebem refugiados, a Alemanha, ocupando uma posição de destaque. No entanto, outros países que diferentemente dos privilegiados do Primeiro Mundo, têm sérios problemas políticos e econômicos também se vêem obrigados a abrigar muitos dos que não tiveram escolha e adentraram seus territórios. Para eles a única saída foi trocar a pobreza do seu país pela de um outro, além fronteira. O pouco que têm os anfitriões, não chega para ser dividido, gerando intolerância e xenofobia em uma população pouco esclarecida e já cansada das próprias mazelas domésticas, o que complica ainda mais a vida dos novos moradores. Muitos transitam entre países fronteiriços outros entre regiões, nesse caso deslocamentos dentro das fronteiras do próprio país. Grandes fluxos de estrangeiros terminam ficando nos países que deveriam ser abrigo temporário como Turquia, Colômbia, Paquistão e Uganda; desses, poucos conseguem um dia retornar ao país ou região de origem. Na Turquia mais de 3,6 milhões de sírios; na Colômbia venezuelanos buscam abrigo depois de empurrados para fora do seu país por sua decadente situação política e econômica: "A Colômbia é a mais atingida pela crise da Venezuela. Devido às grandes incertezas socioeconômicas e aos surtos regulares de violência no país vizinho, a Colômbia acolhe um grande número de refugiados venezuelanos. Em abril de 2020, havia mais de 1,8 milhão. Além disso, até setembro de 2019, quase 500.000 venezuelanos usaram a Colômbia como país de trânsito para chegar ao Equador ou outros países do sul.”(5) A saga venezuelana continua atual. Em dezembro de 2020 pelo menos vinte e um venezuelanos refugiados morreram ao tentar chegar a Trinidad e Tobago de barco. Pode haver ainda mais vítimas no grupo que saiu da cidade de Güiria, no estado venezuelano de Sucre, rumo à ilha caribenha a  apenas cerca de 15 km da costa venezuelano. Em solo paquistanês e iraniano já se encontram quase 2,4 milhões de refugiados afegãos enquanto 1,14 milhão de refugiados vivem em Uganda, país africano que recentemente passou por complicado processo eleitoral para a presidência e se encontra com sérios problemas na política doméstica. Em época de pandemia de covid-19 os problemas se multiplicam e tornam a luta contra o vírus ainda mais desafiadora. Como lidar com a necessidade de cuidados exigidos pela pandemia em situação de fuga e na vida em acampamentos de refugiados, abrigos lotados ou até mesmo na rua? Em países mais pobres, acampamentos são erguidos em regiões muitas vezes de difícil acesso para grupos de apoio, sem água potável, alimentação escassa e a falta de outros recursos básicos para a sobrevivência, já difíceis de se obter mesmo em outros tempos anteriores à pandemia. Pergunta-se sobre quem deve pagar para que esses países anfitriões possam continuar seu trabalho junto aos refugiados que recebem.


Os refugiados estão atualmente "enfrentando uma emergência dupla e inimaginavelmente grande: conflito e deslocamento, bem como a pandemia Covid-19 e a crise econômica global que ela desencadeou, disse David Miliband, presidente do Comitê Internacional de Resgate (IRC). Os países onde vive a maioria dos refugiados e pessoas deslocadas internamente estavam lutando contra a Covid-19 com recursos extremamente limitados. 'Os novos números de refugiados devem, portanto, ser um sinal de alarme para todos.”(6)


Essa nova realidade dos refugiados em um cenário de pandemia acrescenta outras dificuldades aos órgãos que tentam ajudar os atingidos e também aos países anfitriões, muitas vezes já sobrecarregados com problemas domésticos. Baseado no que afirma Filippo Grandi(7), Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, não se trata mais, como em outros anos, de uma situação temporária e reversível, principalmente por conta dos conflitos nas regiões de origem que forçam a fuga não serem debelados a tempo, impedindo qualquer tentativa ou plano de retorno. Em países do Terceiro Mundo que recebem grandes contigentes de imigrantes a sobrevivência mínima é o desafio maior. E mesmo em países mais estruturados, poucas são as experiências que trazem bons resultados por meio da implementação de uma política de integração satisfatória para os que chegam já desesperançosos, sofridos e com pouca fé no futuro. Sem lar, sem trabalho e muitas vezes deixando para trás entes queridos têm que enfrentar novas barreiras na pátria desconhecida, uma torre de Babel, um mundo repleto de desafios e medo e a dúvida se haverá acesso a educação, saúde e trabalho. A saga continua mesmo depois de ter, a duras penas, sobrevivido a longa e arriscada jornada. Uma experiência que deve ser lembrada ocorreu na segunda década deste século  e vem da Europa, mais especificamente da Alemanha. Milhares entre milhares de pessoas passaram por várias fronteiras até aportar no que consideravam o solo mais seguro para conquistar e superar o horror da guerra que haviam deixado para trás. Algo novo ocorria e superava os muitos fiascos da política de imigração em diferentes países, ainda que ricos e desenvolvidos. Levando-se em conta o que ocorreu com o grande fluxo migratório na Europa em consequência da guerra na Síria, a reação da Alemanha, com sua chanceler Angela Merkel, difere da experiência não tão bem sucedida com a onda de imigração de uma Iugoslávia em colapso nos anos 1990. Com o novo contingente migratório que atingiu de frente a Alemanha a partir de 2015, as decisões do governo vistas como favoráveis à imigração levou a disputas internas com severas críticas de vários setores da sociedade e da oposição parlamentar à política de imigração capitaneada pela chanceler Angela Merkel, que resultou no aumento significativo e no fortalecimento de grupos de extrema direita e proto-fascistas, que buscavam se fortalecer e desestabilizar a democracia alemã. Um novo movimento impulsionava a xenofobia e o fascismo e cobrava da chancelar uma mudança de rumo na sua política de boas vindas aos que acabavam de chegar. O Partido de extrema-direita Alternative für Deutschland (AfD) passou a criticar duramente a política de refugiados de Angela Merkel, indo contra a cultura de boas-vindas de 2015 que acolheu os milhares de imigrantes vindos pela rota dos Bálcãs. "Em 2016, o partido populista de direita obteve um resultado recorde em várias eleições estaduais. Dois anos depois, se tornaria o partido de oposição mais forte do Bundestag.”(8) As críticas à chanceler não ficaram circunscritas a seus opositores e cresceram entre os próprios aliados. "Angela Merkel também diz autocriticamente: 'Um ano como 2015 não deve se repetir.' No entanto, o país pode se orgulhar de 'ter dominado tão bem esse dramático desafio humanitário’”.(9) Dessa atitude resultou uma nova política para refugiados que se diferencia daquela aplicada em outros países, inclusive países ricos europeus. Ao lado do que se vê como uma política anti-refugiados que foi se formando para evitar a repetição de 2015, houve uma mudança de paradigma em comparação com fases anteriores como ocorreu com a forma de tratar o problema dos imigrantes iugoslavos nos anos 1990. 


Naquela época, o pressuposto era: as pessoas vão embora de novo, se for necessário vamos deportá-las. Um erro que mais tarde teve suas consequências. Muitos ficaram, mas ninguém se importou com o que acontecia com eles. E muitos lutaram para encontrar trabalho. Se encontrassem algum, às vezes mal tinham o suficiente para viver e uma pensão decente. Afinal, esse erro não se repetiu depois de 2015. Uma verdadeira indústria de integração foi construída para uma parte considerável dos recém-chegados, o que é particularmente útil na sua entrada no mercado de trabalho: cursos de línguas, pós-qualificação e formação adaptativa, promoção do reconhecimento de competências formais e informais - é um conjunto de instrumentos com que os primeiros recém-chegados só poderiam sonhar. E assim, cinco anos após a sua chegada, dois terços dos refugiados de 18 a 64 anos conseguiram emprego. Mais de 55.000 pessoas dos oito países de origem de emigração mais importantes estão concluindo um estágio, cerca de 270.000 frequentam a escola e quase 20.000 estudam em um universidade.(11)


O governo conseguia, apesar dos imbróglios políticos, a estabilidade necessária para superar os erros dos anos 1990 com a acolhida dos imigrantes majoritariamente oriundos da antiga Iugoslávia. Um novo paradigma foi criado para os recém-chegados, principalmente os que vinham das longas e perigosas jornadas por terra desde uma Síria em guerra civil, via Turquia, passando ainda por mares e fronteiras. Enquanto o país desenvolvia essas novas estruturas para a integração dos imigrantes, principalmente visando a uma consequente entrada no mercado de trabalho para uma vida futura mais sólida, outros países ainda patinavam com suas tentativas repetidas ou amadoras de fazer com que os imigrantes fossem pelo menos aceitos e evitar que fossem atacados pela população cética e influenciada pelos movimentos e partidos de extrema-direita em seus países. Muitos países do Leste europeu, como Hungria, Romênia, Bulgaria, Polônia etc. recusaram-se a receber refugiados e parte deles construiu inclusive barreiras físicas para impedir a entrada ou passagem dos refugiados desesperados por seu território. Aqueles que conseguiam entrar eram de preferência enviados em comboios para outros países, principalmente para a Alemanha. Também em outras nações europeias como a Grã-Bretanha e países escandinavos houve barreiras físicas e resistência política à acolhida dessas pessoas. Como a situação piorava dramaticamente na Síria em 2015, mais de quatro milhões de pessoas fugiam rumo à Europa, incluindo nesse número aqueles vindo de regiões como Eritreia, Iraque ou Norte da África cuja rota era pelo Mediterrâneo.  A partir desse quadro já se tinha a clara configuração de que uma iminente crise humanitária se aproximava.(11) Em tempos mais recentes, nos Estados Unidos, os procedimentos anti-imigração de Donald Trump se encontram mais próximos do que se pode chamar de uma monstruosidade nazista. Em 2018 foi criada no seu governo a política de tolerância zero que rapidamente resultou na separação de mais de 2.600 crianças dos seus pais. Colocadas em abrigos ou acolhidas por famílias locais, muitas delas ficavam a centenas de quilômetros de distancia das suas famílias. As crianças eram filhas de imigrantes que tentavam atravessar a fronteira sul estadunidense. A política de separação das famílias para desencorajar a imigração para os Estados Unidos foi basilar no governo Trump e resultou na desestruturação da vida de muitos pais e filhos. Cerca de 545 delas nunca conseguiram localizar seus pais novamente. "Os advogados da União Americana das Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) denunciaram a um tribunal da Califórnia que a política de tolerância zero adotada pelo Governo de Donald Trump para a imigração gerou a terrível situação destas crianças, que estão sozinhas em um país estrangeiro e sem seus pais. A maioria desses adultos já foi deportada, principalmente para países da América Central."(12)

Distante da Europa e mais a sul dos Estados Unidos houve um fluxo migratório regional que chegou também ao Brasil. A maioria desses imigrantes que eram venezuelanos buscavam se instalar principalmente no estado de Roraima, no norte do país. Depois de uma viagem que podia ser feita até mesmo a pé, se deparavam com as dificuldades de uma comunidade alijada de conhecimento e experiência mínimos para lidar com essa demanda. Segundo a Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), depois dos Estados Unidos, o Brasil foi o segundo destino mais procurado pelos venezuelanos a grande maioria entrou pela fronteira com o estado de Roraima e solicitou por refúgio, uma permissão para permanecer no Brasil na condição de refugiados. Desse novo tipo de imigração em alto contigente como ocorreu com o inesperado fluxo de pessoas oriundas da Venezuela, os governantes e políticos se mostram incapazes de cumprir ritos humanitários e dispensar um tratamento digno e igualitário aos imigrantes como aos nacionais, "princípio consagrado em nossa Carta Magna."(13) Há muito desconhecimento sobre a legislação brasileira que poderia servir de proteção a esses imigrantes e permitiria sua regularização no país anfitrião. Preconceitos e desinformação se somam à inexperiência levando os políticos e governantes a agir apenas intuitivamente ou com direcionamento político, o que agrava a situação e não evita a chegada de mais imigrantes. Políticos da região e em nível nacional, em vez de buscar meios para lidar com o problema, aumentou-o, ao deixar os venezuelanos que atravessavam a fronteira terrestre em massa a sua própria sorte e susceptíveis a ataques e hostilidade de setores desinformados ou mal intencionados da população. "Para João Carlos Jarochinski… as oligarquias políticas locais usam o preconceito para se livrar de críticas a respeito da precariedade dos serviços de saúde e segurança no estado, inflando a população, que já vive em cidades pobres e precárias, contra os refugiados.(14) O recurso a uma retórica xenófoba por autoridades atende muito mais a interesses políticos de grupos específicos e se distancia da necessária construção de uma logística para ajudar na integração dos que chegam em situação de desespero. Esta realidade não é um privilégio de determinados países, é muito mais uma regra seguida por quase todos no enfrentamento desse movimento migratório crescente em todo o mundo, que deve ser combatida.


Antonio Caubi Ribeiro Tupinamba 

Fortaleza, dezembro de 2020.

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1) Publicado originalmente no Caderno Opinião do DN: Disponível em: <https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/opiniao/colaboradores/desaprendemos-a-viver-em-paz-1.3024434>. Acesso em dezembro de 2020.


2) Karen Honório é professora do curso de Relações Internacionais e Integração da UNILA, doutoranda pelo PPGRI San Tiago Dantas e membro do GR-RI.


3) Jakob, C. Fast 80 Millionen auf der Flucht. Disponível em: <https://taz.de/Jahresbericht-UNHCR/!5696225/>. Acesso em: dezembro de 2020.


4) Christoph, M. “Es scheint, als ob wir verlernt haben, Frieden zu schließen.” Disponível em:  <https://www.br.de/puls/themen/welt/weltweit-menschen-auf-der-flucht-100.html>. Acesso em dezembro de 2020.


5) UNO Flüchtlingshilfe. Disponível em: <https://www.uno-fluechtlingshilfe.de/hilfe-weltweit/kolumbien/>. Acesso em: dezembro de 2020.


6) Jakob, C. Fast 80 Millionen auf der Flucht. Disponível em: <https://taz.de/Jahresbericht-UNHCR/!5696225/>. Acesso em: dezembro de 2020.


7) ibdem


8) Deutschland und die Flüchtlinge: Wie 2015 das Land veränderte. Disponível em: <https://www.dw.com/de/deutschland-und-die-flüchtlinge-wie-2015-das-land-veränderte/a-47459712>. Acesso em: dezembro de 2020.


9) ibdem


10) Jakob, C. Fast 80 Millionen auf der Flucht. Disponível em: <https://taz.de/Jahresbericht-UNHCR/!5696225/>. Acesso em: dezembro de 2020.


11) Deutschland und die Flüchtlinge: Wie 2015 das Land veränderte. Disponível em: <https://www.dw.com/de/deutschland-und-die-flüchtlinge-wie-2015-das-land-veränderte/a-47459712>. Acesso em: dezembro de 2020.


12) Corona, S. Pelo menos 545 crianças imigrantes retidas por Trump ainda estão perdidas dos seus pais. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2020-10-23/pelo-menos-545-criancas-imigrantes-retidas-por-trump-ainda-estao-perdidas-dos-seus-pais.html>. Acesso em dezembro de 2020.


13) Milesi , R., Coury, P., Rovery , J. Migração Venezuelana ao Brasil: discurso político e xenofobia no contexto atual Aedos, Porto Alegre, v. 10, n. 22, p. 53-70, Ago. 2018.


14) Scorce, C. Ao culpar venezuelanos, autoridades estimulam xenofobia, diz pesquisador. Disponível em:  <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/ao-culpar-venezuelanos-autoridades-estimulam-xenofobia-diz-pesquisador/>. Acesso em : dezembro de 2020.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Uganda: Quase um protetorado estadunidense

                                                                                           Mapa da Uganda



Quando se reelegeu presidente de Uganda em 2011, Yoweri Kaguta Museveni do Partido National Resistance Movement (NRM), já tinha em vista as eleições de 2016 o que se repetiria com 2020.  Os governos de Uganda após se libertar do julgo britânico se resumem a uma série de ditaduras e atentados contra poderes estabelecidos ou não. Depois da desventura de um regime déspota com o sanguinário Idi Amin vieram as eleições de 1980 que reconduziram Milton Obote, ex-Primeiro Ministro em período posterior  à independência, ao cargo mais alto da nação, acabando um ciclo de tirania e um dos regimes mais opressores da África. Em 1985 Obote e seu governo também despótico que sequer conseguiu superar a situação caótica do país pós Amin foi deposto em 1985 numa situação praticamente de guerra civil,  por um golpe militar e substituído por Tito Okello. Okello, contudo, permaneceu apenas um ano no poder, sendo logo derrubado por uma força rebelde liderada pelo atual governante, Yoweri Museveni. A interferência estadunidense a favor daquele que invadiu Kampala e destituiu seu antecessor perdura até os dias de hoje e é o fundamento para a manutenção do regime. Com a cumplicidade com o governo brutal de Museveni países ocidentais passam a ser sócios de um regime que persegue e mata em nome de uma verdadeira autocracia.  Acostumado a frenquentar os anais da história por seus governantes e regimes truculentos, ditatoriais e caricatos, a exemplo de Idi Amin que comandou o país com requintes de tirania, um dos mais opressores do continente entre 1971 e 1979, Uganda parece reviver os fantasmas desse passado sombrio que se queria ter superado com as voltas de eleições universais e reintrodução de poderes mais representativos da população nos seus diferentes níveis. Desde 1986 Museveni vem governando o país a sua maneira e com a questionada vitória de 2020 poderá chegar a quatro décadas como presidente desse país africano de 37 milhões de habitantes que faz parte do clube nada invejado de países com baixo Índice de Desenvolvimento Humano - IDH. Aproxima-se, dessa forma, da trajetória controversa do seu correligionário, o ditador Mugabe do Zimbabue que permaneceu por 37 anos no poder, até a sua morte, tendo sido o maior responsável pela destruição da economia do seu país. Museveni tem perseguido todas as formas de expressão da população civil que sejam por ele vistas como uma ameaça a sua hegemonia e poder. Já em 2012, quando estava há 26 anos no cargo de presidente, testemunhou-se um recrudescimento de suas ações persecutórias aos setores da população que não comungassem com seus desmandos e onipotência. A exemplo disso, o Observatório de Direitos Humanos - (Human Rights Watch - HRW),  reportava em agosto de 2012 essa onda crescente de intimidação e ameaças à sociedade civil no dia a dia do país: 


Os atores da sociedade civil que trabalham com governança, direitos humanos, terra, petróleo e outras questões sensíveis são os principais alvos desses ataques, aparentemente porque eles são vistos como uma ameaça para minar os interesses políticos e financeiros do regime. Ao mesmo tempo, a hostilidade do governo e o assédio à comunidade lésbica, gay, bissexual e transgênero (LGBT) de Uganda e sua liderança continuam. Funcionários do governo que demonizam a homossexualidade estão visando uma comunidade vulnerável e deliberadamente desinformando o público, despertando ódio e desviando a atenção de doadores estrangeiros de problemas de governo profundamente enraizados e crescente frustração doméstica com o presidente Museveni e a política de patrocínio de seu partido. (1)


Mas o que segura tão firmemente o déspota no poder por tanto tempo? Certamente não teria esse tempo de sobrevivência sem a grande soma de dinheiro e ajuda armamentista que vem dos “amigos" estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos da América. Enfim, não é por amor à democracia que esses países “amigos” de Uganda injetam volumosas somas de dinheiro e aparelham militarmente o governo. É muito mais por sua lealdade aos doadores e submissão inquestionável aos interessados em controlar o país e a região. Afinal de contas estamos falando de um aliado dos Estados Unidos de longas datas, que já passou pelos presidentes estadunidenses Reagan e Obama. Para continuar oprimindo seus oponentes e controlando a população com seu aparato de segurança criminoso, o dinheiro continua fluindo a despeito do seu claro desprezo pelos direitos humanos e o conhecimento tácito dos seus métodos de repressão pelas nações doadoras. 

Durante seu reinado de quase quatro décadas, Uganda se tornou um dos estados policiais mais repressivos não apenas na África, mas possivelmente no mundo todo. O Departamento de Estado dos EUA reconhece prontamente esse fato em seus relatórios anuais de direitos humanos. O Estado de Direito em Uganda se deteriorou nos últimos anos. Essa realidade agora acontece diariamente em nossas rádios, telas de televisão e nas redes sociais. É hora dos chamados parceiros de desenvolvimento de Uganda em geral, e do governo dos Estados Unidos em particular, pararem de financiar a repressão… O apoio a ditadores de longo governo, como Museveni, foi muitas vezes justificado sob a bandeira duvidosa de manutenção da estabilidade. Devemos perguntar: Estabilidade para quem? Claramente, Uganda está longe de ser estável. Basta perguntar a Bobi Wine(2), seus colegas e apoiadores. Pergunte aos jornalistas e ativistas de direitos humanos maltratados do país. E pergunte aos familiares das dezenas de mortos em plena luz do dia no mês passado pelas forças do estado de Uganda. Já passou da hora de os Estados Unidos e o Banco Mundial cessarem de subsidiar a repressão em Uganda e de alimentar a instabilidade que ela inevitavelmente produz. Até então, o regime de Museveni sem dúvida continuará perseguindo oponentes políticos - como Bobi Wine - enquanto os contribuintes americanos continuam pagando a conta.(3)


O homem forte de Uganda, aquele que destrói a democracia, prende, mata e tortura seus opositores, é também o africano favorito dos Estados Unidos. Seus abusos são ignorados porque é um aliado próximo do Pentágono, a despeito de trazer o caos doméstico para Uganda, transformando a vida dos ugandenses em uma tragédia que atravessa as fronteiras e chega até seus vizinhos. Enfrentar o ditador nas eleições presidenciais custou ao seu opositor, Bobi Wine, um tempo na prisão e a vida de dezenas de pessoas que foram mortas em protestos exigindo sua libertação. Robert Kyagulanyi, alias, Bobi Wine, desafia o presidente Museveni, de 76 anos, no poder desde 1986, apesar de todas as formas de repressão e perigo que isso lhe custou. "Eleito deputado em 2017, Wine se tornou porta-voz de uma juventude urbana e muito pobre, que não se reconhece no envelhecido regime de Museveni.”(4) Sem alternância política na presidência desde que entrou no poder em 1986, o governo que também derrubou Milton Obote repete os mal feitos de seus antecessores e quer se perpetuar no posto por meio de eleições conhecidamente fraudulentas e capitaneadas pela certeza da impunidade, além da generosa ajuda financeira dos que ditam a ordem mundial e pouco se preocupam com o sofrimento do povo ugandense sob a égide de mais um ditador.


Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá

Fortaleza, 08 de dezembro 2020.


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(1) Intimidation and Obstruction of Civil Society in Uganda. Disponível em: <https://www.hrw.org/report/2012/08/21/curtailing-criticism/intimidation-and-obstruction-civil-society-uganda>. Acesso em dezembro de 2020.

(2) Bobi Wine, o principal candidato da oposição à presidência do país. 

(3) Wine, B. My Torture at the Hands of America’s Favorite African Strongman. Disponível em:  <https://www.nytimes.com/2020/07/29/opinion/uganda-museveni-repression.html>. Acesso em: dezembro de 2020.

(4) 37 morrem em protestos contra prisão de candidato em Uganda. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/11/20/37-morrem-em-protestos-contra-prisao-de-candidato-em-uganda.ghtml>. Acesso em: dezembro de 2020.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

A guerra etíope no Tigray*

 

                                  Mapa da Etiópia com destaque em vermelho para a Região do Tigray.



Em Tigray está o núcleo do antigo reino Aksumite e as regiões históricas de Aksum, a antiga capital desse reino; Yeha, cidade da antiguidade e capital do reino pré-Aksumita de D'mt; Adwa, lugar sagrado para os Cristãos Ortodoxos Etíopes e local da fundação do Mosteiro de Abune Aftsie no século VI d.C. por um dos Nove Santos que vieram da Europa para o Chifre Norte e o Oriente Médio para a evangelização.(1) Aksum teve seu apogeu entre os séculos III e VI d.C., quando se tornou o maior mercado do Nordeste da África com seus mercadores comercializando até Alexandria e além do rio Nilo. O reino de Aksum continuou a dominar a costa do Mar Vermelho até o final do século IX, exercendo sua influência das costas do Golfo de Aden a Zeila na costa norte da Somalilândia (atual Somália e Djibouti). A conversão ao cristianismo do rei Ezana, no século IV, fez com que toda a região da Etiópia, grande parte da região da Núbia e de sua população também se convertessem, tornando Aksum um império cristão. Etíopes e núbios tinham o mesmo cristianismo monofisita via Constantinopla e Alexandria, respectivamente. Mais tardiamente, já no Século XVI os portugueses também estiveram no que corresponde à atual região do Tigray reforçando a fé cristã por meio dos padres jesuítas. Há registros dessa relação com a ida em 1514 a Lisboa de um embaixador etíope, apresentando-se ao rei de Portugal D. Manuel I, que a seguir despachou um embaixador ao então conhecido mítico reino cristão de Preste João, um reino militarmente poderoso, de riqueza exuberante e de religião cristã segundo o que imaginavam os europeus. "A imagem que a Europa da Idade Média e para além tinha da Etiópia é fascinante, mas ao mesmo tempo ignorante, já que diversos documentos históricos fazem referência constante ao alargamento e/ou ao posicionamento da Etiópia até à costa ocidental do continente africano e à designação de Etiópia como abrangendo toda a África, à exceção das zonas junto ao Mar Mediterrâneo. Esta situação estava altamente generalizada por toda a Europa da época."(2)


                                                                                  Igreja talhada na rocha. Tigray - Etiópia 



O pungente comércio dos antigos reinos foi substituído por uma economia eminentemente agropecuária formada de pequenos produtores rurais para abastecimento local. Agricultura e pecuária além da exploração de sal e potássio são pontos fortes atuais dessa economia local, que também depende da ajuda financeira externa em razão de vários fatores que assolam a população e dificultam suas vidas. Secas, guerras e a permanente insegurança alimentar demandam ajuda humanitária da comunidade internacional, de instituições e países estrangeiros. Some-se a todos esses males o conflito interno que se agrava e joga a população da região de Tigray para fora das suas casas e até mesmo do país. Não se vê nada que remeta a seu passado mítico naquilo que se testemunha a poucos quilômetros da atual fronteira etíope, já no território do Sudão, onde dezenas de milhares de refugiados de Tigray (calcula-se que esse número poderá chegar a mais de 200.000), uma das nove regiões administrativas do país, vivem a duras penas com escassez de alimentos e água, em tendas improvisadas no meio do nada. A pandemia de covid-19 torna a situação ainda mais preocupante para os grupos de ajuda humanitária que, quando conseguem, se acercam dos acampamentos. Não há nessa situação subumana, como pensar em cuidados, prevenção ou tratamento face à pandemia que somada à fome e sede ameaça a sobrevivência dos que conseguiram fugir da guerra e chegar até aqui.  Essa tragédia teve seu início na região de Tigray, um estado que fica ao norte do país e tem mais de 5 milhões de habitantes, representando, contudo, apenas uma pequena parcela dos 110 milhões de habitantes de toda a Etiópia. As lideranças locais, combatentes da Frente de Libertação do Povo do Tigray  (Tigray People's Liberation Front - TPLF) insistem em não reconhecer o poder imposto a partir da capital desse país localizado na estratégica região do Chifre da África. À frente tem o Primeiro Ministro Abiy Ahmed vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 2019 por seu trabalho de pacificação na região após negociar o fim de uma guerra de décadas com a vizinha Eritreia. Uma paz que durou muito pouco e foi substituída por conflitos internos entre o governo federal e a TPLF, atual combatente que reivindica o mando sobre o território Tigray.  Em novembro foi o ápice do conflito, quando Ahmed enviou suas tropas para a região e afirmou ter retomado o controle da capital de Tigray, Mekelle, onde se concentram os milhares de combatentes da TPLF e uma população local de cerca de 500 mil civis. As tensões entre o governo federal da Etiópia em Adis Abeba e a TPLF aumentaram desde que Ahmed se tornou Primeiro Ministro em 2018. A TPLF vinha dominando uma coalizão governante da Etiópia por quase três décadas, ocupando posições centrais na política e nos negócios do país. Nessa guerra que cerca o povo Tigray e provoca um êxodo sem precedentes, há muita acusação dos dois lados; enquanto os líderes do Tigray acusam Ahmed de deixar seu povo à margem do poder no país e desrespeitar todos os tratados anteriores, o Primeiro Ministro afirma que a TPLF é um a organização terrorista que tenta dividir a Etiópia. Apesar das tropas do governo terem enfrentado pouca resistência na batalha por Mekelle, Ahmed não pode cantar vitória antecipadamente, pois há indícios de que os combatentes da TPLF não se rendam tão facilmente e em vez disso se misturem à população local para preparar uma insurgência armada que não só confrontará o Primeiro Ministro mas também poderá transformar a vida do povo Tigray em um verdadeiro inferno.


Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá

Fortaleza,  dezembro de 2020.

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* A partir de artigo para o Caderno Opinião do Jornal O Povo. Disponível em: <https://mais.opovo.com.br/jornal/opiniao/2020/12/09/antonio-caubi-ribeiro-tupinamba--tigray--o-ultimo-bastiao-etiope.html>. Acesso em: dezembro de 2020.

1) Compare: The Cultural Heritage of Yeha. Disponível em: < https://whc.unesco.org/en/tentativelists/6477/>. Acesso em dezembro de 2020.

2) Branco, A. M. V. do Reino de Axum ao Reino da Etiópia (Século I d.C. ao Século XVII): A Força e o Isolamento do Cristianismo na África do Norte e Nordeste. Millenium, 48 (jan/jun). pp. 63-74, p.73.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

ENTRE DAMASCO E ISTAMBUL ESTÁ O BRAVO POVO CURDO[1]

 



                                            Rojava (50 000 km2) Foto: Kurdische Gemeinde Deutschland e.V.




 


Sete anos após seu nascimento, o que resta do projeto pluralista e democrático concebido pelo PYD [Partido da União Democrática (PYD), ramo sírio do Partido Popular Curdo (PKK), com os dois outros componentes principais da população de Rojava: árabes e cristãos siríacos]? Nossa jornada começa no leste, no campo de refugiados de Newroz, em Derik, não muito longe das fronteiras da Turquia e do Iraque. Leila M. nos conta sobre seus seis êxodos desde 2018. “Minha família e eu somos de Afrin. Quando os turcos chegaram, fugimos para Chabab, depois para Alepo. De lá fomos para Kobane. Então meu filho encontrou emprego em Ras al-Ain. Após o ataque turco, tivemos de fugir descalços para Tall Tamer, e agora estamos neste campo.” Derwich F., pequeno agricultor em Tell Abyad, também relata sua fuga, no outono passado. “Vivíamos felizes. O sistema político funcionava muito bem. Então o presidente turco nos bombardeou com seus aviões. Todos os curdos foram embora.”[2]


 

No meio do caminho, entre Damasco e Istambul, por onde correm os rios  Tigre e  Eufrates, está o povo Curdo de Rojava. A maior etnia sem nação própria, nunca conseguiu reunir seu povo em um território que juntasse partes de diferentes países onde vivem e têm suas terras cortadas por diversas fronteiras. A Turquia, maior opositora desse projeto curdo perfila soldados com seus mísseis na fronteira com a Síria, região que compreende o Curdistão do Oeste, termo cunhado pelos curdos para o território sírio por eles habitado. Essa área predominantemente curda é conhecida como Rojava e se situa ao norte do país sírio, na fronteira com a Turquia. "Rojava fica no norte da Síria e na parte ocidental do chamado Curdistão. A área estende-se por mais de 2.000 quilômetros quadrados e é composta por três cantões Afrîn, Kobanê e Cîzire. Os cantões estão entre o rio Eufrates e o Tigre, um dos centros agrícolas mais antigos do mundo. As maiores cidades são: Kobanê, Amuda, Afrin, e Qamişlo…"[3]

Nela vivem mais de 300 mil curdos-sírios. A região que se encontra sob o controle do Partido da União Democrática (Partiya Yekîtiya Demokrat – PYD em curdo) desde 2012, conta com as Unidades de Proteção Popular (Yekîneyên Parastina Gel - YPG, em curdo), consideradas "a força síria mais efetiva na luta contra o Estado Islâmico. Além disso, o PYD é aliado ao Partido dos Trabalhadores Curdos da Turquia. O Estado Islâmico também se opõe aos curdos, que por sua vez tinham o apoio dos Estados Unidos e também da Rússia”[4]. Esse apoio foi covardemente retirado em 2019 pelo governo americano, o que deixou os curdos à própria sorte e uma isca para os planos de limpeza étnica da Turquia: "A retirada das forças norte-americanas do norte da Síria, em outubro de 2019, permitiu que o Exército turco atacasse Rojava, o enclave onde populações curdas e árabes tentam colocar em prática os princípios de um comunalismo democrático. Agora, a sorte desse território depende cada vez mais das negociações entre Ancara, Damasco e Moscou".[5] São exatamente muitas das guerreiras curdas do YPG que se expõem na linha de frente da batalha contra os fanáticos na Síria. "Todas são voluntárias, e muitas nunca haviam pegado em armas antes. O grupo começou em 2012, com o intuito de defender a população curda do regime de Bashar al-Assad, ditador sírio. À medida que a guerra civil síria se intensificou, com a entrada do Estado Islâmico, as mulheres passaram a combater os terroristas. Em agosto, em Raqqa, elas já resgataram centenas de civis e derrotaram dezenas de extremistas".[6]

Com a formação de um governo nessa região ao norte do país sírio, o PYD passou a empreender em 2012, um grande esforço para expandir seu controle territorial e consolidar um novo tipo de experimento político, tendo como fundamento teórico as ideias de Öcalan: o confederalismo democrático. Diversos encontros foram realizados durante o ano de 2013, culminando em uma Conferência, no dia 12 de novembro, com a participação de mais de 35 diferentes organizações, incluindo as diversas etnias da região, como curdos, árabes, assírios e yazidis”.[7] Esse potencial de se organizar em Rojava por meio de uma Revolução Socialista Libertária veio após a eclosão da guerra síria em 2011. (Moraes e Vieira, 2017).

Esse "Curdistão do Oeste", habitat sírio dos seus povos curdos que abriga os Combatentes do Partido da União Democrática Curda (PYD), o braço sírio do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, rebeldes curdos da Turquia) e sempre prontos para o combate contra rebeldes de cidades sírias fronteiriças da Turquia. Mas isso não é bem visto pelo governo em Ancara. Até que ponto não se tornaria esse território um ambiente propício para abrigar membros em guerra do PKK? Quais seriam os reflexos dessa região “autônoma" dentro da Síria sobre o próprio Curdistão turco? Não por menos a decisão do governo bélico turco de instalar, com aval da OTAN, mísseis antiaéreos em sua fronteira com a Síria, o que leva a crer, ao contrário do que se escuta em Ancara sobre mecanismos de autodefesa, seja a concretização do desejo de continuar atacando o povo curdo, inclusive além fronteiras. Juntos, curdos dissidentes originários do Curdistão e os curdos sírios pretendiam, segundo relatos de militantes[8] locais formar uma força militar unificada para se defenderem de ataques rebeldes. Novamente os Curdos, perseguidos no Curdistão e na Turquia e com sua longa história de perseguição em outros países a que pertencem, correm sério risco de ter que passar por mais perdas e sofrimento. Não há como esquecer os ataques químicos que sofreram durante a ditadura de Saddam Hussein na região iraquiana em que vivem. Em 16 de março de 1988, cerca de 5.000 curdos iraquianos, em sua maioria mulheres e crianças, foram assassinados pelo exército de Saddam Hussein por meio de bombardeamento com gases na cidade de Halabja, nordeste do país. Após uma longa história de catástrofes voltam a se preocupar com sua sobrevivência enquanto nação dentro de outras nações; desta feita na Síria, pelo perigo da violência turca.

Apesar de ser os responsáveis pelo exitoso combate ao terrorismo do Exército Islâmico no país sírio durante a guerra, são tratados como terroristas.  Suas composições políticas e militares em Rojava que visam à autodefesa foram, sem razão, condenadas pelos governos turco e americano. Por conta desse erro, a Turquia e os Estados Unidos cometem uma grande injustiça com o projeto de prosperidade que esse povo implementava na região. Há uma defesa implícita da democracia nesse projeto dos curdos de Rojava e a construção de novas formas de governar, nas quais opressão e neoliberalismo são excluídos. "Embora, no Iraque, os curdos tenham conquistado sua própria região autônoma em 2003, essa foi uma conquista instituída pelos Estados Unidos, quando invadiram o país, e imposta às outras forças políticas[…] Foi, portanto, uma autonomia imposta de cima para baixo, e dependente do apoio dos americanos […] Em contraposição, o experimento de autonomia democrática em Rojava foi promovido pelos próprios curdos da região, ainda que contando com algum apoio militar dos EUA na luta contra o Estado Islâmico. Dentre os fatores mais específicos, para além do problema da identidade, que desencadearam a revolta curda contra o regime de Assad, destaca-se: falta de infraestrutura, desemprego, baixa mobilidade social, e o aumento da população jovem[…] Diferentemente dos curdos do Iraque, que reivindicam o estabelecimento de um Curdistão independente, o movimento de libertação dos curdos sírios acredita que o Estado-nação está ultrapassado no mundo da globalização; eles reivindicam algo mais democrático, feminista e etnicamente inclusivo, e dizem estar tentando construir isso em Rojava”.[9] Notável e única trata-se, talvez, da revolução mais explicitamente feminina já testemunhada na história recente. Em seu texto onde se pergunta como o Oriente pode se livrar do caos, Cemil Bayik cita a relevância da revolução Rojava ser feminina. "O fato de a revolução em Rojava colocar as mulheres em primeiro lugar é uma garantia da sua sobrevivência e sustentabilidade. O desenvolvimento do patriarcado está intimamente relacionado ao surgimento e ao desenvolvimento do sistema centralizado de governo. O sistema de civilização centralizadora é um sistema de negação da vida.”[10] Uma região cujas mulheres eram em sua maioria camponesas e destinadas ao trabalho doméstico, tendo o casamento infantil como uma prática comum sofreu mudanças civilizatórias e culturais impensáveis. "Essas tradições foram derrubadas: casamento infantil, por exemplo, agora é ilegal. Há organizações de mulheres paralelas em cada campo, de uma milícia separada feminina, o YPJ, até comunas e cooperativas femininas paralelas. Autodefesa é um princípio da revolução de Rojava, por isso as mulheres são tão ativas na luta armada — mas o conceito se estende para o direito de autodefesa contra todas as práticas e ideias contra mulheres, incluindo aquelas da sociedade tradicional, não só contra a violência extrema do Daesh”.[11] Daesh é uma sigla em árabe formada a partir das letras iniciais do nome árabe do grupo - 'al-Dawla al-Islamiya fil Iraq wa al-Sham. Daesh soa como um verbo árabe que significa pisar ou esmagar algo e tem, portanto, um sentido depreciativo, sendo utilizado como uma forma de tirar a legitimidade do grupo, devido às conotações negativas que evoca.

Comparações do que se passava em Rojava com a Espanha de 1934-36 não são incomuns: trata-se de uma experiência feminina “inspirada nas concepções de um teórico libertário, Murray Bookchin, que é chamado de municipalismo libertário: secularismo, conselheirismo, ecologismo, igualitarismo, igualdade de gênero, respeito pelas minorias. As minorias culturais, é claro, não faltam em Rojava: yezidis, turcomanos e tantos outros, e na capital, Qamishlo, muitos cristãos assírios - os primeiros perseguidos pelo DAESH nos dias mais trágicos. Utopia? Não: implementação pragmática da liberdade e da fraternidade”.[12]

Ilham Ehmed, co-presidente do Conselho Democrático da Síria, alerta para as atrocidades que podem vir com a já conhecida hostilidade característica do exército e militares turcos, desta feita nos territórios curdos da Síria, inclusive com a estratégia de povoamento árabe para enfraquecer a presença curda na região. “A Turquia não apenas destruirá o projeto Rojava, mas também ameaça realizar uma transferência da população, assentando alguns dos três milhões de refugiados sírios que agora estão na Turquia. Esses refugiados sírios não são dessa região, mas do extremo oeste da Síria. Essa transferência populacional significa uma limpeza étnica (ou seja, uma violação do artigo 49 da Quarta Convenção de Genebra, de 1949)”.[13]

Essa presença ostensiva e destrutiva do  Exército turco já se percebe desde outubro de 2019 no nordeste da Síria, controlando uma faixa de 150 quilômetros de comprimento e 30 quilômetros de largura entre as cidades de Tell Abyad e Ras al-Ain (Serekaniye, em curdo), quando suas forças militares já estavam presentes mais a oeste, após o avanço sobre Afrin e seus arredores, em janeiro de 2018, impedindo a continuidade territorial da região curda politicamente autônoma desde 2013, conhecida como Rojava (“o oeste”, em curdo) ou como Federação Democrática do Norte da Síria. Um governo que tem como princípio não deixar que os curdos tenham paz e consegue por em xeque uma aliança político-militar estabelecida pelo Partido da União Democrática (PYD), ramo sírio do Partido Popular Curdo (PKK), com os dois outros componentes principais da população de Rojava: árabes e cristãos siríacos: "Essa aliança, que leva o nome de Forças Democráticas da Síria (FDS), cujo braço político é o Conselho Democrático da Síria (CDS), também deve contar com as tropas de Bashar al-Assad, que não desistiu de assumir controle de toda essa região, da qual se retirou em 2012”[14].


Rojava vinha se tornando o único enclave seguro no meio do caos sírio, até que as ameaças e ataques do Estado Islâmico se multiplicassem e atingissem vários pontos da região. As forças das Unidades de Proteção ao Povo (YPG), eficazes combatentes dos terroristas do E.I. pareciam estar perdendo o controle regional para os inúmeros atentados e ataques. O apoio estadunidense e turco em entrar no combate curdo ao E.I. veio somente após a sua ameaça em invadir Kobani, cidade-chave a poucos quilômetros da fronteira turca e até mesmo Ankara, capital do país. (Carranca, 2015).[16] O apoio que garantiu vitórias para o povo curdo contra o sanguinário exército terrorista em várias cidades de Rojava se desfez em 2019, o que jogou novamente os curdos no abandono.

A guerra civil na Síria de 2012 tem suas raizes mais superficiais ainda em 2011, quando manifestantes foram às ruas de Deraa, cidade no sul do país reivindicando a liberação de 14 estudantes de uma escola local. "Os alunos haviam sido presos e supostamente torturados por terem escrito no mural do colégio o conhecido slogan dos levantes revolucionários na Tunísia e no Egito: 'As pessoas querem a queda do regime’".[16] O regime de Bashar al-Assad tratou de reprimir com brutalidade a manifestação, levando, posteriormente, o protesto a atravessar as fronteiras de Deera.

Quando a guerra civil chegou a Aleppo, ao norte do país,  destruiu praticamente toda a cidade. Em início de 2016 já se viam dezenas de milhares de refugiados na fronteira do país fugindo de bombardeios da força aérea russa e de ataques de tropas leais ao regime de Bashar al-Assad. Aleppo, a maior cidade da Síria e um tradicional centro comercial do país se tornou uma das principais frentes dessa guerra sem fim. A nação síria é dominada pelos conflitos internos mas com larga contribuição de vários entes externos, a exemplo da Rússia, Irã, Arábia Saudita, Estados Unidos da América e Turquia. O recrudescimento e manutenção da guerra parece ser um objetivo e não algo a ser superado pela negociação. Desde julho de 2012, constantes batalhas entre as tropas do regime e rebeldes que querem derrubar o presidente Bashar al-Assad, além da presença destruidora do Daesha só causam morte e destruição sem promessas de superar a barbárie. O número de pessoas que conseguem fugir das áreas em guerra só cresce, tendo por corolário uma catástrofe humanitária sem precedentes. Essa guerra, que teve início em 2011 é, portanto, considerada a maior crise humanitária do século XXI.


O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) estima que houve, até o presente, 5,5 milhões de refugiados sírios e 6,6 milhões de deslocados internos no país (ACNUR/Global Trends, 2016). Desde o início do conflito, o número de pessoas severamente feridas é de mais de 2 milhões e o número de mortos já passa os 511 mil de acordo com Syrian Observatory for Human Rights (SOHR), sendo que 85% foram vítimas de ataques do governo ou de forças aliadas (SOHR, 2017). Segundo Syrian Center for Policy Research (SCPR), dos 20,8 milhões de habitantes que o país possuía em 2011, 11,5% foram mortos ou sofreram ferimentos graves. Atualmente a população da Síria é de aproximadamente 18,4 milhões (SCPR, 2017).[17]

 

Nessa guerra que envolve tantos interesses externos, várias etnias e conflitos históricos, a questão curda, apesar de extremamente relevante, é apenas um dos seus elementos. Muitos grupos e países, cada um com suas próprias agendas, estão envolvidos, tornando a situação muito mais complexa e prologando a guerra. Dentre outras acusações a de terem cultivado o ódio entre os grupos religiosos na Síria, colocando a maioria muçulmana sunita contra o setor xiita alauíta do presidente. Esse mosaico cultural, religioso, as muitas divisões e as diferentes ingerências externas no país fazem da paz apenas um elemento cada vez mais distante de ser alcançado.

 

Se você tirar a liberdade, todas as quatro estações e eu morreremos[18]

 

Se dos meus poemas

você arranca a flor

das quatro estações da minha poesia

uma delas morrerá.

Se você excluir o amor

duas delas morrerão

Se você excluir pão

três delas morrerão.

E se você tirar a liberdade

todas as quatro estações e eu morreremos.

(Sherko Bekas - poeta curdo)

 

Fortaleza, 9 de novembro de 2020.


Referências


[1] Este texto se refere, principalmente, ao que ocorria no ápice da guerra civil na Síria em 2012. Em novembro de 2020, continua se discutindo o destino de Rojava, o que nos faz continuar atentos com o que se passa na região.  Quando os Estados Unidos deixaram unilateralmente a Síria, viabilizaram os planos da Turquia e do seu sanguinário presidente Erdogan para possivelmente cometer mais um genocídio contra o povo curdo em suas terras já liberados. Kobane, ora em suspenso, é o retrato do medo. A ameaça que antes vinha do E.I. agora vem do exército turco e suas milícias. Cinco anos após a vitória de 2015, pergunta-se que futuro é reservado para Rojava.

[2] Court, M.; Hond, C. D. O futuro suspenso de Rojava. Disponível em: <.https://diplomatique.org.br/o-futuro-suspenso-de-rojava/>. Acesso em novembro de 2020.

[3] O municipalismo libertário e a revolução em Rojava Isaías Albertin de Moraes Fernando Antonio da Costa Vieira Crítica e Sociedade: revista de cultura política, Uberlândia, v. 7, n. 2, 2017 , p. 84-85.

[4] Soares, J. V. S. A Guerra Civil na Síria: Atores, interesses e desdobramentos. Série Conflitos Internacionais. Observatório de Conflitos Internacionais da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP) - Campus de Marília – SP, vol 5, n.1, fevereiro de 2018. Disponível em: <https://www.marilia.unesp.br/Home/Extensao/observatoriodeconflitosinternacionais/serie---a-guerra-civil-na-siria---atores-interesses-e-desdobramentos.pdf>. Acesso em: novembro de 2018.

[5] O futuro suspenso de Rojava.Mireille Court e Chris Den Hond.https://diplomatique.org.br/o-futuro-suspenso-de-rojava/). Disponível em: <https://diplomatique.org.br/o-futuro-suspenso-de-rojava/>. Acesso em: novembro de 2020.

[6] Quem são as mulheres curdas que combatem o Estado Islâmico? Disponível em: <https://veja.abril.com.br/mundo/quem-sao-as-mulheres-curdas-que-combatem-o-estado-islamico/> Acesso em: novembro de 2020.

[7] Nassera, R. M.; Roberto, W. M. A questão Curda na guerra da Síria: Dinâmicas internas e impactos regionais. São Paulo: Lua Nova, 106: 219-246, 2019, p. 228. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/ln/n106/0102-6445-ln-106-219.pdf>. Acesso em: novembro de 2020.

[8] Irã alerta oposição síria; rebeldes e curdos preparados para guerra. Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/11/ira-alerta-oposicao-siria-rebeldes-e-curdos-preparados-para-guerra.html>. Acesso em: novembro de 2020.

[9]Sacramento Moreira, Vitória. O experimento de Rojava como politização do internacional e do feminismo. Dissertação de Mestrado - Mestrado em Relações Internacionais. Universidade Federal da Bahia, 2019, p. 80.

[10]  Bayık, C. Wien kann sic der Mittlere Osten com Chaos befreien? IN: Anja Flach; Ercan Ayboğa; Michael Knapp. Revolution in Rojava.  Frauenbewegung und Kommunalismus zwischen Krieg und Embargo. Eine Veröffentlichung der Rosa-Luxemburg-Stiftung in Kooperation mit der Kampagne TATORT Kurdistan, p. 20.

[11]A revolução mais feminista que o mundo já testemunhou. Disponível em: <https://www.vice.com/pt/article/9kwpzv/revolucao-mais-feminista>. Acesso em: novembro de 2020.

[12] Le Rojava : la fin d’une expérience encombrante ? Disponível em: <http://eurojournalist.eu/le-rojava-la-fin-dune-experience-encombrante/>. Acesso em novembro de 2020.

[13] Se você tirar a liberdade, todas as quatro estações e eu morreremos. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2019/10/14/se-voce-tirar-a-liberdade-todas-as-quatro-estacoes-e-eu-morreremos>. Acesso em: novembro de 2020.

[14] Coourt, M.; Den Hond, C. O futuro suspenso de Rojava. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-futuro-suspenso-de-rojava/>. Acesso em: novembro de 2020.

[15]Carranca, A. Ameaça ao último refúgio. Mundo, Jornal O globo. 20/09/2015, p. 41

[16]Entenda o conflito na Síria. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/07/120718_entenda_conflito_siria_lgb>. Acesso em: novembro de 2020. 

[17] O municipalismo libertário e a revolução em Rojava Isaías Albertin de Moraes Fernando Antonio da Costa Vieira Crítica e Sociedade: revista de cultura política, Uberlândia, v. 7, n. 2, 2017 , p. 62-63.

[18] Carta semanal 41 (2019): se você tirar a liberdade, todas as quatro estações e eu morreremos. Disponível em: <https://www.thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/carta-semanal-41-2019-se-voce-tirar-a-liberdade-todas-as-quatro-estacoes-e-eu-morreremos/>. Acesso em: novembro de 2020.