Mapa da Etiópia com destaque em vermelho para a Região do Tigray.
Em Tigray está o núcleo do antigo reino Aksumite e as regiões históricas de Aksum, a antiga capital desse reino; Yeha, cidade da antiguidade e capital do reino pré-Aksumita de D'mt; Adwa, lugar sagrado para os Cristãos Ortodoxos Etíopes e local da fundação do Mosteiro de Abune Aftsie no século VI d.C. por um dos Nove Santos que vieram da Europa para o Chifre Norte e o Oriente Médio para a evangelização.(1) Aksum teve seu apogeu entre os séculos III e VI d.C., quando se tornou o maior mercado do Nordeste da África com seus mercadores comercializando até Alexandria e além do rio Nilo. O reino de Aksum continuou a dominar a costa do Mar Vermelho até o final do século IX, exercendo sua influência das costas do Golfo de Aden a Zeila na costa norte da Somalilândia (atual Somália e Djibouti). A conversão ao cristianismo do rei Ezana, no século IV, fez com que toda a região da Etiópia, grande parte da região da Núbia e de sua população também se convertessem, tornando Aksum um império cristão. Etíopes e núbios tinham o mesmo cristianismo monofisita via Constantinopla e Alexandria, respectivamente. Mais tardiamente, já no Século XVI os portugueses também estiveram no que corresponde à atual região do Tigray reforçando a fé cristã por meio dos padres jesuítas. Há registros dessa relação com a ida em 1514 a Lisboa de um embaixador etíope, apresentando-se ao rei de Portugal D. Manuel I, que a seguir despachou um embaixador ao então conhecido mítico reino cristão de Preste João, um reino militarmente poderoso, de riqueza exuberante e de religião cristã segundo o que imaginavam os europeus. "A imagem que a Europa da Idade Média e para além tinha da Etiópia é fascinante, mas ao mesmo tempo ignorante, já que diversos documentos históricos fazem referência constante ao alargamento e/ou ao posicionamento da Etiópia até à costa ocidental do continente africano e à designação de Etiópia como abrangendo toda a África, à exceção das zonas junto ao Mar Mediterrâneo. Esta situação estava altamente generalizada por toda a Europa da época."(2)
Igreja talhada na rocha. Tigray - Etiópia
O pungente comércio dos antigos reinos foi substituído por uma economia eminentemente agropecuária formada de pequenos produtores rurais para abastecimento local. Agricultura e pecuária além da exploração de sal e potássio são pontos fortes atuais dessa economia local, que também depende da ajuda financeira externa em razão de vários fatores que assolam a população e dificultam suas vidas. Secas, guerras e a permanente insegurança alimentar demandam ajuda humanitária da comunidade internacional, de instituições e países estrangeiros. Some-se a todos esses males o conflito interno que se agrava e joga a população da região de Tigray para fora das suas casas e até mesmo do país. Não se vê nada que remeta a seu passado mítico naquilo que se testemunha a poucos quilômetros da atual fronteira etíope, já no território do Sudão, onde dezenas de milhares de refugiados de Tigray (calcula-se que esse número poderá chegar a mais de 200.000), uma das nove regiões administrativas do país, vivem a duras penas com escassez de alimentos e água, em tendas improvisadas no meio do nada. A pandemia de covid-19 torna a situação ainda mais preocupante para os grupos de ajuda humanitária que, quando conseguem, se acercam dos acampamentos. Não há nessa situação subumana, como pensar em cuidados, prevenção ou tratamento face à pandemia que somada à fome e sede ameaça a sobrevivência dos que conseguiram fugir da guerra e chegar até aqui. Essa tragédia teve seu início na região de Tigray, um estado que fica ao norte do país e tem mais de 5 milhões de habitantes, representando, contudo, apenas uma pequena parcela dos 110 milhões de habitantes de toda a Etiópia. As lideranças locais, combatentes da Frente de Libertação do Povo do Tigray (Tigray People's Liberation Front - TPLF) insistem em não reconhecer o poder imposto a partir da capital desse país localizado na estratégica região do Chifre da África. À frente tem o Primeiro Ministro Abiy Ahmed vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 2019 por seu trabalho de pacificação na região após negociar o fim de uma guerra de décadas com a vizinha Eritreia. Uma paz que durou muito pouco e foi substituída por conflitos internos entre o governo federal e a TPLF, atual combatente que reivindica o mando sobre o território Tigray. Em novembro foi o ápice do conflito, quando Ahmed enviou suas tropas para a região e afirmou ter retomado o controle da capital de Tigray, Mekelle, onde se concentram os milhares de combatentes da TPLF e uma população local de cerca de 500 mil civis. As tensões entre o governo federal da Etiópia em Adis Abeba e a TPLF aumentaram desde que Ahmed se tornou Primeiro Ministro em 2018. A TPLF vinha dominando uma coalizão governante da Etiópia por quase três décadas, ocupando posições centrais na política e nos negócios do país. Nessa guerra que cerca o povo Tigray e provoca um êxodo sem precedentes, há muita acusação dos dois lados; enquanto os líderes do Tigray acusam Ahmed de deixar seu povo à margem do poder no país e desrespeitar todos os tratados anteriores, o Primeiro Ministro afirma que a TPLF é um a organização terrorista que tenta dividir a Etiópia. Apesar das tropas do governo terem enfrentado pouca resistência na batalha por Mekelle, Ahmed não pode cantar vitória antecipadamente, pois há indícios de que os combatentes da TPLF não se rendam tão facilmente e em vez disso se misturem à população local para preparar uma insurgência armada que não só confrontará o Primeiro Ministro mas também poderá transformar a vida do povo Tigray em um verdadeiro inferno.
Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá
Fortaleza, dezembro de 2020.
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* A partir de artigo para o Caderno Opinião do Jornal O Povo. Disponível em: <https://mais.opovo.com.br/jornal/opiniao/2020/12/09/antonio-caubi-ribeiro-tupinamba--tigray--o-ultimo-bastiao-etiope.html>. Acesso em: dezembro de 2020.
1) Compare: The Cultural Heritage of Yeha. Disponível em: < https://whc.unesco.org/en/tentativelists/6477/>. Acesso em dezembro de 2020.
2) Branco, A. M. V. do Reino de Axum ao Reino da Etiópia (Século I d.C. ao Século XVII): A Força e o Isolamento do Cristianismo na África do Norte e Nordeste. Millenium, 48 (jan/jun). pp. 63-74, p.73.
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