POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Uma homenagem a FRANTZ FANON



                                    Frantz Fanon



Há 61 anos, nesse dia 6 de dezembro de 1961, morria o escritor, pensador,  psiquiatra e filósofo revolucionário FRANTZ FANON. Em sua homenagem transcrevo do livro Sobre Pessoas e Lugares Distantes, publicado em 2022 em parceria com o Polis-UFC e o Plebeu, o capítulo sobre Fanon e o filme de Göran Hugo Olsson "Os condenados da terra”, baseado no livro homônimo.




O revolucionário Frantz Fanon nasceu na ilha caribenha da Martinica em 20 de julho de 1925 e cresceu como um cavalheiro do Império Francês, mas teve que encarar a sua condição de homem negro, “nada além disso”, inferiorizado face aos homens brancos franceses, quando passou a viver no país dos colonizadores.






Frantz Fanon — um revolucionário (1)




A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumaniza-los. Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga. Desnutridos, enfermos, se ainda resistem, o medo concluirá o trabalho: assestam-se os fuzis sobre o camponês; vêm civis que se instalam na terra e o obrigam a cultivá-la para eles. Se resiste, os soldados atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um homem; a vergonha e o temor vão fender-lhe o caráter, desintegrar-lhe a personalidade.(2)



Há 61 anos, em 6 de dezembro de 1961, falecia o revolucionário Frantz Fanon. Fanon nasceu na ilha caribenha da Martinica em 20 de julho de 1925 e cresceu como um cavalheiro do Império Francês, mas teve que encarar a sua condição de homem negro, “nada além disso”, inferiorizado face aos homens brancos franceses, quando passou a viver no país dos colonizadores. Privilégios de classe não o livraram desta marca racista na França. Um intelectual negro, que atuou como psiquiatra, filósofo, cientista social e militante anti-colonial. “Um revolucionário, particularmente negro”.(3) É a partir da própria experiência, que Fanon escreve e publica seu primeiro livro em 1952, um ensaio no qual analisa o racismo. No entanto, seu processo de politização e engajamento em lutas de emancipa..o e liberta..o do jugo colonial teve seu início quando viveu e trabalhou nas colônias francesas no norte da África. Em 1953 parte para Blida (Argélia), onde dirige o hospital psiquiátrico local e entra em contato com o movimento de libertação engajando-se na luta revolucionária.


Devido a sua posição política, é expulso de Blida em 1957. Fanon parte então para a Tunísia, juntando-se aos militantes argelinos da Frente de Libertação Nacional. Ao lado do trabalho médico, desenvolvido no hospital psiquiátrico de Tunis, torna-se membro da equipe editorial de El Moudjahid, jornal que difunde as diretrizes políticas da FLN. O processo de politização tem implicações substantivas para seu pensamento. Os escritos desse período refletem o clima da guerra anticolonialista e em parte, mas não inteiramente, afastam-se das premissas fenomenológicas anteriores. Fanon aproxima-se do marxismo, e uma nova problemática emerge em seus textos: a questão nacional. O tema integra o “espírito da época”, pois os anos 1950 caracterizam-se sobretudo   pela descolonização dos povos africanos e asiáticos.(4)


Como afirma Jean-Paul Sartre em prefácio ao livro de Fanon, ainda que a burguesia, no século XIX, considerasse os operários invejosos, supostamente corrompidos por apetites grosseiros, ainda os incluía na espécie humana; refletindo um certo humanismo que se pretendia universal. Isso, no entanto não era a atitude dessa mesma burguesia face aos colonizados:


Nossos soldados no ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao gênero humano o numerus clausus; uma vez que ninguém pode sem crime espoliar seu semelhante, escraviza-lo ou mata-lo, eles dão por assente que colonizado não é o semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar essa certeza abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do macaco superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga.(5)


Spivak em seu texto de apresentação ao documentário de 2014 Concerning Violence/A Respeito da Violência,(6) nascido do mesmo livro prefaciado por Jean-Paul Sartre, demonstra a contraviolência do colonizado justificada por Fanon pelo fato de não haver outra saída: “não há outra resposta possível a uma ausência absoluta de resposta e a um exercício absoluto de violência legitimada dos colonizadores”.(7)

O livro “Os condenados da terra” de Frantz Fanon foi publicado na mesma semana em que o autor falece em 1961 aos 36 anos. No mesmo dia da publicação, o livro foi condenado e banido na França. A partir dessa obra, ou através dela, Göran Hugo Olsson realizou o documentário. O título do documentário corresponde àquele dado por Fanon ao primeiro capítulo do seu livro: “Da Violência”, “Sobre a Violência” ou “A Respeito da Violência”, conforme edições ou traduções distintas. Imagens e depoimentos dos embates entre colonizadores e colonizados em diferentes países do continente africano denunciam, comovem e, ao mesmo tempo, remetem diretamente ao texto de Fanon, adensando suas ideias e experiência. O filme é esclarecedor sobre a colonização e descolonização no continente africano além de nos confrontar com o pensamento de Fanon bem como com sua luta e engajamento pela liberdade dos colonizados e escravizados da África.


A lição de Fanon foi que você usa o que os mestres desenvolveram e reverte no interesse daqueles que foram escravizados ou colonizados […] Fanon não parou de pensar na colonização, mas queria fazer algo a respeito. Ele dedicou seu tempo e habilidade para a superação dos que sofreram da violência imperialista.(8)


Dentre as cenas do filme que retratam as guerras, as invasões e suas nefastas consequências, Gayatri Spivak destaca em seu prefácio para o filme aquela que carrega a simbologia e a prova da violência

contra a mulher em contextos nacionais diversos:


Eu adiciono uma palavra sobre gênero. Este filme nos lembra que, embora as lutas de libertação obriguem as mulheres a uma aparente igualdade — começando no século 19 ou mesmo antes — quando a poeira baixa, a chamada nação pós-colonial volta às estruturas invisíveis de longo prazo de gênero. A cena mais comovente deste filme é a Vênus negra, lembrando-nos da Vênus de Milo sem o braço, que também é uma Madona negra, amamentando uma criança, com os seios nus. Este ícone deve nos lembrar a todos que o endosso do estupro continua não apenas na guerra, mas também, independentemente de uma nação estar se desenvolvendo ou ser desenvolvida — em mulheres lutando em exércitos legitimados. Colonizador e colonizado estão unidos na violência do gênero, que muitas vezes celebra a maternidade com pathos genuíno.(9)


Entre texto literário e imagem cinematográfica, Fanon vai sendo revelado, um Fanon que se movimenta de um choque original com o racismo francês à compreensão da colonização ao redor do mundo; um Fanon que também dedicou suas habilidades para a cura daqueles que sofriam com a violência (Spivak, 2014). Ao longo do filme, são narrados trechos do livro que fundamentam o cerne da trama: A violência da colonização. Alguns trechos extraídos dos escritos originais nos ajudam a acompanhar as imagens de violência colonial na África, sobre a “autodefesa contra o imperialismo”.


Usa filmagens feitas em África por equipas suecas, entre 1966 e 1984, inscrevendo frases da obra mais conhecida do Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, o livro que o psiquiatra martiniquês escreveu em 10 dias, já perto da morte, depois do golpe dos generais e da repressão sangrenta de 17 de Outubro de 1961, em Paris, opondo a polícia francesa aos manifestantes argelinos. O filme traz à tona a crueldade do colonialismo em África, repensando as complexidades e efeitos devastadores deixados aos povos colonizados.(10)

 

Dividido em nove partes, o filme/documentário traz excertos do livro de Fanon e entrevistas de diversos personagens. A narração é de Ms. Lauryn Hill.


O colonizado não é uma máquina pensante, nem um corpo dotado de aptidões racionais. É a violência em seu estado natural e só sucumbirá, quando for confrontada com uma violência maior.


Com cerca de uma hora de duração, o filme nasce de um documentário, vai além da not.cia ou da reportagem e caminha pari passu com a obra de Fanon. A matéria jornalística ganha, por meio do seu texto, vida e sentido, tornando-se um apelo apaixonado: “Em vida Fanon assistiu à independência do Gana (em 1957) e de v.rios outros países (em 1960)”.(11) Com sua morte prematura em 6 de dezembro de 1961 não pode testemunhar o desenlace das lutas por emancipação que tiveram continuidade em vários outros países e regiões da África; nem mesmo na Argélia, país onde se unira à FLN e que só teve sua independência da França declarada em 1962.


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1) TUPINAMBÁ, A. C. R. Frantz Fanon — um revolucionário. In: Sobre pessoas e Lugares distantes. Fortaleza: Polis & Plebeu, 2022, p. 412-417.

2) FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civiliza..o Brasileira, 1968, p. 9. Texto extra.do do Prefácio de Jean-Paul Sartre. Grafia atualizada.

3) FAUSTINO, D. M. Frantz Fanon – Um revolucionário, particularmente negro. Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

4)  ORTIZ, R. Frantz Fanon: um itinerário político e intelectual. Contemporânea, v. 4, n. 2 p. 425-442 Jul.–Dez. 2014 , p. 434 e 435.

5) FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civiliza..o Brasileira, 1968, p. 9. Texto extraído do Prefácio de Jean-Paul Sartre. Grafia atualizada.

6) Filme de Göran Hugo Olsson. Baseado no livro de Frantz Fanon "Os condenados da terra”. Sveriges Television Louverture Films, 2014.

7) SPIVAK, G. C. Preface To Concerning Violence. (2014). Film Quarterly. Outono, 2014, vol. 68, n. 1, 29 out. 2014.

8)idem.

9)ibdem.

10) Disponível em: https://www.geledes.org.br/documentario-inspirado-nas-ideias-de-fanon/. Acesso em set. 2020.

11) CORDEIRO, A. D.”Este é um filme sobre os mecanismos da violência”. Público, 28 abr. 2015.


domingo, 20 de novembro de 2022

O Dia da Consciência Negra. O racismo de cada dia.*

  

                                    Angela Davis (1)


[…] Aqueles que professam favorecer a liberdade e, no entanto, depreciam a agitação, são homens que querem colheitas sem arar o solo, querem chuva sem trovões e raios. Eles querem o oceano sem o terrível rugido de suas muitas águas. Essa luta pode ser moral, ou física, e pode ser moral e física, mas deve ser uma luta. O poder não concede nada sem uma demanda. Ele nunca fez e nunca fará. Descubra exatamente a que qualquer pessoa se submete silenciosamente e você descobriu a medida exata de injustiça e injustiça que lhes será imposta, e elas continuarão até que sofram resistência com palavras ou lutas, ou com ambos. Os limites dos tiranos são prescritos pela resistência daqueles a quem oprimem… Se algum dia nos libertarmos das opressões e dos erros cometidos sobre nós, devemos pagar por essa libertação. Devemos fazer isso pelo trabalho, pelo sofrimento, pelo sacrifício e, se necessário, com nossas vidas e com a vida dos outros.

Douglas (1857).(2)


Ruby Bridges nasceu em 1954, ano em que o Tribunal Constitucional norte-americano determinou oficialmente o fim da discriminação escolar baseada na raça. A partir daí, negros e brancos deveriam ter acesso ao estudo nas mesmas escolas. A menina Ruby parece ter nascido nesse ano para se incumbir da hercúlea tarefa que se avizinhava: mostrar aos seus compatriotas que era possível negros e brancos viverem juntos, em pé de igualdade. No entanto, protegida por policiais, sua histórica escalada às escadarias da escola só para brancos, a William Frantz Elementary School, em 1960, para frequentá-la como primeira menina negra, não resultou, como se esperava, em passos firmes em direção ao fim do famigerado racismo que ainda hoje grassa na sociedade norte-americana.

Louisiana, nos anos 1960, experimentava o início do processo de “dessegregação”, ampliando os movimentos de luta por direitos civis dos negros estadunidenses. A recusa de Rosa Parks, em 1955, de ceder seu lugar, em um  ônibus,  para uma mulher branca resultou em sua prisão, mas seu gesto foi marcante para a sociedade norte-americana conservadora e segregacionista: "O Civil Rights Act fora sancionado, havia pouco tempo, pelo agora presidente Lyndon B. Johnson. Muita violência, morte, prisão e humilhação, haviam se passado, desde que, em 1955, uma negra, Rosa Parks, se recusara a ceder o seu assento em um ônibus a um branco, na cidade de Montgomery, no Alabama. Ao subir no ônibus e pagar a passagem, sentou-se na primeira fileira de assentos reservados para negros. Como havia pessoas brancas em pé, o motorista resolveu mudar o sinal de "colored" ("pessoa de cor”) para atrás da fileira onde Parks estava e exigiu que os passageiros negros sentados se levantassem para que os brancos pudessem sentar-se. Rosa recusou-se a seguir a orientação exdrúxula do motorista e por isso foi acusada de violar a lei de segregação do código da cidade de Montgomery, apesar de não ter se sentado em um assento reservado para brancos. Seu gesto de resistência foi a centelha de um movimento que culminaria com o reconhecimento de direitos civis dos afro-americanos. Em socorro a Parks, que fora presa por sua ousadia, apresentou-se um jovem e desconhecido pastor que atendia pelo nome de Martin Luther King. No ano de 1964, King seria laureado com o Prêmio Nobel da Paz”.(3)

É preciso ativar a memória para o conteúdo e o tom dos discursos históricos de um dos mais influentes líderes no combate ao racismo e pela garantia de direitos civis, Martin Luther King, que, reagiu à arbitrariedade contra Rosa Parks. Entretanto, antes mesmo do caso Rosa Parks, um ato do Poder Judiciário restringia o acesso e ocupação de qualquer propriedade a pessoas “não brancas”. A decisão da Suprema Corte foi resultado do caso Shelley v. Kraemer (1948) sobre a reivindicação desse direito: "O curioso nisso é que o caso que abriu o caminho para essa jurisprudência, em meados dos anos quarenta do século passado, envolveu a atriz Hattie McDaniel, que interpretou a escrava doméstica Mammy em “E o Vento Levou”. Seus vizinhos “caucasianos”, no luxuoso condomínio de Sugar Hills, em Los Angeles, não queriam tê-la e a outros atores negros de sucesso adquirindo imóveis nas redondezas”. (4)

"Eu não posso acreditar no que você diz, porque eu estou vendo o que você faz” é uma referência feita pelo escritor James Baldwin, que também fez parte de movimentos anti-racistas nos Estados Unidos dos anos 1960, à canção de 1964 "I Can't Believe What You Say (For Seeing What You Do)" de Ike Turner.(5) A frase consegue traduzir seu ceticismo sobre justiça dos brancos frente aos negros no cotidiano do seu país: “A segregação é não-oficial no Norte e oficial no Sul, uma diferença crucial que não faz nada, ainda assim, para aliviar muitos dos Negros do Norte”; “A gente fica nessa posição impossível de ser incapaz de acreditar em uma palavra que os compatriotas dizem”.(6) De volta do seu exílio europeu ("Deixei a América porque duvidava de minha capacidade para sobreviver à violência do problema da cor”) lá estava Baldwin, participando ativamente do movimento dos direitos civis ao lado de nomes como Malcolm X e Martin Luther King Jr., tornando-se uma das vozes mais influentes do movimento. Era o auge da luta pelos Direitos Civis das pessoas negras, quando em 1964 "o presidente Lyndon B. Johnson, tinha assinado a 'Lei dos Direitos Civis', depois do assassínio de John F. Kennedy. A nova legislação proibia, pela primeira vez, a discriminação racial, religiosa e de género no acesso a emprego, a escolas, a espaços públicos ou ao direito ao voto".(7)

A memória histórica da resistência ativa sublinha a saga de Malcom X; seu discurso de radicalidade despertou a consciência afro-americana, pondo abaixo o conceito de supremacia branca, dominante em várias regiões naqueles anos de chumbo do racismo e do poderio branco. Malcom X foi responsável e inspirador para o surgimento de novos grupos e lideranças que lutavam, sem concessões, para que a causa dos direitos civis dos negros continuasse na agenda dos direitos civis ampliando sua recusa visceral do conceito e das práticas funestas da supremacia branca que dominava várias regiões entre os anos 1950 e 1960, inclusive com a volta de manifestações da Ku Klux Klan.(KKK). Foi após a promulgação da lei contra a segregação nas escolas públicas que permitiu Ruby subir as escadarias de uma delas, que surgiram novas ações violentas da organização criminosa pró-supremacia branca.

Em um dado momento da década de 1960, Rosa Parks disse a um jovem estudante branco de 22 anos, Bob Zellner, (que mais tarde também se tornaria um líder na luta por liberdade e igualdade racial) para se envolver efetivamente no movimento: "'Bob, você não pode estudar o problema racial para sempre', ele se lembra dela dizendo. 'Você tem que eventualmente tomar uma posição, e você tem que agir’”.(8) O pedido de Martin Luther King para que as pessoas voltassem às bases, trabalhassem localmente e alavancassem o movimento tocou esse jovem branco de família envolvida com a KKK, levando-o ao coração da luta por direitos civis dos negros.  O então jovem estudante a que nos referimos nasceu no estado do Alabama em 5 de abril de 1939; um estado conhecido por seu segregacionismo, racismo com marcante presença da KKK e cuja constituição, até os dias atuais ainda exige "escolas separadas para crianças brancas e negras”. "Algumas pessoas no Alabama dizem que, como a linguagem não tem força legal, isso realmente não importa. Mas as palavras têm significado — mesmo que sejam apenas simbólicas e não legalmente aplicáveis ​​- especialmente em uma época em que as escolas públicas são mais segregadas do que em qualquer momento desde os anos 1960 e as políticas de escolha de escolas favorecidas pelo presidente Trump e pela secretária de Educação, Betsy DeVos, têm por objetivo aumentar a segregação escolar”.(9) Palavras têm mesmo poder; foram exatamente as palavras proferidas por Martin Luther King e Rosa Parks que tanto impressionaram Bob e contribuíram para mudar sua vida: ”É importante lembrar o que aconteceu há 50 anos, mas estamos ouvindo as palavras do Dr. King: 'Volte para o Mississippi, volte para Mobile, Ala., Volte para Danville, Va’”.(10)  "O discurso 'I Have A Dream' chamou a atenção do mundo. Mas o que realmente ressoou em Zellner foi a convocação de King para a ação. 'O que o Dr. King disse há 50 anos é que você tem de voltar para os estados e trabalhar', diz ele, 'e foi isso que fizemos’". (11) Quase impensável que um nativo branco do sul do Alabama vivendo com parentes envolvidos diretamente com a Ku Klux Klan se aproxime e se engaje no ativismo negro. No entanto foi exatamente o interesse pelo movimento pelos direitos civis que o aproximou desse ativismo, enquanto ainda estava na faculdade. "Para sua tese final, ele tentou entrevistar os líderes dos direitos civis Rosa Parks, Martin Luther King e o líder sindical do Alabama E. D. Nixon […]”.(12) Enquanto estudante sua aproximação se deu quando escrevia, como parte de uma tarefa acadêmica, um artigo sobre as consequências do boicote aos ônibus de Montgomery, um movimento liderado por Rosa Parks com a ajuda de E. D. Nixon. O que significou para esse jovem branco, então com 22 anos, se engajar, de corpo e alma, na campanha pelos direitos civis?  "Para Zellner […] significava se rebelar contra os valores de sua comunidade. Embora o pai de Zellner tivesse deixado a KKK, a maioria da família ficou do lado dos segregacionistas e os rejeitou. Sua mãe, uma professora, e seu pai, um pastor, decidiram não deixar seu ganha-pão para se juntar ao movimento. No entanto, Zellner se juntou a ativistas afro-americanos em manifestações organizadas pelo SNCC [Student Nonviolent Coordinating Committee —Comitê Coordenador Não Violento dos Estudantes] e pelo Comitê Nacional de Coordenação dos Direitos Civis com a mensagem de King em mente. O Fundo Educacional da Conferência Sul ajudou a formar um projeto anti-racismo entre negros e brancos”.(13) As palavras de Rosa Parks que sensibilizaram Zellner continuam fortes e atuais: "algo terrível vai acontecer bem na sua frente e você terá que tomar uma decisão. Não escolher é uma escolha”. Bob escolheu não fugir à luta. 

Já o programa radical de Stokely Carmichael, ativista do Black Power(14) e porta-voz dos Panteras Negras(15) inspirou-se, sobretudo, no nacionalismo negro de Malcolm X: Carmichael representava uma militância afro-americana em meados da década de 1960 e recusava qualquer luta pela integração do negro à sociedade norte-americana (branca), dando prioridade ao cumprimento de agendas político-identitárias negras radicais cada vez mais transnacionais. Não compactuava com o reformismo de Martin Luther King a favor da inclusão dos negros nos marcos da cidadania norteamericana. “Carmichael e o Black Power voltaram-se, então, às reivindicações separatistas de Malcolm X por autodeterminação e poder político para os afroamericanos e suas comunidades por 'quaisquer meios necessários’”.(16)

O racismo nunca erradicado, desde então recrudescente no cotidiano dos EUA já não se deixa escamotear. As diferentes mídias registram barbaridades que se pensavam esgotadas, uma vez inadmissíveis na dita maior “democracia” do planeta. Os episódios extremos de racismo que se acumulam nos mais diversos setores da vida norte-americana são revelados a seco pelas mídias sociais e se espalham rapidamente pelo mundo causando perplexidade e revelando a face brutal e vergonhosa do Tio Sam, que se queria oculta para continuar agindo de forma truculenta. Nem mesmo a eleição de Barack Obama em novembro de 2008, o primeiro presidente negro de toda a história dos EUA, representou o fim de um longo e árduo processo de luta por emancipação dos afro-americanos; representou apenas um passo conjuntural em direção a uma sonhada igualdade racial que ainda não chegou.

Entretanto, a história que se quer avivar hoje não se passou nos já distantes anos de 1950 ou 1960. George Floyd, de 40 anos, morreu asfixiado por um policial branco pressionando o joelho sobre seu pescoço. As imagens da barbárie são do dia 25 de maio de 2020 e são aviltantes, causando indignação por todo lado do planeta. Apesar dos apelos de George, sentindo que sua vida se esvaía ao ser completamente sufocado; o policial branco, impávido, cumpriu sua sórdida tarefa de racista e homicida: matou George. Seria esse policial apenas mais um eleitor de Donald Trump que se considera investido da missão de tirar a vida de um semelhante? A súplica de George para não ser morto, I can’t breathe (“Não consigo respirar”, em português), teve o mesmo som daquela em 2014 de Eric Gardner em Nova York, outro homem negro assassinado por um policial branco que não sofreu qualquer punição pelo crime. Ações dessa natureza são parte de um sistema de justiça racializado que tem alvo certo. A violência policial é uma das principais causas de morte entre jovens nos Estados Unidos, onde, segundo estudos do Mapping Police Violence(17) (Mapeando a violência policial), os negros têm três vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que os brancos. 

Nos Estados Unidos, George Floyd, homem negro de 40 anos; no Brasil, João Pedro, menino negro de 14 anos. George não foi acusado de qualquer crime, mas era negro. João Pedro brincava em casa, dentro de sua casa; mas era pobre, negro e morava em uma favela. No Complexo do Salgueiro no município fluminense de São Gonçalo, foi atingido no peito, dentro de casa, por um tiro de arma de fogo. A repercussão internacional do caso Floyd reforça também, no Brasil, a luta  por justiça para casos como o de João Pedro. Em Minneapolis, as ruas são ocupadas, prédios incendiados e milhares de cidadãos, não somente negros, reivindicam justiça, exigindo a prisão dos culpados pela tragédia que resultou na morte de George Floyd. A frase de George suplicando para que não o matassem I can’t breathe (Eu não consigo respirar) é repetida nos protestos de rua em diferentes cidades. Em função do crescimento dos protestos,  Derek Chauvin, o policial que sufocou sua vítima até a morte foi detido, mas seus três colegas que participaram com ele da ação desastrosa continuavam soltos. As manifestações atuais vêm mostrando outras cores. A multidão é composta por tons diferentes e, em muitos casos, formadas por maioria branca, o que quase não se via nos protestos da década de 1960. “É disso que se trata nessas manifestações de protesto pela morte de George Floyd, em Minneapolis (EUA). Gente de toda cor de pele está farta de tolerar a leniência das autoridades [...] em relação a policiais que achincalham, torturam e matam pobres, imigrantes ilegais e negros”.(18) “[...] leis e decisões judiciais que vão de encontro a interesses dominantes em uma determinada sociedade só ‘pegam’ após muita luta, muita obstinação e coragem daquele que, por elas, podem ter suas situações de exploração ou opressão pelo menos mitigadas”.(19)

Na trilha das crescentes manifestações antirracismo nos Estados Unidos, começaram a ocorrer noutros países, a exemplo do Brasil, manifestações  organizadas em protesto pelos jovens negros mortos por policiais. No dia 31 de maio de 2020, a sede do governo do estado do Rio de Janeiro, o Palácio Guanabara, foi palco de uma delas. Uma semana antes dos protestos do dia 31, aconteciam manifestações de dimensão nacional nas redes sociais. Nesses atos virtuais organizados pela Coalizão Negra Por Direitos, participaram 800 entidades. Neilson Costa Pinto, pai de João Pedro, fez a abertura dos atos, destacando a importância da luta por justiça: "É um momento que eu não desejo para ninguém, perder um filho é como perder a própria vida. O Estado é falido e sem responsabilidade nenhuma. Fazer o que fizeram com o meu filho e com outros filhos também, entrar no seu próprio lar e tirar a vida de um menino de 14 anos significa que o Estado é falido. E vamos lutar por justiça, é isso que esperamos, que a justiça venha a ser feita em nosso país, destacou".(20)

Esse é o resultado de uma necropolítica instituída pelo então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Apesar de circunstancial desafeto político do presidente, é seu par na macabra escalada do fascismo no Brasil. Os últimos acontecimentos nas favelas do Rio mostram que a pandemia do covid-19 não freou o aumento da violência institucional e o modus operandi racista parece ganhar cada vez mais espaço no  Rio de Janeiro e no país. Principalmente em estados como esses que adotam a linha de um governo central militarista e antidemocrático com estratégias e arreganhos ditatoriais é onde não se pode esperar uma polícia que vise, como deveria, à proteção cidadã. O paralelo entre países tão diferentes podem ser feitos porque guardam  semelhanças em sua necropolítica e no abissal autoritarismo nas figuras estultas dos seus líderes, evidenciados em tristes notícias: "Um estudante de 14 anos foi morto durante uma operação da Polícia Federal (PF) e da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, na tarde da última segunda-feira (18). João Pedro Mattos Pinto foi atingido na barriga enquanto brincava no quintal de casa. O adolescente foi levado em um helicóptero da Polícia Civil após ser baleado. Até a manhã desta terça-feira (19), a família estava sem informações sobre o jovem. Segundo o Corpo de Bombeiros, o corpo da vítima foi deixado na última segunda (18), às 15h, no Grupamento de Operações Aéreas (GOA), na zona sul do Rio. Na manhã desta terça-feira (19), familiares do adolescente estiveram no Instituto Médico Legal (IML) de São Gonçalo e reconheceram seu corpo. João Pedro foi descrito por amigos e familiares como um menino calmo e que frequentava a igreja".(21)

Aos mais pobres, restará então morrer de fome ou de coronavírus, como afirma o pesquisador Dennis de Oliveira?(22) Na sequência de um pensamento pretensiosamente racional de “seleção natural”, justifica-se, segundo o pesquisador, um processo genocida que se quer instalar no país [nesses países]; uma necropolítica de soberanistas querendo decidir os que devem viver ou morrer: “Mbembe descreve essa suposta soberania como a busca constante de um exercício de poder que supera qualquer limite racional e científico”. 

Não há apenas más notícias; ao projeto perigoso de necropolítica e genocídio nunca visto antes nas periferias brasileiras, Oliveira (2020) identifica, felizmente, uma contraofensiva de  um movimento civil  para contribuir com o rompimento da nefasta ideia de Estado mínimo e incentivar a solidariedade: “Então, eu vejo que hoje há uma questão objetiva, em que existe, de fato, uma situação perigosa de um projeto de necropolítica e genocídio sem precedentes nas periferias brasileiras diante do coronavírus, mas, por outro lado, temos também uma ação organizada e reativa da população das periferias e suas organizações contra esses efeitos”.(23)


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* Artigo republicado no dia 20 de novembro de 2022 por ocasião do Dia da Consciência Negra. Publicado originalmente no “Memórias de quarentena – Adufc”. Disponível em: <http://adufc.org.br/2020/06/10/memorias-de-quarentena-23-o-racismo-nosso-de-cada-dia/>. Acesso em: 10 jun.  2020.

1) Sobre Angela Davis: "Figura símbolo da causa negra na década de 1960 nos EUA, Angela voltou recentemente ao centro das atenções da mídia americana após seu contundente discurso na Marcha das Mulheres, em Washington, D.C., nos EUA – no dia seguinte à posse de Donald Trump. Sua história de resistência e luta, no entanto, é em muito a história da mulher negra americana do século XX – e volta muitos anos atrás”. Vitor Paiva.


“O racismo é mutável e se expressa de várias maneiras. Durante décadas, muitos de nós argumentamos que o racismo é principalmente institucional, estrutural e sistêmico, e não simplesmente as atitudes de indivíduos. E durante a pandemia do Covid, vimos um número desproporcional de negros e indígenas morrendo por causa do racismo no sistema de saúde”. Angela Davis.

2) Traduzido do original em inglês de Frederick Douglass. EMANCIPAÇÃO NA ÍNDIA OCIDENTAL, discurso proferido em Nova York, em 3 de agosto de 1857. Disponível em: <https://rbscp.lib.rochester.edu/4398>. Acesso em: 10 mai. 2020. 

3) STARLING, S. (2020). A nigger que me mostrou a neve. Os Divergentes. Disponível em: <https://osdivergentes.com.br/outras-palavras/a-nigger-que-me-mostrou-a-neve/>. Acesso em: jun. 2020.

4) idem

5)Baldwin, J. A Report from Occupied Territory. Disponível em: <https://www.thenation.com/article/archive/report-occupied-territory/>. Acesso em: 2019.

6)idem

7) James Baldwin. Ninguém sabe o meu nome. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/james-baldwin-ninguem-sabe-o-meu-nome/>. Acesso em: 2019.

8) SOLIS, S. Bob Zellner took stand against his white community's values. Disponível em: <https://www.usatoday.com/story/news/nation/2013/08/19/march-on-washington-bob-zellner/2646627/>. Acesso em: 2019.

9) Strauss, V. FYI, Alabama’s constitution still calls for ‘separate schools for white and colored children’. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/news/answer-sheet/wp/2017/03/10/fyi-alabamas-constitution-still-calls-for-separate-schools-for-white-and-colored-children/>. Acesso em: 2020.

10) SOLIS, S. Bob Zellner took stand against his white community's values. Disponível em: <https://www.usatoday.com/story/news/nation/2013/08/19/march-on-washington-bob-zellner/2646627/>. Acesso em: 2019.

11)idem

12)ibdem

13)ibdem

14) Expressão criada por Stockley black power (poder negro) após sua 27ª detenção, em 1966: “Estamos gritando liberdade há seis anos… O que vamos começar a dizer agora é poder negro”.

15) Os Panteras Negras (Black Panther Party for Self-Defense) foi criado em 1966 pela comunidade negra para a sua proteção em face das arbitrariedades a que era submetida na sociedade racista e segregacionista norte-americana.

16) GOULART, H. R. de P. Entre os Estados Unidos e o Atlântico Negro: o Black Power, de Stokely Carmichael (1966-1971). Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo: 2019, p. 15.

17) O banco de dados americano mais compreensivo sobre assassinatos por policiais. Disponível em: <https://mappingpoliceviolence.org>. Acesso em: 10 mai. 2020.

18) STARLING, S. A nigger que me mostrou a neve. Os Divergentes, 2020. Disponível em: <https://osdivergentes.com.br/outras-palavras/a-nigger-que-me-mostrou-a-neve/>. Acesso em: jun. 2020.

19)idem

20) DEISTER, J. Em memória de João Pedro: 800 organizações denunciam violência do Estado nas favelas. Rio de Janeiro: Brasil de Fato, 27 maio 2020. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/05/27/em-memoria-de-joao-pedro-800-organizacoes-denunciam-violencia-do-estado-nas-favelas>. Acesso em: mai. 2020.

21) MIRANDA, E. Procura-se João Pedro: jovem desaparecido em ação policial é encontrado morto no Rio. Rio de Janeiro: Brasil de Fato, 19 de maio de 2020. Disponível em: <https://www.brasildefatorj.com.br/2020/05/19/procura-se-joao-pedro-jovem-desaparecido-em-acao-policial-no-rio-e-encontrado-morto>. Acesso em: 10 mai. 2020. 

22) Coordenador do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação da USP.

23) PEREIRA, M. R. “Opção aos mais pobres é morrer de fome ou coronavírus”, diz pesquisador. Disponível em: <https://ponte.org/pandemia-escancara-necropolitica-e-violencia-estrutural-no-brasil-diz-pesquisador/>. Acesso em: jun. 2020.


sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Parem com o genocídio do povo hazara no Afeganistão!/Stop Hazara Genocide in Afganistan!




Eu não acredito

Elyas Alavi (1)

Meu amado, se
a morte estiver aqui para você, que seja na forma de tuberculose
ou na forma de frio intenso,
não como presa de um atentado suicida.

Você deveria ter tempo
Para rever suas memórias,
Para rever as particularidades de seu corpo,
Para fazer planos para sua partida.
Para não sair de casa a pé
E só encontramos os sapatos no bazar.
Para nunca encontrar suas mãos ou seu sorriso.
Nunca para localizar seus olhos.

Com meus próprios olhos devo
testemunhar sua morte, seu último suspiro.
Meus dedos devem tocar suas pálpebras para fechar.
Caso contrário, ninguém vai acreditar, para sempre 
eu mesmo não vou acreditar.


Refugiado, inicialmente no Irã e posteriormente na Austrália, Alavi pode refletir profundamente sobre sua origem Hazara, usando "suas experiências e contemplações particulares como um modelo epistemológico para o deslocamento dos povos… Abordagem autoetnográfica que oferece uma perspetiva representativa para outras pessoas deslocadas e contribui para um conhecimento aprofundado da experiência do refugiado e da migração”. Alvin sabe que poucos dos seus concidadãos contam com a sorte que ele mesmo teve de escapar da guerra e encontrar um porto seguro alhures para escrever em paz sua poesia.  De outro modo, mas com a mesma intensidade, a análise do professor e escritor Niamatullah Ibrahimi,  no seu livro Os Hazaras e o Estado Afegão: rebelião, exclusão e luta pelo reconhecimento” sobre a construção do Estado no Afeganistão como uma reconstrução histórica que se baseia na dinâmica de seleção e exclusão na distribuição do poder do Estado, que resulta em hierarquias étnicas de poder.  Uma sociedade multiétnica, portanto, com diversos grupos étnicos, linguísticos e tribais o que explica muito de como se formou o atual país e como e porque chegou onde chegou, inclusive com uma distribuição desigual de poder em detrimento de determinados grupos, a exemplo dos hazaras. Além disso, afirma o professor, historicamente, a violência organizada tem sido usada como estratégia de poder político e os hazaras têm sido vítimas disso por muito tempo; enfim tudo indica a existência de uma discriminação sistêmica contra os hazaras, i.e., uma discriminação estrutural, um fenômeno antigo, profundamente enraizado na história do Afeganistão.(2)

Quem é mesmo o povo conhecido como Hazara, ao qual nos referiremos neste texto? Os “Hazaras" são muçulmanos, em sua maioria xiitas de origem afegã, famosos por sua poesia, transmitida oralmente através de gerações. Eles falam um dialeto do dari (farsi – dialeto persa) chamado hazaragi. O conflito entre muçulmanos sunitas e xiitas "deriva de uma interpretação variável do Alcorão Sagrado e da linhagem distinta de ambas as seitas". Onde quer que formem minoria, em casa ou além fronteiras os hazaras têm que conviver com a intolerância religiosa de seus semelhantes em etnia e em religião. Também no Paquistão, grupos extremistas recorrem à violência praticada por organizações governamentais de Estado que temem que o islamismo xiita cresça no país de maioria sunita: "Esses assassinatos seletivos existiram continuamente, mas atingiram níveis sem precedentes em 2013, com aproximadamente 700 xiitas assassinados, muitos dos quais eram hazaras no Baluquistão [província paquistã]. Os bombardeios em 2013 também ceifaram inúmeras vidas de Hazara, e tal violência acabou levando a protestos, incluindo a recusa de enterrar os cadáveres até que o governo paquistanês tomasse alguma atitude”.(3) Não por acaso os Hazaras sofrem repetidos atos de genocídio, são vítimas de escravidão e deslocamentos forçados, desde o início do século XIX, devido às suas crenças e cultura religiosas progressivas. Ao contrário de outros grupos muçulmanos, pincipalmente os sunitas que sempre os perseguiram e no seu fundamentalismo odeiam quem se alheie a suas crenças, os hazaras "promovem fortemente a igualdade de gênero, incentivando as mulheres a participar plenamente da educação, do governo, da saúde, do trabalho e de uma ampla gama de atividades fora de casa”.

Atualmente, as maiores preocupações naquela região se voltam ao Afeganistão após a tomada de poder pelos talibãs em 2021. Desde então aumentou o perigo para as comunidades hazaras no país, que foram alvos de ataques violentos na província de Khorasan, com mais de 700 pessoas mortas em 13 ataques no ano passado, segundo relatório da Human Rights Watch, que traz uma acusação contra o Talibã de fazer pouco para "proteger os Hazara e outras minorias religiosas de atentados suicidas e ataques mortais, e de não fornecer atendimento médico adequado e assistência às vítimas e suas famílias, apesar de prometer fazê-lo quando assumiram o poder em agosto de 2021".(4)

No Ocidente o silêncio, o desconhecimento e a indiferença prevalecem sobre o tema Genocídio Hazara! Pouco se sabe e quase nenhuma atenção é dada ao que se passa com essa minoria étnica afegã. Afinal de contas pensar em Afeganistão já é demasiado complicado para quem recebe informações confusas desde a invasão e a saída dos soviéticos ao país, passando pelo posterior fortalecimento e domínio local dos talibãs, pela caçada estadunidense ao terrorista Osama bin Laden, pelo período de mando dos Estados Unidos e da Otan até a decisão do governo Biden de retirar suas forças militares do país e o retorno dos talibãs ao poder oficial e de fato. Pensar em minoria étnica que sofre dentro daquele país castigado por invasões externas e internas é esperar demais de um Ocidente que bem soube invadi-lo para depois abandona-lo à própria sorte e deixa-lo mergulhado no caos. União Soviética, Estados Unidos, Grã-Bretanha etc. souberam ignorar a soberania do país asiático em nome de seus próprios interesses. Em consequência de uma história de desmandos e invasões esse país nunca mais conseguiu sair dos noticiários das tragédias mundiais, libertar-se do desrespeito aos direitos humanos, mantendo-se permanentemente em guerra civil, aprofundando o seu fundamentalismo religioso e padecendo de muitas outras mazelas daí advindas. A pretexto de combater guerrilheiros islâmicos, os soviéticos invadiram o país em 1979 catalisando uma guerra civil que em vez de combater os tais guerrilheiros coroou o poder dos Talibãs, que em 1996  tomou conta da capital do país, Cabul, instalando um regime extremista/fundamentalista, o protótipo do que hoje governa e despreza minorias locais como os Hazaras. Um hiato entre a derrubada dos Talibãs em 2001 por forças americanas e a instalação de um novo governo apoiado por uma aliança militar que garantia a segurança no país teve seu fim em 2021, quando Estados Unidos e as demais nações, unilateralmente, iniciaram a retirada de suas tropas do país que havia sido por elas invadido. Já em maio de 2021 um ataque terrorista em Cabul, matou quase 100 pessoas na área de Hazara, um crime hediondo contra uma minoria perseguida que continuou a ser ignorado no noticiário ocidental, apesar de se saber que o povo hazara tem sido alvo específico de terroristas, tiranos e milícias há décadas. Apesar da ONU estar informada sobre esses ataques genocidas contra a minoria hazara, são poucas as efetivas ações e baixo o engajamento de autoridades e de governos ocidentais para coibir ou pelo menos informar o mundo sobre esses ataques. É sabido que em um relatório de setembro de 2022 do relator de direitos humanos da ONU no Afeganistão, Richard Bennett, constavam informações suficientes para indignar aqueles que se ocupam com o tema dos direitos humanos: 

As comunidades hazara foram submetidas a múltiplas formas de discriminação, afetando negativamente seus direitos econômicos, sociais, culturais e humanos. “Há relatos de prisões arbitrárias, tortura e outros maus-tratos, execuções sumárias e desaparecimentos forçados”, insistiu o Relator Especial. “Além disso, está sendo relatado um aumento no discurso inflamado, tanto online quanto em algumas mesquitas durante as orações de sexta-feira, incluindo pedidos para que os hazaras sejam mortos”. O principal especialista em direitos humanos, que trabalha de forma independente, também explicou como os governantes de fato do Afeganistão nomearam pashtuns “para cargos importantes nas estruturas governamentais nas províncias dominadas por Hazara".(5)

De que valeu o relatório do Senhor Benett enviado para a ONU? Muito pouco. A ONU tem 193 Estados-membros e nenhum ouviu essas queixas com a atenção necessária para influenciar o curso do massacre talibã contra o povo hazara, deixando, ao contrário, campo aberto para o próximo e iminente ataque terrorista. Resta-nos, junto ao heróico e desesperado povo afegão ir às redes sociais e pedir ao mundo que intervenha no país por meio de boicotes, suporte e infra-estrutura para os que se ocupam em defender o que lhes resta de direitos no país e contribuir para que essas ações terroristas, cujo alvo certo são os hazaras, tenham um fim. Enquanto isso, ativistas de direitos humanos vão às ruas de Cabul para pedir uma intervenção, qual seja, para dar cabo desse desvario de fundamentalistas que ora formam o governo local e querem só para si e seu grupo “religioso/político“ o poder e o país. Hoje, 18 de novembro de 2022, levanta-se a hashtag a favor desse povo que merece e precisa de nossa ajuda: #stopHazaraGenocide. Ao lado dessas ações civis e voluntárias, queremos saber que iniciativas efetivas a ONU e seus Estados-membros, individual ou coletivamente, vão tomar para garantir segurança e proteção aos Hazaras, grupo alvo dos talibãs/fundamentalistas/terroristas e abandonados por seus representes que ora sentam no Arg (Palácio Presidencial): "Com exceção de uma força internacional de manutenção da paz assumindo posições de segurança nas áreas de Hazara, o povo afegão continuará a assistir enquanto seus concidadãos são assassinados por tentar obter educação ou dar à luz em um hospital”.(6) Atualmente, uma das únicas saídas para escapar desse massacre é a fuga do país. Os afegãos que fogem dos talibãs merecem ser protegidos onde quer que eles consigam chegar. Como ocorre em muitos outros países que se tornaram rota ou destino dessas vítimas de uma guerra sem fim, o Brasil também não conseguiu acolher de forma digna aqueles que aqui chegaram em busca de proteção e abrigo. Num crescente, vamos de quase três mil em 2022 para, quem sabe, chegar em 2023 até quatro vezes esse número de afegãos que buscam refúgio no Brasil. Os saguões dos aeroportos de São Paulo se tornaram as casas para essas famílias de imigrantes, que continuam sofrendo como apátridas invisíveis.

Fortaleza, 18 de novembro de 2022

Antonio C R Tupinambá

_________________________________________

1)Poeta e artista visual residente em Adelaide. De origem Hazara, nasceu na província de Daykundi, no Afeganistão, publicou três livros de poesia: I Am a Daydreamer Wolf , publicado em 2008 em Teerã (5ª ed., 2016), seguido de Some Wounds (Cabul, 2012) e Hodood (Teerã, 2015). Traduzido por Fatemeh Shams e Leonard Schwartz.

"Poucas vozes são mais distintas no mundo da poesia afegã contemporânea do que Elyas Alavi. O jovem poeta dinâmico, agora cidadão australiano depois de fugir do Afeganistão devastado pela guerra sob a ocupação soviética para passar anos como refugiado no Irã, é conhecido por escrever versos em branco ( She'r-e Sepid ). Em uma tradição literária fortemente influenciada por formas clássicas como Qasideh (ode) e Ghazal (soneto), a prática poética persistente de Alavi na forma de versos em branco fez dele uma voz pioneira no movimento modernista do Irã e do Afeganistão nas últimas duas décadas. Sua única 'simplicidade inimitável' ( sahl-e momtane') é caracterizado por este estilo de verso em branco característico, o uso do dialeto Dari e a exploração inabalável da política e da injustiça em relação aos refugiados no Oriente Médio e além, tornando Alavi uma voz importante para estudar".


2) Paiman, N. O Genocídio Hazara e a Discriminação Sistêmica no Afeganistão. Disponível em: <https://civilrights.org/blog/the-hazara-genocide-and-systemic-discrimination-in-afghanistan/>. Acesso em: 18 nov. 2022.


3) Violenta Perseguição aos Shi'a Hazaras do Paquistão. Disponível em: <https://sites.uab.edu/humanrights/tag/silent-genocide/>. Acesso em: 18 nov. 2022.


4)  Strzyzynska, V. Hundreds of Hazaras killed by ISKP since Taliban took power, say rights group. Disponível em: < https://www.theguardian.com/global-development/2022/sep/06/hundreds-of-hazaras-shia-killed-iskp-islamic-state-khorasan-province-taliban-power-human-rights-watch >. Acesso em 18 nov. 22.


5) Howk, J. C. A ONU responde ao genocídio Hazara no Afeganistão com silêncio. Disponível em: <https://news.clearancejobs.com/2022/10/06/the-un-responds-to-the-hazara-genocide-in-afghanistan-with-silence/ >. Acesso em 18 nov. 2022.


6) idem.