Por Gisele Pereira
historiadora e cientista da religião, professora do Ensino Básico; integrante da equipe de coordenação de Católicas pelo Direito de Decidir
A filósofa Judith Butler esteve no Brasil em 2015 para participar do I Seminário Queer, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. De volta ao País, a repercussão de sua vinda não ficou restrita ao meio acadêmico e militante familiarizado com a teoria queer. Antes mesmo de sua chegada, a norte-americana teve a oportunidade de experimentar o que costumamos chamar de tempos sombrios.
Butler é professora dos departamentos de Retórica e de Literatura Comparada e codiretora do Programa de Teoria Crítica da Universidade da Califórnia. A pensadora retornou ao Brasil para participar de dois eventos, com temáticas distintas.
O primeiro foi a conferência “Por uma convivência democrática radical: Israel, Palestina e Coabitação Plural”, realizado na segunda-feira 6 pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o Instituto de Cultura Árabe (Icarabe Brasil) e a Boitempo Editorial, com o apoio de CartaCapital. No evento também foi lançado sua obra “Caminhos divergentes: Judaicidade e crítica do sionismo”.
Assim que foi anunciada a conferência, a filósofa tornou-se alvo da fúria desvairada que paira sobre nós e que tentou transformá-la em persona non grata em nossas terras pretensamente democráticas e “amigáveis”.
Não houve êxito em impedir sua vinda. Em poucos minutos esgotaram-se as inscrições para ouvi-la no teatro Marcos Lindenberg, na Unifesp. A hostilidade manifestadas por grupos conservadores e reacionários nos serve, porém, de alerta e reflexão a respeito dos rumos que querem determinar às nossas vidas. Hostilidade que se tornou lugar comum na censura a exposições de arte, currículo escolar e agora na tentativa de impedir que uma das mais importantes intelectuais de nossa época pudesse sequer pisar em nossas terras e ser ouvida por quem tivesse interesse.
Está aí um componente perigoso ao qual devemos nos atentar. Para estes grupos, não basta boicotar uma exposição ou uma palestra. É preciso proibi-las, censurá-las. Fazem uso intimidatório da censura também para nos amedrontar e matar nossa vontade de viver e de criar. Uma concepção medieval de caça às bruxas, onde livros e indivíduos eram queimados em nome de crença e moral religiosas estabelecidas como lei.
De acordo com as palavras da própria Butler, “a postura de ódio e censura é baseada em medo, medo de mudança, medo de deixar os outros viverem de uma maneira diferente da sua.”
Ao contrário daquilo que supõe a turba conservadora, que sequer se dedicou minimamente a conhecer seu pensamento, Butler reflete não apenas em torno das questões de gênero e da luta feminista. Ética, judaicidade e efeitos psíquicos do poder social são apenas algumas das temáticas sobre as quais ela se debruça.
Para um auditório cheio de espectadores ávidos em absorver suas ideias, Butler falou sobre os conflitos políticos, sociais, religiosos e históricos entre Israel e Palestina. Propôs o estabelecimento de um Estado binacional entre as regiões. No teatro, a pensadora propôs a seguinte reflexão: nenhum grupo deve ser destituído de seus direitos. É preciso haver a possibilidade da coabitação por meio da dissolução do poder colonial. Não pode haver exercício de poder e de violência sobre o sofrimento de um povo.
Para além dos conflitos no Oriente Médio, podemos trazer a mesma reflexão para a realidade de nosso País, cuja história é demarcada pela colonização econômica, política e religiosa, que incorpora o racismo, o patriarcado e a intolerância religiosa em sua prática. Também é Butler quem nos leva a entender o valor desigual das vidas humanas dentro desse sistema. Na lógica capitalista, racista e patriarcal, algumas vidas importam, enquanto outras podem ser descartadas.
O segundo evento do qual Butler participou no Brasil foi o seminário internacional “Os fins da Democracia: Estratégias Populistas, Ceticismo sobre a Democracia e a Busca por Soberania Popular”, organizado pela Universidade de São Paulo (USP) em colaboração com a Universidade da Califórnia, e realizado no Sesc Pompeia entre 7 e 9 de novembro.
O evento no Sesc Pompeia igualmente dialoga com os tempos de democracia frágil vividos atualmente no Brasil, sem perder de vista o cenário latino-americano de constante esgarçamento das lutas populares em detrimento de agendas imperialistas e colonizadoras que se utilizam de uma ampla gama de opressões para pautar os rumos das nações.
Agendas que promovem e se sustentam no medo à igualdade. Não a igualdade liberal, indistinta frente às diferenças de necessidades e condições. Mas a igualdade que reconhece a legitimidade das diferenças. Este medo dos “corpos movendo-se livremente dentro de uma democracia” é também o medo da própria democracia, que, como afirmou Sérgio Buarque de Holanda, “foi sempre um lamentável mal entendido” em nossas terras.
Na pseudodemocracia atual, o ato de “manifestar sua opinião”, ainda que ela fira direitos fundamentais de diversos grupos sociais, é defendido como “direito”. Reivindicar projetos autoritários e excludentes de poder como solução política e moral de alguma maneira parece encaixar-se no que entendem por democracia. Censurar, enaltecer a tortura e a execução sumária de quem ousa pensar e questionar os privilégios também parece caber.
Os gritos de “queimem a bruxa” de manifestantes em frente ao Sesc não são figuras de linguagem. São expressão de quem, dominado pelo medo, não é capaz de conhecer. E sabemos que a ignorância é a mais forte aliada da tirania.
De fato se teme o que se desconhece e é preciso conhecer para superar o medo. Um paradoxo que precisa ser encarado. Como diz Butler: ''Precisamos ser capazes de abrir nossas mentes para entender com quem co-habitamos no mundo, não para subordiná-los a uma forma de viver, mas para aceitar modos de vida no plural, a complexidade de que somos feitos.''
Só deve temer a igualdade quem na relação desigual sustenta-se no privilégio. E estes são muito poucos.
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