POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

O que mudou desde a execução de George Floyd e João Pedro?





João Pedro, 14 anos, morto em 18 de maio de 2020; bala que o matou tinha o mesmo calibre da usada pelos policiais que invadiram a casa em que ele brincava com amigos.

    Parece que foi ontem mas já faz cinco anos que João Pedro Mattos Pinto foi assassinado por forças do Estado. Foi exatamente em 18 de maio de 2020 durante uma operação policial realizada no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Nesse dia não tão distante, o adolescente de 14 anos, era assassinado por forças policiais em mais uma de suas incursões nas favelas. João Pedro brincava com amigos em casa quando foi atingido nas costas por um disparo de fuzil. O imóvel foi crivado com mais de 70 tiros efetuados por agentes da Polícia Federal e da Polícia Civil. Das seis crianças que estavam dentro da residência no momento do ataque João Pedro foi a vítima fatal. O adolescente veio a ser socorrido mas não resistiu aos ferimentos. A versão dos policiais envolvidos na ação era de que haviam sido alvos de disparos de bandidos que teriam se escondido no imóvel. Versão veementemente contestada pela família da vítima, que afirmou terem os agentes já chegado atirando. Os autores da operação foram denunciados pelo Ministério Público por homicídio duplamente qualificado e fraude processual e, conforme o MP, de terem plantado explosivos e uma pistola no imóvel para justificar o ataque. A repercussão do caso atravessou as fronteiras nacionais e chegou a ser denunciado à ONU e à OEA. Não foi o suficiente para reconhecer como um ato criminoso o que fizeram os policiais; apesar dessa repercussão internacional, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro absolveu sumariamente os três policiais envolvidos na operação, alegando "falta de provas”. 

    Naquela altura viveu-se logo a seguir o drama da execução de George Floyd nos Estados Unidos. O homem negro de 40 anos foi morto por asfixia depois de ter o pescoço pressionado pelo joelho de um policial durante uma abordagem em Minneapolis, Minnesota, em 25 de maio de 2020. Derek Chauvin, o policial acusado de realizar a execução, manteve o joelho no pescoço da vítima por cerca de nove minutos e trinta segundos, o que resultou na morte de Floyd.  Enquanto isso, no Brasil, João Pedro, menino negro de 14 anos parecia ter sido mais uma vítima de racismo de Estado. George não havia sido acusado de qualquer crime, mas era negro. João Pedro brincava em casa, dentro de sua casa; mas era pobre, negro e morava em uma favela, mais exatamente, no Complexo do Salgueiro no município fluminense de São Gonçalo, quando foi atingido no peito, por um tiro de arma de fogo. A repercussão internacional do caso Floyd reforça também, no Brasil, a luta  por justiça para casos como o de João Pedro. Em Minneapolis, as ruas foram ocupadas, prédios incendiados e milhares de cidadãos, não somente negros, reivindicavam justiça, exigindo a prisão dos culpados pela tragédia que resultou na morte de George Floyd. 



Foto mostra um policial branco ajoelhado no pescoço de Floyd.


A frase de George suplicando para que não o matassem I can’t breathe (Eu não consigo respirar) foi repetida nos protestos de rua em diferentes cidades. Em função do crescimento dos protestos,  Derek Chauvin, o policial que sufocou sua vítima até a morte foi detido, mas seus três colegas que participaram com ele da ação desastrosa continuaram soltos. As manifestações nesses casos vinham mostrando outras cores. A multidão era composta por tons diferentes e, em muitos casos, formada por maioria branca, o que quase não se via em protestos da década de 1960. “É disso que se trata nessas manifestações de protesto pela morte de George Floyd, em Minneapolis (EUA). Gente de toda cor de pele está farta de tolerar a leniência das autoridades [...] em relação a policiais que achincalham, torturam e matam pobres, imigrantes ilegais e negros”.(1) “[...] Leis e decisões judiciais que vão de encontro a interesses dominantes em uma determinada sociedade só ‘pegam’ após muita luta, muita obstinação e coragem daqueles que, por elas, podem ter suas situações de exploração ou opressão pelo menos mitigadas”.(2)




    Na trilha das crescentes manifestações antirracismo nos Estados Unidos, começaram a ocorrer noutros países, a exemplo do Brasil, manifestações  organizadas em protesto pelos jovens negros mortos por policiais. No dia 31 de maio de 2020, a sede do governo do estado do Rio de Janeiro, o Palácio Guanabara, foi palco de uma delas. Uma semana antes dos protestos do dia 31, aconteciam manifestações de dimensão nacional nas redes sociais. Nesses atos virtuais organizados pela Coalizão Negra Por Direitos, participaram 800 entidades. 



Neilson Costa Pinto, pai de João Pedro, fez a abertura dos atos, destacando a importância da luta por justiça: "É um momento que eu não desejo para ninguém, perder um filho é como perder a própria vida. O Estado é falido e sem responsabilidade nenhuma. Fazer o que fizeram com o meu filho e com outros filhos também, entrar no seu próprio lar e tirar a vida de um menino de 14 anos significa que o Estado é falido. E vamos lutar por justiça, é isso que esperamos, que a justiça venha a ser feita em nosso país, destacou".(3) Esse é o resultado de uma necropolítica instituída pelo então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Apesar de ter se tornado um circunstancial desafeto político do então presidente, continuou sendo seu par na macabra escalada do fascismo no Brasil. Aqueles acontecimentos nas favelas do Rio mostravam que a pandemia do covid-19 não tinha freado o aumento da violência institucional e o modus operandi racista parecia ganhar cada vez mais espaço no  Rio de Janeiro e no país. Principalmente em estados como esses que adotaram a linha de um governo central militarista e antidemocrático com estratégias e arreganhos ditatoriais era onde não se podia esperar uma polícia que visasse, como deveria, à proteção cidadã. Paralelos entre países tão diferentes podiam ser feitos porque guardavam  semelhanças em sua necropolítica e no abissal autoritarismo nas figuras estultas dos seus líderes, evidenciados em tristes notícias: "Um estudante de 14 anos foi morto durante uma operação da Polícia Federal (PF) e da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, na tarde da última segunda-feira (18). João Pedro Mattos Pinto foi atingido na barriga enquanto brincava no quintal de casa. O adolescente foi levado em um helicóptero da Polícia Civil após ser baleado. Até a manhã desta terça-feira (19), a família estava sem informações sobre o jovem. Segundo o Corpo de Bombeiros, o corpo da vítima foi deixado na última segunda (18), às 15h, no Grupamento de Operações Aéreas (GOA), na zona sul do Rio. Na manhã desta terça-feira (19), familiares do adolescente estiveram no Instituto Médico Legal (IML) de São Gonçalo e reconheceram seu corpo. João Pedro foi descrito por amigos e familiares como um menino calmo e que frequentava a igreja".(4)




PM joga spray no rosto de morador de Heliópolis, maior favela de São Paulo — Foto: Reprodução/Redes sociais


Aos mais pobres, restava então morrer de fome ou de coronavírus, como afirmou o pesquisador Dennis de Oliveira.(5) Na sequência de um pensamento pretensiosamente racional de “seleção natural”, justifica-se, segundo o pesquisador, um processo genocida que se quer instalar no país [nesses países]; uma necropolítica de soberanistas querendo decidir os que devem viver ou morrer: “Mbembe descreve essa suposta soberania como a busca constante de um exercício de poder que supera qualquer limite racional e científico”. A necropolítica fluminense foi exportada para São Paulo por meio do atual governo de Tarcísio de Freitas. Já há vários protestos organizados contra a política de Segurança Pública do governo paulista, comanda por Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Guilherme Derrite, secretário de Segurança Pública do estado. Atos que ocorrem após uma sequência de execuções cometidas por policiais militares em São Paulo. Governos de extrema direita e de viés fascista, nos quais também se enquadra o governo estadunidense de Donald Trump, aprofundam suas práticas racistas. Apesar de não ter qualquer constatação, o presidente Trump liberou asilo para membros da comunidade branca da África do Sul sob alegação de serem vítimas de “discriminação racial”. Enquanto isso a administração Trump suspende todas as outras admissões de refugiados, incluindo aquelas pessoas provenientes de zonas de guerra. Para um pequeno alento, não há apenas más notícias; ao projeto perigoso de necropolítica e genocídio que é visto nas periferias brasileiras, Oliveira (2020) identifica, felizmente, uma contraofensiva de  um movimento civil para contribuir com o rompimento da nefasta ideia de Estado mínimo e incentivar a solidariedade em face a problemas da vida nas favelas e na periferia das grandes cidades: “Então, eu vejo que hoje há uma questão objetiva, em que existe, de fato, uma situação perigosa de um projeto de necropolítica e genocídio sem precedentes nas periferias brasileiras..., mas, por outro lado, temos também uma ação organizada e reativa da população das periferias e suas organizações contra esses efeitos”.(6) Nas mais de mil favelas do Rio de Janeiro se sobrevive sem direito à cidadania, educação, saúde, moradia, cultura… Favelas e periferias continuam sofrendo com a criminalização da pobreza, a negligência do Estado, violações de direitos e, para piorar essa situação, com as operações policiais que frequentemente terminam em mortes de moradores, como ocorreu com João Pedro. Ninguém está livre desse sistema que condena alguns “mal escolhidos” ao racismo estrutural. Sistema que beneficia alguns e prejudica outros, nessa lógica perversa. Uma coisa é certa: só há uma forma de combater o racismo, que é tendo consciência e agindo de forma antirracista, isso significa se comprometer em compreender e agir diretamente contra o sistema que o promove e o sustenta.

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(1) STARLING, S. A nigger que me mostrou a neve. Os Divergentes, 2020. Disponível em: <https://osdivergentes.com.br/outras-palavras/a-nigger-que-me-mostrou-a-neve/>. Acesso em: jun. 2020.

(2) idem.

(3) DEISTER, J. Em memória de João Pedro: 800 organizações denunciam violência do Estado nas favelas. Rio de Janeiro: Brasil de Fato, 27 maio 2020. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/05/27/em-memoria-de-joao-pedro-800-organizacoes-denunciam-violencia-do-estado-nas-favelas>. Acesso em: mai. 2020.

(4) MIRANDA, E. Procura-se João Pedro: jovem desaparecido em ação policial é encontrado morto no Rio. Rio de Janeiro: Brasil de Fato, 19 de maio de 2020. Disponível em: <https://www.brasildefatorj.com.br/2020/05/19/procura-se-joao-pedro-jovem-desaparecido-em-acao-policial-no-rio-e-encontrado-morto>. Acesso em: 10 mai. 2020.

(5) Coordenador do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação da USP.

(6) PEREIRA, M. R. “Opção aos mais pobres é morrer de fome ou coronavírus”, diz pesquisador. Disponível em: <https://ponte.org/pandemia-escancara-necropolitica-e-violencia-estrutural-no-brasil-diz-pesquisador/>. Acesso em: jun. 2020.

O conflito na Caxemira e a guerra híbrida contra o BRICS*





Região da Caxemira


O desfecho da Partição se deu à meia-noite, entre 14 e 15 de agosto de 1947, quando os britânicos dividiram o subcontinente indiano em duas nações soberanas, a Índia e o Paquistão. Na época, o Paquistão ficou formado pelo Paquistão Ocidental e Oriental em dois extremos do território que antes pertencia ao Estado indiano. A tensão continua elevada entre os dois países mesmo já tendo se passado quase 78 anos da divisão. Logo após esses acontecimentos, Índia e Paquistão entraram em guerra pelas províncias de Jammu e Caxemira e, desde então, o conflito escalou para confrontos em múltiplas frentes, com implicações mundiais. Trata-se de um grande conflito entre duas nações com  poderio atômico.  




Subcontinente indiano


A Índia acredita ser a autoridade sobre a região disputada, a Caxemira, assunto interno, enquanto o Paquistão quer internacionalizar a questão. A recente escalada entre os dois países na região da Caxemira leva-nos a crer em mais uma intervenção do “império” para fins políticos. Não pode ser descartada uma estratégia para desestabilizar o denominado “Sul Global”. “As cruas táticas refletem o clássico ‘dividir para conquistar’. Duplo golpe: um novo uso da Índia como arma e a desestabilização de uma frente-chave da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI) da China: o Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC). Um trunfo para o hegêmona: dividir o BRICS por dentro”(1) com mais uma guerra híbrida travada pelas superpotências ocidentais. 




Protestos de hindus após o atentado


Um BRICS forte significa um confronto a uma ordem unipolar orquestrada pelos Estados Unidos da América e seus colaboradores. Mais uma vez, apenas a Rússia, que transita entre as duas nações, amigavelmente, seria capaz de impedir uma confrontação catastrófica das duas potências atômicas. “A terminologia russa é essencial: não apenas foi feito um apelo para que ambas as partes ‘entabulem um diálogo construtivo’. Moscou enfatizou: ‘Estamos prontos para enfrentar juntos a ameaça terrorista global’. A palavra-chave é ‘global’. Entretanto, Délhi e Islamabad ainda não parecem estar captando a mensagem”.(2) O jornalista e analista geopolítico Pepe Escobar disse ao Jornal Brasil 247 que a disputa se passa em um ninho de vespas, extremamente complicado, herança da partição colonial de 1947 desenhada, arbitrariamente, pelo império britânico. O jornalista, com razão, mostra suas suspeitas sobre o ataque ao ônibus de turistas hindus e muçulmanos no lado indiano da Caxemira atribuído a uma facção ligada ao grupo Lashkar-e-Taiba: o ataque ocorre em um momento curioso e bastante suspeito. Não seria essa uma guerra contra o BRICS? Uma confrontação entre os dois países conflitantes resultaria em um prejuízo das relações entre a Índia e a China, dois importantes membros do Bloco. Escobar vê nessas operações o dedo pobre da CIA. Afinal, como afirma o jornalista, é isso o que a CIA faz de melhor: “atentados de falsa bandeira, operações sujas financiadas por fundos ilegais, como nos tempos do contrabando de ópio no Afeganistão” e, acrescentaria, no período pós Partição, quando investiu na criação de grupos religiosos extremistas para conseguir dominar a região. Apesar da Rússia já ter começado a agir em busca de uma saída diplomática, levando os dois rivais a um diálogo para encerrar os ataques, sua eficácia é desejada mas incerta. Sabe-se do orgulho nacionalista e do apego fundamentalista de ambos, Índia e Paquistão, que têm de um lado o hinduísmo e do outro o islamismo, respectivamente, o que dificulta o trato, com racionalidade, das questões binacionais. A via diplomática costuma ser a melhor alternativa e o único recurso para evitar um mal maior na região. No entanto, é sempre com apelo bélico, que se dá qualquer negociação que implique a disputa pela Caxemira, isso, muito devido à postura extremista dos dois lados: na Índia um Modi racista e anti-muçulmano e no Paquistão, uma elite que preferiu construir um estado fundamentalista desde seu despertar e sempre se submeter ao Império. Os EUA, crê-se, levaram à destituição do primeiro-ministro do Paquistão, Imran Khan, em abril de 2022, que foi condenado a 10 anos de prisão sob falsas acusações de corrupção e espionagem. O que se viu foi uma ameaça direta dos EUA sobre o exército paquistanês, que por sua vez exerceu seu controle sobre o parlamento para cumprir o ultimato ianque. EUA e também a União Europeia queriam obrigar líderes estrangeiros, incluindo Khan, a se alinharem contra Putin e apoiarem as sanções ocidentais contra a Rússia, mas Khan resistiu.(3) Como um dos membros fundadores do BRICS, o Brasil não poderia deixar de se manifestar em face dos últimos acontecimentos. Sempre reafirmando seu firme compromisso com a promoção da paz, da estabilidade e do diálogo como único meio de resolução de controvérsias, o governo brasileiro se posicionou, oficialmente, encorajando "as partes a prosseguirem com os esforços diplomáticos com vistas à paz duradoura e ao bem-estar de suas populações, da região do Sul da Ásia e do mundo”.(4) O presidente Lula manifestou, por meio de um telefonema com o Primeiro Ministro indiano, a solidariedade do Brasil às vítimas do atentado terrorista ocorrido em 22 de abril. Lula reiterou o convite para que Modi participe da Cúpula do BRICS, no Rio de Janeiro, entre 6 e 7 de junho, bem como para que, durante o período, faça uma visita de Estado ao Brasil. Posteriormente, o Itamaraty saudou o acordo de cessar-fogo pactuado entre a Índia e o Paquistão; trégua que foi anunciada em 10 de maio..



Bandeiras do Paquistão e da Índia (Fragmentos)


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* Publicado originalmente no "Diálogos do Sul Global". https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/caxemira-uma-peca-do-tabuleiro-imperialista-para-sabotar-o-sul-global/ 

(1) Escobar, P. Dividir para conquistar”: tensão Índia x Paquistão mira Brics e Nova Rota da Seda. Disponível em: <https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/dividir-para-conquistar-tensao-india-x-paquistao-mira-brics-e-nova-rota-da-seda/>. Acesso em: mai 2025.

(2) idem.

(3) Compare: Sachs, J. D. Paquistão: assim os EUA derrubaram Imran Khan. Disponível em: <https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/paquistao-assim-os-eua-derrubaram-imran-khan/>. Acesso em: mai 2025.

(4) Santos, D. Governo Lula se manifesta sobre cessar-fogo entre Paquistão e Índia. Disponível em:

<https://www.metropoles.com/mundo/governo-lula-se-manifesta-sobre-cessar-fogo-entre-paquistao-e-india>. Acesso em: mai 2025.

sábado, 10 de maio de 2025

A África desperta!



Ibrahim Traoré: presidente de Burkina Faso




Nós somos os povos esquecidos do mundo

Ibrahim Traoré


No dia 25 de maio se comemora a Libertação Africana, data que marca a criação da Organização da Unidade Africana, hoje conhecida por União Africana. Em 1963, ano em que foi fundada, os países africanos passavam por um processo de descolonização, lutavam por sua independência em meio a turbulências e incertezas políticas na busca da superação do imperialismo e do (neo) colonialismo. O sonho de uma terra livre e soberana movia diferentes povos em um mesmo continente. Depois desses 62 anos da criação dessa organização que redesenhou as relações internacionais no continente africano, seus membros ainda não viram ser alcançada a autonomia tão almejada. A luta contra o subdesenvolvimento e pela libertação dos grilhões que seus (ex) senhores colonizadores teimam em manter no que se conhece por neocolonialismo continua:


Mas não nos enganemos: esses problemas podem ser históricos e duradouros, porém de forma alguma são problemas que possamos considerar como “naturais”, pois sempre que seguimos o rastro do endividamento, subdesenvolvimento ou terrorismo, chegamos nos mesmos agentes ocidentais e aliados, responsáveis pela colonização, escravidão e sistemas de apartheid/segregação racial que assombraram África e sua diáspora nos últimos 4 séculos...  Hoje, talvez o maior símbolo da continuidade da luta dos povos africanos por um novo presente e futuro esteja em Burkina Faso, Mali e Níger, recentemente unidos na Aliança dos Estados do Sahel (AES na sigla em francês). O processo atual se inicia em 2020, quando uma junta militar toma o poder do Mali, removendo o então presidente alinhado com os interesses franceses e ocidentais. Burkina Faso e Níger seguiram o exemplo do vizinho e desde então os 3 países tem assumido a linha de frente de uma luta ferrenha contra o Ocidente organizado.(1)


Ibrahim Traoré assumiu a presidência de Burkina Faso em outubro de 2022 e, desde então, vem sendo demonizado por governos que ao longo de décadas desenvolveram suas políticas predatórias que vêem a África como uma fonte inesgotável de riquezas apenas a ser explorada à revelia da vontade de seu povo. Isso pode ser atribuído à França, seu eterno algoz e a outros neocolonizadores como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha.

Há um grito que ecoa na região do Sahel que chegou à Europa: La France degage!” (Fora França!”), que ecoa há muito tempo na África Ocidental. Esse grito é contra o nefasto e contínuo legado do colonialismo francês na região. Essa mobilização já via seus resultados no Senegal, com movimentos de base em 2018 e uma promessa de campanha do então recém-eleito presidente Bassirou Diomaye Faye, de liberar o país do sistema monetário neocolonial do franco CFA, culminando em golpes militares apoiados pela população no Mali, Burkina Faso e Níger e à consequente expulsão das forças militares francesas desses países entre 2021 e 2023.


Bandeira: Burkina Faso

Em Burkina Faso, Ibrahim Traoré buscou novas alianças e rompeu com antigas parcerias com a França, Inglaterra…, que só souberam explorar e subjugar o país como o fizeram também nas demais ex-colônias. Enquanto líderes africanos subservientes governaram seus países ao longo de décadas, vendo suas riquezas, como o ouro de Burkina Faso, sendo extraídas e enviadas ao exterior, em um movimento de sequestro e privação dos cidadãos africanos, Traoré busca a autoafirmação do seu povo por meio de um caminho de desenvolvimento e independência e autossuficiência em vários setores de suas vidas. Completamente ignorados até então pelos (ex)colonizadores e seus governos fantoches, populações inteiras se unem a novos líderes que vêem um futuro a ser construído sem a presença neocolonial.

Recentemente, em visita à Rússia, falou para seu anfitrião Vladimir Putin: Burkina Faso, assim como outras nações africanas, busca, em meio às turbulências, reafirmar seu direito ao desenvolvimento independente e ao protagonismo próprio em um novo mundo que se desenha. A forma mais bárbara e violenta de neocolonialismo e de imperialismo devem ser vencidas com a força e a participação popular.

Taoré sabe que não será fácil lutar contra aqueles que se acostumaram a ver seu país como submisso e controlado. Novas alianças com países do sul global, com o Brics e com a Rússia, a formação de um Bloco das nações da região do Sahel são algumas das alternativas para o combate a relações de submissão e dependência aos antigos exploradores. Sahel(2) é a palavra árabe que significa "costa" ou “fronteira", corresponde à faixa de transição no continente africano, que separa o deserto do Saara e a região das savanas, indo do oceano Atlântico a oeste até o Mar Vermelho a leste. Trata-se de uma região semiárida, que se estende da Mauritânia ao Sudão, compreendendo partes do Senegal, Mali, Burkina Faso, Argélia, Níger, Nigéria, Chade, Camarões, Sudão do Sul, Etiópia e Eritreia. No plano internacional, principalmente os ex-colonizadores franceses davam suporte e elogiavam Déby (presidente do Chad) por sua lealdade inabalável em combate a grupos como o Boko Haram, a Al Qaeda e o Estado Islâmico naquela região. Ao mesmo tempo que recebia esse apoio à ativa participação em operações de contraterrorismo, o Ocidente ignorava a repressão e violação de direitos humanos, a crescente corrupção e desmandos no país. Hoje, quando Traoré busca o apoio da população para o combate aos terroristas na região, o governo francês chama seus combatentes de milícia tentando desclassificar qualquer ação sua que não esteja subalterna ao poderio militar estrangeiro (francês). “Burkina Faso anunciou, nesta segunda-feira (28), o desmantelamento de um plano de desestabilização interna, em mais um episódio que revela as complexas dinâmicas de poder que atravessam a região do Sahel. A informação foi divulgada por meio de um relatório oficial dos serviços de inteligência do país, segundo o qual setores internos, em articulação com interesses estrangeiros, estariam preparando ações para desestabilizar o governo de transição, liderado por Ibrahim Traoré”.(3) A forma mais bárbara e violenta de neocolonialismo e de imperialismo está, portanto, sendo enfrentada com êxito. Traoré busca compartilhar com seus concidadãos o desejo de libertar-se do passado nefasto do colonialismo e afirma, parafrasendo Thomas Isidore Noël Sankara, militar, revolucionário marxista, pan-africanista e líder político de Burquina Fasso, que “o escravo que não é capaz de realizar sua própria revolta não merece pena de seu destino.” O Pan africanismo de verdade está de volta na forma de uma luta anticolonial. Se Donald Trump está ameaçando Traoré, sabemos que há por trás de suas ameaças o claro interesse em continuar explorando os recursos do país, empobrecendo sua população e mantendo o controle sobre seus governos marionetes. Construir uma refinaria de ouro tirando-a das mãos de estrangeiros aproveitadores, buscar independência energética com a ajuda de novos parceiros, evitar a exportação de commodities agrícolas para utiliza-las em benefício da população, desenvolver a indústria farmacêutica e o transporte ferroviário, assistir a população na saúde e na educação, além de buscar a união dos africanos para formar um grande bloco de países emancipados no Sahel, tudo isso mobilizando a população e afastando-se dos neocolonizadores, são fatores que incomodam os poderosos; os mesmos que, historicamente, vêem a África apenas como um continente a ser explorado e saqueado.

Localização de Burkina Faso na região do Sahel (África).

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(1) Assis, L. Do Cabo ao Cairo, de São Paulo a Madagascar, por uma África livre. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2025/05/25/do-cabo-ao-cairo-de-sao-paulo-a-madagascar-por-uma-africa-livre/>. Acesso em: mai 2025.

(2)  "Sahel, Sāḥil árabe, região semi-árida da África ocidental e centro-norte que se estende do Senegal ao leste até o Sudão. Forma uma zona de transição entre o árido Saara (deserto) ao norte e o cinturão de savanas úmidas ao sul. O Sahel se estende do Oceano Atlântico ao leste através do norte do Senegal, sul da Mauritânia, a grande curva do rio Níger no Mali, Burkina Faso (antigo Alto Volta), sul do Níger, nordeste da Nigéria, centro-sul do Chade e no Sudão." Disponível em: <https://www.britannica.com/place/Sahel>. Acesso em: nov. 2020.

(3) Burkina Faso desmantela plano de desestabilização e expõe pressões externas na África Ocidental. Disponível em: <https://www.brasil247.com/mundo/burkina-faso-desmantela-plano-de-desestabilizacao-e-expoe-pressoes-externas-na-africa-ocidental>. Acesso em: mai, 2025.






sexta-feira, 4 de abril de 2025

Homenagem ao Professor Omar Aktouf (in memoriam)




nascimento:1944 - morte: 2 de abril de 2025


    Omar Aktouf, intelectual argelino, nasceu em 1944. Professor titular da HEC Montréal, membro fundador do centro de humanismo, gestão e globalização e membro do conselho científico da ATTAC Québec (Action citoyenne pour la justice fiscale, sociale et écologique). Morreu em 2 de abril de 2025 em Montreal, Quebec.

    Conheci o professor Aktouf por meio da nossa colega Raquel Libório, que havia sido sua aluna durante uma temporada acadêmica na Universidade de Quebec no Canadá. Ele aceitou de pronto nosso convite para participar de atividades acadêmicas em Fortaleza, ocasião em que, na Universidade Federal do Ceará e em outras instituições locais, ministrou várias palestras na área da Psicologia Organizacional e Administração. 

    Naquela altura publicou um texto autoral na Revista de Psicologia da UFC intitulado O “CONTEXTO ECONÔMICO E AMBIENTAL CONTEMPORÂNEO E AS NOVAS PERSPECTIVAS EM GESTÃO” (Revista de Psicologia, Fortaleza, v. 6 n. 2, p. 118-130, jul./dez. 2015) no qual apresenta (em suas próprias palavras): “o resultado das minhas reflexões atuais sobre o panorama da economia mundial e, principalmente do que muito se fala acerca da economia, da administração, da psicologia organizacional e temas correlatos”. 

    Em 2010, logo após sua participação nos diversos eventos acadêmicos a nosso convite em Fortaleza, permitiu-nos registrar sua passagem com uma resenha do seu livro “Pós-globalização, administração e racionalidade econômica. A síndrome do avestruz". Livro traduzido para o português por Maria Helena Trylinski, publicado em São Paulo pela Atlas em 2004.” Demos ao texto da resenha o título: “ADMINISTRAÇÃO, PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL E O PANORAMA ECONÔMICO E SOCIAL NA ERA DA PÓS-GLOBALIZAÇÃO” (Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 42, n. 1, jan/jun, 2011). O livro resenhado foi fundamental para a nossa compreensão do panorama da economia mundial e, principalmente, dos temas atuais na área da economia, administração e  psicologia organizacional como abordados e tratados pelo professor Omar Aktouf. O livro tinha sido o último que havia publicado no Brasil e representava uma reinauguração da abordagem de temas econômicos e sociais contundentes para a administração e  psicologia, em especial para a psicologia organizacional e do trabalho. Os sete capítulos que compõem o livro dão uma idéia da preocupação emancipatória e humanista de sua trajetória acadêmica, ainda que em disciplinas tradicionalmente comprometidas com a exploração e pouco afeitas a temas relacionados ao respeito e aos direitos humanos.(1) 





    Nossa amizade, bem como, nossas trocas acadêmicas continuaram ao longo dos anos. Em 2022, tive o privilégio de contar com sua participação em meu livro “Sobre Pessoas e Lugares Distantes” lançado naquele ano. Atendendo, sem titubear a um pedido meu, escreveu um prefácio ao livro bem a seu estilo. É uma das grandes e boas lembranças de seu compromisso e amizade que nos deixou.

    Sua partida é uma perda imensurável; sua ausência ecoará no silêncio e na saudade. É também uma grande perda para a Psicologia Organizacional e para a vida acadêmica.

    Certamente será sempre lembrado pelo seu bom combate por justiça, por sua obra de peso, sua ativa participação na academia em diversos cantos do mundo e, principalmente, por sua colaboração a partir de sua cátedra comprometida e engajada. Para mim foi ele, ao lado de Noam Chomsky, uma das grandes vozes em prol da emancipação humana. Fica o nosso reconhecimento por sua grande colaboração e presença marcante em nossas vidas.