Foi em grande velocidade que se deram as negociações entre o governo do Nepal e os maoístas responsáveis pelos violentos protestos contra o regime monárquico no início de 2006. Com poucos dias após a escalada dos conflitos foi selado um acordo entre os dois grupos divergentes para superar mais de dez anos de guerra e por em cheque uma monarquia que já tinha mais de dois séculos de existência. Tais negociações significaram a inauguração de um novo sistema político no país sul-asiático com a suspensão da monarquia. Ao contrário do que sucedeu com outros sistemas monárquicos, nos quais tradição e democracia conquistaram uma convivência aceitável, no Nepal, a “realeza” se mostrou incompetente para lidar com as necessidades e anseios de seus súditos. Em consequência dessa impossibilidade, a nação nepalesa organizou-se em grupos de guerrilha para combater o absolutismo de um rei ostracista e indiferente ao sofrimento de uma população extremamente empobrecida. Encravado entre o Tibete e a Índia, o então reino do Nepal, era mais conhecido pela exuberância de suas montanhas e o exotismo de sua cultura, além da grande alegria e tratamento comedido dispensado a seus visitantes. Único país oficialmente hindu no planeta, conta ainda com uma significativa presença de fiéis budistas, não estando, contudo, na divisão religiosa as fontes de seus maiores conflitos. Pena que essa paz em torno da convivência religiosa não se estenda aos demais setores de sua vida social e política, como provam os últimos acontecimentos locais. A animosidade no ceio da população que resultou em revolta popular ainda em seu período monárquico recrudesceu quando no ano de 2001, em um grande massacre, membros da família real apareceram mortos de uma forma misteriosa. A substituição do rei morto pelo irmão sobrevivente não bastou para aplacar o ceticismo da população. Desde então o país experimentou uma troca constante de representantes políticos e testemunhou um grau crescente de rejeição popular ao novo mandatário real. O governo do então Primeiro Ministro, G. P. Koirala, caiu em consequência das pressões dos rebeldes maoístas, levando o rei a declarar o estado de emergência no país, na tentativa de acabar com a guerrilha. Essa atitude real somada a uma instabilidade econômica e política incitaram a revolta popular, que se espalhou rapidamente pelo país e levou à formação e fortalecimento dos núcleos de guerrilha. A população revoltada se acercou do palácio real na capital do país, Catmandu, em sinal claro de confronto político e do desejo de deposição do rei para que a monarquia fosse substituída por um regime democrático. A guerra civil já ceifava mais de 10 mil vidas, registravam-se abusos de direitos humanos e, com tudo isso, quase se levou o país à ruína econômica, gerando uma pobreza extrema, considerada recorde no mundo. A arbitragem das Nações Unidas (ONU) de pífia durante o conflito, passou a se impor no acordo que exigiu da guerrilha o abandono das armas e a desmobilização de seus homens para fazer parte de um Parlamento e de um governo interino, até que fossem realizadas novas eleições em meados de junho de 2007. Esperava-se que, dessa forma, se tornassem premonitórias as palavras do ministro Koirala sobre a nova era na qual entrava o país, quando a violência que dominava o seu cotidiano deveria desaparecer e dar lugar a uma política de conciliação. Em 2008, o Nepal tornou-se uma república, pondo fim a uma monarquia que durou 239 anos. No entanto, o país nunca escapou da crise agravada por fatores alheios à política como terremotos e outros desastres naturais. Como resultado, o Nepal transformou-se em uma nação de migrantes, de trabalhadores expatriados, que passaram a contribuir, com suas remessas do exterior, para a sobrevivência de suas famílias que ficavam para trás. O desejo de migrar manteve-se presente nos nepaleses e isso eu sentia na maioria daqueles com os quais travava alguma conversa, em situações informais ou institucionais, durante minha estada no país, seja em sua capital, Catmandu, ou em outras cidades, como Pokhara, Butwal e Lumbini.
O governo atual é apenas parte de uma sequência de governos que tentaram, sem sucesso, trazer ordem ao país republicano resultante de uma monarquia expoliadora e infeliz. São os mesmos três principais partidos do país que se sucedem no poder, frequentemente em coalizões alternadas. Os maoístas, em particular, que travaram uma guerra civil armada por dez anos, até 2006, guerra essa que ceifou mais de 16.000 vidas, foi perdendo apoio ao longo do tempo até chegar ao ponto de provocar a catástrofe que hoje se testemunha, protagonizada por jovens da nomeada Geração Z (os nativos digitais). Além de Kathmandu e Jhapa, esses jovens encabeçam protestos em outras cidades como Pokhara, Butwal, Chitwan, Nepalgunj e Biratnagar, expressando seu descontentamento com a corrupção endêmica que destrói suas esperanças. Com o banimento do acesso da população às redes sociais deu-se o estopim da revolta. Acusados de trair muitos de seus ideais, principalmente pelas incessantes acusações de corrupção, esses políticos roubam o futuro dos jovens e os prendem a um presente de infelicidade e pessimismo. A única saída vislumbrada seria o abandono de sua pátria em busca de trabalho e de realização pessoal em outros países.
Uma instabilidade política, econômica e social domina esse país sul-asiático que não é de todo um país desimportante, como nos querem fazer crer. Estrategicamente posicionado entre duas potências emergentes, o Nepal tem consciência do seu papel geopolítico estratégico, distinto e fundamental no cenário sul-asiático. Embora se distancie em termos de tamanho e influência global dos seus vizinhos gigantes, a importância geopolítica do Nepal, particularmente no contexto dos interesses estratégicos estadunidenses é inegável. À despeito dos atuais discursos do governo autoritário de Donald Trump, o mundo se torna cada vez mais multipolar com dinâmicas de poder em constante mudança. Cabe, nesse novo cenário, compreender o que se passa com Estados menores como o Nepal no contexto de um complicado quebra-cabeça geopolítico global e do multilateralismo.(1) Além dessas peculiaridades em sua geopolítica, trata-se de um país único, considerando sua cultura e multietnicidade. Sua população se aproxima dos 30 milhões de habitantes, que convivem em admirável harmonia apesar de pertencerem a diferentes grupos religiosos: 80% professam o hinduismo e 10% o budismo. Nesse lindo país do Himalaia, que abriga o Monte Evereste, paisagens montanhosas e cidade-lago de tirar o fôlego, também está a cidade de Lumbini, considerada o berço do nascimento de Buda, o príncipe Sidarta Gautama..
Uma terra com uma gente cheia de “amor para dar”, a qual tive a oportunidade de visitar em 2023, me permitiu mergulhar em um mar de cordialidade e respeito. Essa gente cortez, amável e pacífica que, em seu "código de ética" tem o princípio de respeito incondicional ao visitante, parece ter chegado ao limite da paciência, partindo para o contra-ataque, transformando em protesto a revolta contida. Até agora mais de vinte pessoas morreram e outra centena ficou ferida durante os grande protestos nacionais desde segunda feita, 8 de setembro de 2025. A intervenção policial com o uso de gás lacrimogêneo e canhões de água contra a população revoltada depois de ter adentrado uma área restrita da cidade ou mesmo quando já se aproximava do parlamento, não foi suficiente para demove-la de seus atos. Os protestos e as mortes mergulharam o Nepal em uma crise política que forçou o Ministro do Interior, Ramesh Lekhak, a renunciar ao cargo ainda na noite de segunda-feira, alegando “responsabilidade moral”; a seguir, na terça-feira, foi a vez do Primeiro-Ministro KP Sharma Oli também renunciar. Apesar de pouco crer, inspiro-me nos próprios nepaleses e em suas crenças para evocar os ensinamentos de Buda e do budismo em busca da equanimidade e da paz de espírito em tal situação extrema. E assim, que a ele se juntem Shiva, deus da preservação e Vishnu, responsável pelo equilíbrio do Universo, além do seu criador, Brahma, para fazer com que o amado povo nepalês encontre, no meio desse caos, uma saída rumo à paz e ao progresso, como bem merecem.
No momento atual e “terreno” temos apenas tropas armadas guardando as principais áreas de Catmandu, que sinalizam o retorno de certa normalidade à cidade há pouco mergulhada no caos. Há uma ordem para que os moradores permaneçam em suas casas enquanto policiais revistam veículos e pessoas. Apesar de raramente serem convocados a sair dos quartéis, desta feita os militares o fizeram, pois a polícia, sozinha, não conseguiu controlar a escalada da violência nas ruas das cidades.
Antonio C. R. Tupinambá
Fortaleza, 10 de setembro de 2025.