Figura disponível em https://www.bbc.com/news/world-africa-65338247
Um exército genocida está violentando e massacrando milhares de pessoas. Há evidências da existência de crianças-soldado, lutando e morrendo, enquanto valas comuns acumulam corpos no deserto. Agora a capital da região de Darfur está sob ataque, com quase um milhão de refugiados sem poder deixar a cidade. Os especialistas se referem ao local como um matadouro. Essas atrocidades indescritíveis ocorrem em meio a um blecaute quase total de informações. O Sudão derrubou a Internet, prendeu repórteres locais e impede a entrada de jornalistas estrangeiros — o que significa que há muito pouca cobertura da mídia ou pressão sobre os governos. (1)
O Sudão está localizado no nordeste da África; um país que teve sua região sul emancipada e alçada ao status de nação soberana com reconhecimento pela ONU. O remanescente do Sudão, ao norte, “tem sido palco de uma crise prolongada que mistura tensões étnicas, religiosas, políticas e econômicas”.(2) No Sudão, seja na época em que era um só país ou depois da divisão (resultando nos atuais Sudão e Sudão do Sul) a história é marcada por guerras civis, instabilidade política, catástrofes humanitárias e disputas internas (com interferências externas) de grupos atrelados ao poder oficial e milícias paralelas. Desde que deixou de ser uma colônia anglo-egípcia em 1956, o Sudão tem enfrentado uma sucessão de crises que envolvem, sobretudo, disputas por recursos naturais, questões de governança e uma sociedade profundamente dividida, problemas que foram aprofundados com a divisão em 2011. Isso trouxe “uma nova camada de complexidade, ao mesmo tempo em que as esperanças de paz e estabilidade foram rapidamente substituídas por novas crises. É importante informar que o país é rico em petróleo e ouro, o que desperta o interesse de potências extrarregionais.”(3)
O atual momento que vive o país é extremamente crítico, com sérias mudanças políticas e sociais internas adensadas por influências externas com grandes motivações econômicas, que levam o povo sudanês, do norte e do sul, a viver em um presente em ebulição bélica sem perspectivas de um futuro melhor.
Há pouco tempo (entre outubro e novembro de 2025), mais de cem mil pessoas fugiram da cidade de El-Fasher, localizada na região de Darfur, que enfrenta uma grave crise humanitária e um conflito violento permanente travado pelos exército sudanês e pelas forças paramilitares ou “Forças de Apoio Rápido”, as FAR (RSF, na sigla em inglês). O belicoso grupo paramilitar assumiu o controle total de El-Fasher no final de outubro de 2025, após meses de cerco e combates intensos que ignoram qualquer regra ou esforço para proteger a população civil. A guerra no Sudão é considerada pela ONU a maior emergência humanitária atual no mundo. Organizações humanitárias descrevem a situação em El-Fasher como catastrófica e relatam fome generalizada entre os que permanecem na cidade e, aqueles que conseguem fugir não têm destino melhor. Testemunham-se assassinatos em massa, tortura, sequestros e violência sexual, incluindo estupro coletivo, que em sua maioria são cometidos por combatentes da própria FAR. A inoperância das instituições internacionais torna-se quase um elemento de cumplicidade com o que ocorre no Sudão. Críticas severas são feitas aos governos e instituições em todo o mundo, que fecham os olhos para o que se passa no Sudão, bem como por sua inação frente a esse conflito que já causou dezenas de milhares de mortes, forçou cerca de 12 milhões de pessoas a abandonar suas casas em todo o país e continua determinando um destino cruel ao país. Parece que vidas sudanesas não importam ao mundo; parece que não se trata aqui de morte de humanos.
© Unicef/Mohammed Jamal Confrontos dentro e ao redor de El Fasher, no Sudão, forçaram muitas famílias a fugir em busca de segurança
Uma guerra ignorada pela comunidade global, um conflito armado que recomeçou há dez meses atrás e continua envolvendo, principalmente, grupos armados pertencentes ao governo e grupos paramilitares: as Forças Armadas Sudanesas e as Forças de Apoio Rápido, (SAF e RSF, em suas siglas em ingles, respectivamente). O conflito armado no Sudão começou em abril de 2023. A violência e os combates intensos em El-Fasher, que já sofria um cerco, escalaram significativamente em maio de 2024, tendo sido a cidade tomada pelas Forças de Apoio Rápido em outubro de 2025. “Depois de dominarem quatro das cinco províncias da região de Darfur, as Forças de Apoio Rápido (RSF) do General Mohammed Hamdan Dagalo – conhecido pela alcunha de Hemedti – estão a concentrar-se em torno da capital a norte de Darfur, o último bastião da região sob o controle do exército sudanês, liderado pelo general Abdel Fattah Al-Burhan”.(4) O conflito continua a provocar um sofrimento inteminável ao povo sudanês, especialmente em Darfur, enquanto a comunidade global mantem seus olhos fechados e pouco fala do que se passa na região. No final de Janeiro de 2024, o procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan, alertou que os crimes hediondos cometidos em Darfur correm o risco de se tornar mais uma dessas atrocidades que serão facilmente esquecidas e não trarão consequências reais para seus autores. A correspondente do jornal Le Monde, Eliott Brachet, (5) já profetizava que na cidade de El-Fasher todos poderiam se tornar reféns quando, na altura, já se delineava o espaço como em um corredor da morte, onde cada um esperava uma execução que poderia acontecer a qualquer momento (palavras de Omar Mohammed Adam, então morador de um campo para pessoas deslocadas a norte da cidade ocidental do Sudão). A cidade, estratégica, acirrava o interesse dos paramilitares em captura-la. Essa captura lhes daria o controle quase total sobre um território que equivale ao tamanho da França. Embora as escaramuças estivessem, incialmente, concentradas no flanco nordeste de El-Fasher, os combates foram se aproximando até tomar todo o território. Bombas caiam aleatoriamente, matando civis, dezenas de pessoas eram mortas em bombardeios ou trocas de tiros em pequenos espaços de tempo.
El-Fasher é densamente povoada. Desde 2003, a cidade acolhe centenas de milhares de sobreviventes do conflito que ceifou mais de 300 mil vidas quando o então presidente Omar al-Bashir lançou uma operação de limpeza étnica na província rebelde. Desde 15 de Abril [2004], dezenas de milhares de civis de todo o Darfur juntaram-se aos mais de um milhão de residentes anteriores à guerra, fugindo do avanço da RSF.(6)
© REUTERS/MAHAMET RAMDANE
Na busca insana de destruir a população não-árabe local e mudar o perfil demográfico em Darfur se configurava um genocídio que vinha sendo arquitetado, deliberadamente, para eliminar os não-árabes no Sudão. Numa espécie de separação do “joio do trigo”, com a destruição de cidades inteiras, o plano seria praticar uma limpeza étnica enquanto o mundo lhes vira as costas e os deixa agir impunimente.
Em curso a matança pela RSF e aliados, de milhares de pessoas, além de lançar mão da estratégia de espalhar, estrategicamente, o terror entre os sobreviventes para forçar centenas de milhares a se deslocarem. Mais um grupo que se confunde, em sua movimentação, com outros grupos de imigração regional, nacional ou para além das fronteiras do país. Esse é porém um movimento forçado que leva parte da população a lugar nenhum, quando por muito consigam chegar vivos a qualquer destino.
Representantes de órgãos como o Instituto Tahrir para Política do Oriente Médio (TIMEP) Darfur Women Action Group (DWAG), Freedom House e Confluence Advisory discutem como a comunidade global pode deixar sua passividade e agir tomando medidas urgentes “para proteger os civis em Darfur, prevenir novas atrocidades e facilitar uma responsabilização significativa, tanto em Darfur como de forma mais ampla, pelos abusos em todo o país”.(7) Buscando sair dessa falta de ação internacional, o Conselho de Direitos Humanos da ONU ordenou investigações para identificar os responsáveis pelas violações do direito internacional em El-Fasher, visando levar os culpados à justiça. Também o Tribunal Penal Internacional resolveu investigar possíveis crimes de guerra. Os ataques das FAR deixam claro que suas ações seguem um modo racista, com alvos específicos de sudaneses não árabes. Cor de pele e origem tribal são motivos para serem caçados, mortos ou expulsos do território pelas FAR. O grupo paramilitar visa à destruição e ao deslocamento de tribos inteiras para realizar sua limpeza étnica. Isso não é novidade, as FAR são conhecidas por suas ligações históricas com genocídio étnico. Seus membros têm origem no Janjawīd (em árabe), o que se refere a uma milícia árabe sudanesa que opera na região do Sahel, particularmente em Darfur. O grupo evoluiu para as atuais Forças de Apoio Rápido (RSF) que, como mencionado anteriormente, estão em guerra civil contra as Forças Armadas Sudanesas (SAF) desde abril de 2023. Por trás da guerra infindável, diferentes apoios vêm de fora segundo interesses explícitos nas riquezas naturais do Sudão. Nota-se uma explícita indiferença desses "apoiadores" ao que isso possa causar em número de vítimas na população local. Os Emirados Árabes Unidos e a Rússia são acusados de oferecer armas às FAR, que têm interesses nas terras cultiváveis, na mineração de ouro e no acesso à costa do Mar Vermelho. Enquanto isso, Egito, Arábia Saudita, Iran e Turquia são tidos como apoiadores do Exército Sudanês, que desde o início da guerra também vêm sendo acusados de crimes contra a população civil local.
Para a busca de soluções desse conflito sangrento, questões específicas relacionadas ao quadro atual da guerra no Sudão não podem ser deixadas de fora: as necessidades humanitárias mais urgentes nas regiões em que se encontram os grupos em fuga são determinantes para que as estatísticas de mortes e fugas não continuem crescendo; além da busca de um tratado de paz para dar um fim a essa guerra cuja ingerência externa tem colaborado para sua perpetuação. Para esse fim de pacificação, o estabelecimento de mecanismos e ferramentas regionais e internacionais a partir de órgãos com credibilidade moral e política devem substituir o atual papel calculista e anti-humanitário exercido pelas nações estrangeiras no Sudão.(8)
No último dia 19 do mês de novembro de 2025, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, condenou as "atrocidades tremendas" na guerra civil do Sudão e afirmou que trabalharia com a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Egito para pôr fim ao conflito: "Estão ocorrendo atrocidades tremendas no Sudão. Tornou-se o lugar mais violento da Terra e, também, a maior crise humanitária", afirmou Trump em sua rede Truth Social, pouco depois de prometer ao príncipe-herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, que se envolveria no conflito.”(9)
Os interesses econômicos por trás do atual conflito, como o controle de recursos minerais, que dizem muito à Rússia fizeram com que em 2017, o então ditador Bashir prometesse, num encontro com o presidente russo Vladimir Putin, o Sudão como "uma chave" para a África. “Na época, a russa M-Invest – uma empresa de fachada do Grupo Wagner, segundo o Departamento do Tesouro dos EUA – recebeu o direito de exploração de minas sudanesas”. Essas minas passaram a ser exploradas pela M-Invest em parceira com as FAR. Outros países com interesse no Sudão, como por exemplo o Egito aposta num governo estendido de Burhan e, por isso, o apoia.(10) Resta saber quem, nesse imbricado jogo de poder dominado por forças externas e internas se renderá a uma proposta capitaneada pelo governo estadunidense, que vem tentando, com pífios resultados, interferir em outros conflitos internacionais como a guerra entre Ucrânia e Rússia e o conflito Israel-Palestina.
Imagem de satélite de El Fasher — Maxar
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(1) Alerta de Genocídios <avaaz@avaaz.org>
(2) A Crise no Sudão: o conflito esquecido. Causas e Dinâmicas. Disponível em: <https://www.atitoxavier.com/post/a-crise-no-sudão-o-conflito-esquecido-causas-e-dinâmicas>. Acesso em 2024.
(3) idem.
(4) Brachet, E. War in Sudan: In Darfur, city of El-Fasher under siege by Hemedti's paramilitaries. Disponível em: < https://www.lemonde.fr/en/le-monde-africa/article/2024/05/15/war-in-sudan-in-darfur-city-of-el-fasher-under-siege-by-hemedti-s-paramilitaries_6671570_124.html >. Acesso em: jun. 2024.
(5) idem.
(6) idem.
(7) Compare: The TAHRIR Institute for Middle East Policy. Darfur Under Attack: The Case for Civilian Protection and Atrocity Prevention. Disponível em: <https://timep.org/2024/02/13/darfur-under-attack-the-case-for-civilian-protection-and-atrocity-prevention/>. Acesso em: jun. 2024.
(8) idem.
(9) Trump tentará pôr fim a 'atrocidades tremendas' do conflito no Sudão… - Veja mais em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2025/11/19/trump-diz-que-vai-trabalhar-pela-paz-no-sudao-a-pedido-de-principe-saudita.htm?cmpid=copiaecola. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2025/11/19/trump-diz-que-vai-trabalhar-pela-paz-no-sudao-a-pedido-de-principe-saudita.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em 2025.
(10) Compare: Entenda o conflito que eclodiu no Sudão. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2023/04/21/entenda-o-conflito-que-eclodiu-no-sudao/>. Acesso em: 2025.




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