POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Até onde pode chegar a liberdade na Síria? (Opinião- Jornal O Povo)

 


Artigo de Opinião publicado no Jornal  (1)




Mulheres curdas se tornaram símbolo de luta depois de sua participação na guerra contra o Exército Islâmico na Síria. Essas mulheres alcançaram o que poucos acreditavam após sua esmagadora vitória contra o terrorismo: parceria igualitária na política, na economia e na vida social em Rojava, região a noroeste do país. O modelo por elas implementado tinha um slogan na língua curda: "Jin, Jiyan, Azadi" (Mulher, Vida, Liberdade), desafiava o patriarcado e priorizava o equilíbrio no ambiente em que viviam por meio do estabelecimento de uma democracia direta. Esse sistema político, décadas à frente do que se conhecia naquela região, surgiu, não em tempos de paz, mas sob a sombra de um conflito que envolvia governos antidemocráticos, terrorismo local e internacional. O mundo testemunhou quando o movimento formado exclusivamente por mulheres liderou a luta vitoriosa contra o grupo terrorista ISIS. Essas guerreiras queriam não apenas derrotar extremistas, mas também quebrar tabus e construir um novo sonho de vida com justiça para o povo curdo. Terroristas do ISIS, conhecidos por não temerem a morte, supostamente temiam ser mortos por mulheres — um destino que acreditavam, os impediria de alcançar o paraíso. A resistência das mulheres curdas remodelou sua própria cultura, provando que a igualdade não é um ideal inalcançável, mas uma prática possível de ser exercida cotidianamente. Em janeiro de 2015, hastearam a bandeira da Unidade de Proteção à Mulher em terras sírias, onde as experiências da repressão feminina são a regra. A recente queda da família Assad na Síria foi, indubitavelmente, também para a população curda local, uma conquista histórica. Os curdos foram o grupo étnico-populacional que mais sofreu repressão durante o regime Assad: privados de direitos, com terras desapropriadas, expulsos de suas próprias casas e aldeias, perseguidos, além de serem, coletivamente, declarados como apátridas. O fim da ditadura poderia significar para esse povo perseguido uma esperança se, e somente se, não tivessem um vizinho como a Turquia. O país que tem um governo declaradamente anti-curdo e, sob a égide do nada democrático Erdogan, exerce uma política genocida interna contra seu próprio povo, lança agora suas garras além fronteiras, em busca do domínio também em território sírio. A alegria após a queda do regime Assad pouco durou nessa região semi-autônoma da Síria. A Turquia logo passou a colaborar com grupos aliados jihadistas em suas ofensivas, eclipsando a vitória que também seria curda sobre a ditadura em Damasco. A libertação do país para uma parte de sua população, já não é mais celebrada pelo povo curdo, que agora vive sob o temor de ameaça à própria sobrevivência e de retrocesso nas conquistas como região semiautônoma dentro da Síria. Além do temor aos vizinhos turcos que se aliam a milícias locais para atacá-los, há dúvidas sobre as reais intenções do novo governo sírio, quando se trata de liberdades democráticas e respeito a minorias e mulheres.


Fortaleza, 2 de ago. de 2025

Antonio C. R. Tupinambá

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(1) Opinião- Jornal O Povo: https://mais.opovo.com.br/jornal/opiniao/2025/08/02/antonio-c-r-tupinamba-ate-onde-pode-chegar-a-liberdade-na-siria.html

 



segunda-feira, 22 de setembro de 2025

21 de setembro! Uma data para não ser esquecida.



Foto: @jarbasoliveira


O ato contra a PEC DA BANDIDAGEM (PEC da Blindagem) e os projetos de anistia que tramitam no Congresso Nacional foram marcados para ocorrer em todo o Brasil no domingo do dia 21 de setembro de 2025. Além de ter enchido as ruas de quase todas as capitais do país, pelo menos 19 delas registraram esses atos ao longo deste domingo. O povo começou a ir às ruas bem cedo, onde os atos começaram antes mesmo da hora marcada e não somente nas capitais, muitos protestos foram vistos também em outras cidades Brasil afora. Em Fortaleza, um sucesso! Mais de 30.000 pessoas saíram pelas ruas da Praia de Iracema em um trajeto que ia desde a praia do Ideal até o Centro Cultural Dragão do Mar. Ostentando faixas e cartazes com mensagens contra a PEC da Bandidagem e a Anistia dos Golpistas, muitas vezes o humor tratava desses sérios assuntos que deixam perplexa a população, dado o absurdo que defendem: deixar parlamentares acusados de ilicitudes, fora do alcance da justiça e anistiar aqueles que atentaram contra a democracia e que, no dia 8 de janeiro invadiram Brasília, destruíram grande parte dos prédios públicos sob comando velado dos que foram derrotados nas últimas eleições presidenciais e de seus asseclas. Em São Paulo e no Rio se registraram os maiores protestos do país, na avenida  Paulista e em Copacabana, respectivamente. Já pelas 13 horas se notava grande concentração de pessoas nos arredores do MASP (Museu de Arte de São Paulo), que não se intimidaram com a chuva que começou a cair nessa tarde. As centenas de milhares de pessoas que se reuniram para mostrar sua insatisfação com a votação no Congresso que pretende impedir investigações contra parlamentares, antes de análise prévia das casas legislativas e os projetos que pretendem anistiar ou mesmo diminuir as penas de golpistas foram os motivos para que permanecessem e gritassem sua indignação com o descalabro dos parlamentares da extrema-direita e do centrão e também daqueles que, mesmo fora desses núcleos, traíram suas bases políticas votando favorável à PEC. “Segundo Gilmar Mauro, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o ato deste domingo foi o início da “primavera do povo brasileiro em luta. ‘Hoje, nós estamos antecipando a primavera, que começa oficialmente amanhã. No final do dia, nós vamos poder falar de milhões contra a anistia aos golpistas, contra a PEC [da Blindagem], e colocar em pauta os temas da classe trabalhadora’, completou”.(1)

A ausência de artistas cearenses na demonstração em Fortaleza (ou não fizeram falta, pois nada diminuiu a animação e efusiva participação da massa na Praia de Iracema) foi largamente compensada por nossos ícones da democracia no cenário nacional. No Rio de Janeiro, Caetano Veloso deu início ao ato no Posto 5 da Praia de Copacabana e, completando esse dia histórico Djavan, Gilberto Gil, Chico Buarque, Geraldo Azevedo, Ivan Lins, Lenine, entre outros, entraram novamente e incansavelmente em cena para retomar a participação dos artistas em atos de tão grande importância no Brasil, como já foi visto na Passeata dos Cem Mil, em 1968, também no Rio de Janeiro, que, naquela altura, chegou a reunir cerca de cem mil pessoas contra a ditadura militar brasileira, a repressão policial e a violência. Com o grito de “aqui fascista não se cria” Salvador trouxe sua manifestação com a participação de Daniela Mercury e do ator Wagner Moura, que juntos, com axé e borogodó mandaram suas claras mensagens de não à anistia e à PEC da bandidagem junto ao Morro do Cristo, encantando os manifestantes que lotaram a orla da Barra.

CONTRA A PEC DA BANDIDAGEM!

SEM ANISTIA PARA GOLPISTAS!




















 



quinta-feira, 18 de setembro de 2025

A terra de homens (nem tão) honestos!

 


Foto: Mikhail Metzel/AFP

Gostaria de expressar minha gratidão a todos os patriotas amantes da paz e da liberdade e pan-africanistas que se reuniram ao redor do mundo para apoiar nosso compromisso e nossa visão de um novo Burkina Faso e uma nova África, livre do imperialismo e do neocolonialismo. 

Ibrahim Traoré

Versus:

Em um cenário político marcado por instabilidade e repressão, Burkina Faso criminaliza a homossexualidade pela primeira vez em sua história recente. A decisão foi oficializada no dia 1º de setembro de 2025, quando o parlamento de transição do país — sob controle da junta militar liderada pelo capitão Ibrahim Traoré — aprovou, de forma unânime, uma emenda ao Código da Pessoa e da Família que torna ilegais as relações entre pessoas do mesmo sexo. (1)



Fonte: AgênciaBrasil.

Golpes de Estado significam longas e traumáticas transições, sem data para terminar. Quando um líder golpista toma a iniciativa para dizer que a transição chegou ao fim? A normalidade democrática será um dia restituída e haverá eleições?  Ibrahim Traoré, atual presidente burkinense, justificou seu golpe de Estado de 2022 contra o então presidente interino, Tenente-Coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba, acusando-o de abandonar a missão de restaurar a segurança e a integridade territorial do país. Burkina Faso, que era o antigo Alto Volta, tem seu novo nome oriundo das línguas nacionais mooré e dioula e quer dizer: “terra de homens honestos.” Após tomar o poder, Traoré prometeu priorizar o combate ao terrorismo e trazer de volta a esperança de uma vida melhor para seu povo. Desde o início do seu governo, vem gravitando em direção a nações como Rússia, China e Turquia, alternativas às potências ocidentais com tradição colonial. Considera-se um sucessor de Thomas Sankara, o presidente que também havia chegado ao poder por meio de um golpe militar, no dia 4 de agosto de 1983. Sankara, jovem, eloquente, carismático e muito querido pela juventude de seu país, defendia o renascimento, pela revolução, da nação africana e antevia para ela um futuro promissor, qualidades e visão também compartilhadas por Ibrahim Traoré. Atributos e metas do então presidente Sankara seriam um prato cheio para desagradar seus ex-colonizadores. Com seu antecessor, compartilha muitas características e sonhos. Dele vem a mesma inspiração em moldar uma África independente e solidária com a ajuda de seu povo. Considerado um farol de esperança para grande parte do continente, Ibrahim Traoré se coloca na mesma tradição de Thomas Sankara, o que lhe põe na mira dos “canhões” franceses e de outros regimes imperialistas, que preferem líderes submissos e corruptíveis, sem desejos independentistas e que sigam à risca a cartilha dos neocolonizadores. 

O declínio da influência francesa na região do Sahel e na África Ocidental veio, segundo Traoré, em consequência das próprias ações paternalistas e negativistas dos europeus. Para eles, o africano é incapaz de se desenvolver, inventar, inovar, tomar iniciativa ou se autogerir. Traoré venceu uma batalha para lutar pela emancipação de sua terra e provar que tudo isso é possível, ao contrário do que pensam os governantes da França e de outros países ocidentais: “essa visão do povo africano como subumano precisa ser detida, modificada; pois enquanto tratarem os africanos dessa forma, terão a recusa para se tornarem parceiros de negócios e isso apenas aumentará o distanciamento entre os povos.” Como já afirmava o filósofo martinicano Frantz Fanon, a violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito dos homens africanos subjugados; procura desumaniza-los: “Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga. Desnutridos, enfermos, se ainda resistem, o medo concluirá o trabalho: assestam-se os fuzis sobre o camponês; vêm civis que se instalam na terra e o obrigam a cultivá-la para eles. Se resiste, os soldados atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um homem; a vergonha e o temor vão fender-lhe o caráter, desintegrar-lhe a personalidade.”(2)

Da forma em que eram definidas as relações entre europeus e africanos nunca seria possível construir uma parceria com a qual se pudesse colher benefícios mútuos, afirma o novo líder do Sahel. Para justificar sua ingerência no país, o presidente francês prefere acusar Burkina Faso de se submeter ao poderio de “estrangeiros”, especialmente do presidente russo, Vladimir Putin. Desvalorizar a prática de multilateralismo pelos países africanos e assim continuar com seu domínio neocolonial é o que está por trás do discurso falacioso de Macron. A disseminação de fake news para convencer a população local desses argumentos já não vinga no país; as pessoas estão acordando e tomando consciência de que essa é mais uma estratégia neocolonizadora para, segundo Traoré, perpetuar o controle econômico e cultural da nação. Há um temor nesses governantes ocidentais com sede de domínio na África de que os novos líderes africanos, os legítimos representantes dos desejos de toda uma região, consigam viver com independência e soberania, livrando-se das correntes do colonialismo. O que fazer em face do atual modelo de governo comandado por Traoré, que chegou ao poder por meio de um golpe e, ao mesmo tempo, apresenta-se como um líder capaz de salvar Burkina Faso das garras do neocolonialismo? O que de fato se passa em Burkina Faso? Trata-se apenas de mais uma ditadura a ser combatida? Há divergências acerca dos resultados da prometida reconstrução do país. Ele fala sobre progresso e autonomia, mas há sinais de que Burkina Faso se transforma em um estado policial, sem conseguir por fim a uma crise de segurança, com avanço visível da insurgência jihadista e a emergência de uma nova crise humanitária com requintes de perseguição a minorias e desafetos. Ibrahim Traoré, que estudou geologia na Universidade de Uagadugu, capital do país, entrou no exército e lutou contra esses grupos de insurgentes jihadistas no norte de Burkina, afirma que seu objetivo é consolidar a autodeterminação do seu país com a participação ativa de seu povo. Na busca desse ousado objetivo vem empreendendo múltiplas e desafiadoras tarefas: inicialmente expulsar as tropas francesas de Burkina Faso para, a seguir nacionalizar suas minas, criar bancos públicos, e fazer acordos com países fora do eixo neocolonizador. Isso permitirá a desvinculação e a independência monetária francesa, além do fortalecimento da industrialização e do uso majoritário da produção alimentar nacional para atender às necessidades internas em detrimento da exportação. Já no plano cultural, um passo importante foi dado com a revogação da língua dos colonizadores, o francês, enquanto língua oficial. O governo burquinense adotou um projeto de lei que revisa a Constituição e declara línguas nacionais como as línguas oficiais da nação em substituição ao francês, que ficou relegado à categoria de “língua de trabalho”. O Primeiro-Ministro Apollinaire Joachimson Kyelem,  justificou a necessidade da redação de uma nova Constituição por uma questão de soberania política, econômica e cultural: “ninguém pode prosperar verdadeiramente a partir dos conceitos dos outros", declarou o Primeiro-Ministro, aludindo a textos que foram inspirados na Constituição francesa. Tudo ia muito bem até o dia em que a junta resolveu incluir nos gestos revolucionários e independentistas um conceito que sequer estava presente na constituição: a Homofobia. Como em outras nações africanas, os esforços de autodeterminação e evolução para uma nação que respeite seus cidadãos foi maculada pela hipocrisia e falta de visão sobre a natureza humana. Respeitar diferenças significa não somente querer fazer o povo africano evoluir economicamente mas também em seu humanismo. Ao contrário dessa rota evolutiva, uma involução para um estágio ainda pior do que aquele em que se encontravam no tema do respeito e da tolerância. Toda a conquista que Troaré estava colocando em curso será maculada. Todo o apoio que nós, os progressistas e empáticos, oferecemos à emancipação dos burquinense, bem como africanos foi comprometido pelo egoísmo do líder que se dizia altruísta e preocupado com o bem-estar do seu povo. Agora sabe-se que, assim como o ditador Vladimir Putin, apenas almeja este bem-estar para uma parcela da população, aquela que é vista como a eles alinhada. Claro está que nessa parcela não cabem os que deles diferem, ainda que sejam igualmente construtores e batalhadores sociais com o mesmo ímpeto e desejo de transformar uma África com justiça e soberania.  Os militares no poder em Burkina Faso adotaram um projeto de lei que proíbe a homossexualidade no país, embora ainda não tenha sido aprovado pelo Parlamento até esse momento. Eles começam a gritante discriminação por meio de um grupo minoritário, os homossexuais, mas não se iludam pois isso, muito certamente, se expandirá para outros alvos. Amanhã poderão ser incluidos nas suas reservas de não-cidadania certos grupos religiosos, grupos étnicos, familiares, linguísticos ou políticos. Enfim, é ilusório acreditar que uma discriminação “constitucional” encerrará no ponto onde começou. Ela seguramente será estendida, e aquela revolução que beneficiaria uma nação inteira terminará por beneficiar apenas alguns setores da sociedade que se alinhem a um pensamento tacanho de governantes que perpetuarão sua ditadura e nunca quererão largar o poder que tomou. Todos os esforços anteriores em nome da legitimidade do governo poderão cair por terra. O Conselho de Ministros aprovou um decreto que cria um novo Código das Pessoas e da Família (CPF, sigla em inglês) que "consagra a proibição da homossexualidade" no país, afirmou a Presidência interina em nota." A partir de agora, a homossexualidade e as práticas semelhantes são proibidas e punidas por lei”. Sabe-se muito bem que os quase trinta países africanos que já têm em suas cartas essa condenação, o fazem a partir de ideias que beiram a patologia e baseadas em fundamentalismos religiosos, preconceitos sociais e pessoais que resultam em perseguição e não em busca de proteção à família. Assuntos que realmente impedem a paz e harmonia familiar não são tratados por esses governos. A desculpa é apenas a velha hipocrisia social para encobrir o que sempre existirá em seus países e em suas famílias mas deverá ser mascarado e escondido para que, aparentemente a nação pareça “livre de indesejáveis”. Traoré perdeu uma chance de ser um líder apoiado por quem torcia por uma África soberana e que trouxesse, com sua soberania, a paz, o progresso e a liberdade para todos os que dela fazem parte. Repete erros de outros regimes ditos revolucionários que perseguem minorias, negando o respeito aos diferentes que poderiam somar esforços na busca da construção de uma sociedade verdadeiramente democrática.


Fortaleza, 18 de setembro de 2025.



Foto: DW (Deutsche Welle)(3)


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(1) Disponível em: 

<https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/burkina-faso-criminaliza-a-homossexualidade-e-impoe-prisao-e multas,0c91428bdb91e76043e4f4380378c7c4823ig4kt.html?utm_source=clipboard>. 

Acesso em: set. 2025.

(2) FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968,  p. 9. Texto extraído do Prefácio de Jean-Paul Sartre para o livro de Fanon. A grafia foi atualizada.

(3) Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/burkina-faso-aprova-lei-que-pro%C3%ADbe-atos-homossexuais/a-73886286>. Acesso em: set. 2025.




terça-feira, 16 de setembro de 2025

O conto "O quarto da Luz Brilhante" de Saadat Hasan Manto como exemplo de sua escrita em Bombaim.

 





Saadat Hasan Manto examinou as divisões físicas e morais da sociedade em seu estilo quase científico, ainda que sarcástico... Quando morreu em Lahore, em 1955, deixou para trás uma conquista incomparável, uma obra muito procurada como grande arte e como um marco da tradição liberal-humanista no Sul da Ásia.

Alamgir Hashm


Saadat Hasan Manto, um escritor à frente de seu tempo, raro em seu estilo, pôde captar o que havia de mais autêntico e essencial nas cidades em que viveu. Refiro-me aqui, em especial, à cidade de Bombaim, seu grande e inesquecível amor. Vejo-o captando os lados sombrios daquela metrópole da Índia, antes da divisão que ocorreu no subcontinente indiano em 1947. Escreveu sobre o que viveu, com grande intensidade. Apesar de ser originário do Punjab, passou muitos anos na cidade que adotou como sua, Bombaim, onde trabalhou como escritor, além de colaborar com o cinema local. Inegável que corpo e alma emergiam nos seus contos e que suas experiências pessoais faziam parte daquilo que escrevia. Histórias urbanas que traziam humor mas também seriedade, às vezes eram soturnas, satíricas e cheias de projeções do que ele próprio passava e sentia naqueles dias. Em constante movimento, foi cada vez mais se entregando ao vício do álcool para aguentar a dura realidade da vida naquela cidade ao mesmo tempo atraente e complicada para alguém que desejava viver do ofício da escrita. Uma cidade vítima dos muitos infortúnios do país em processo de divisão e das lutas que destruíam laços comunitários. Esse era o alto custo que todo um povo pagava para se libertar do jugo britânico.  


O mundo de Manto nem sempre foi agradável; porque era real. Quando as pessoas se opunham à obscenidade em suas histórias, ele dizia: ‘Se você não consegue suportar essas histórias, então a sociedade é insuportável. Quem sou eu para tirar as roupas desta sociedade, que já está nua? Eu nem tento vesti-la, porque não é meu trabalho, esse seria um trabalho de “costureiros”.(1) 


Um autodidata que causava desconforto com sua escrita e estilo de vida, com a verdade dita e praticada por ele. Na cara dos leitores confusos, chocados, decepcionados ou mesmo orgulhosos e admirados com seu texto inconfundível, jogava seus dois maiores vícios: a escrita e o álcool.


Tudo o que ele fez foi capturar a realidade ao seu redor sem perder nenhum detalhe. Alguns de nós tentamos ser politicamente corretos e deixar a feiura da realidade fora da escrita; Manto nunca fez isso. Quando via sangue, não desviava o olhar. Quando via qualquer sujeira, não se esquivava de falar sobre isso. É por isso que a peculiaridade está sempre presente no que escreve. Mesmo quando falava de política, ele não escolhia um lado, confortavelmente. Na verdade – como sempre faz – ele deixava você desconfortável com verdades não ditas.(2)


Em sua breve carreira Manto escreveu quase sem interrupção, apesar das dificuldades pelas quais passou antes durante e depois dos eventos da Partição no subcontinente indiano. Escrevia sempre em urdu, seu idioma materno, para o qual também traduziu várias obras inglesas, russas e francesas. Muitos dos seus escritos autorais foram traduzidos para o inglês, um dos quais traduzi livremente para o português a fim de introduzi-lo neste ensaio. A partir de certa altura da sua vida, ainda na Índia,   tratou de temas relacionados ao evento da Partição, que estão permeados pelas tragédias dela resultantes. A obra de Manto, como nos revelam os personagens do conto traduzido, mergulha na vida dos marginalizados da sociedade, acompanhando a trajetória de famílias desestruturadas, gangues, prostitutas e de outras vítimas em seus cotidianos, seja da exploração sexual ou de abusos ainda mais extremos como o estupro. Histórias sem rodeios, cheias de indignação que querem dar voz aos que eram obrigados a silenciar.

O conto que transcrevo foi, como toda sua produção literária, originalmente escrito em urdu. Trata-se de uma tradução livre a partir da versão em inglês de Khalid Hasan. O quarto da Luz Brilhante traz um sabor do que se pode esperar do cardápio literário desse gênio da literatura indo-paquistanesa e grande humanista.





O Quarto da Luz Brilhante


Ele ficou em silêncio perto de um poste de luz nos Jardins Qaiser, pensando em como tudo parecia tão desolado. Algumas tongas(4) aguardavam clientes que não apareciam nem estavam à vista.

Há alguns anos, este costumava ser um lugar tão alegre, cheio de homens e mulheres animados, felizes e despreocupados, mas tudo parecia ter ido por água abaixo. A área agora estava cheia de arruaceiros e vagabundos sem ter para onde ir. O bazar ainda estava lotado, mas havia perdido seu brilho. As lojas e prédios pareciam abandonados e sujos, olhando uns para os outros como viúvas de olhos vazios.

Ele ficou ali parado, imaginando o que havia transformado os outrora elegantes Jardins Qaiser em uma favela. Para onde tinham ido toda a vida e a agitação? Aquilo o fazia lembrar uma mulher de quem se havia retirado toda a maquiagem.

Recordou-se de que, há muitos anos antes, quando se mudara de Calcutá para Bombaim a trabalho, tentara em vão, durante semanas, encontrar um quarto naquela área. Não havia nada.

Como os tempos haviam mudado. A julgar pelo tipo de gente nas ruas, qualquer um podia alugar um local ali agora — tecelões, sapateiros, merceeiros.

Olhou ao redor novamente. O que costumava ser escritórios de empresas cinematográficas agora eram quartos com fogões, e onde as pessoas elegantes da cidade costumavam se reunir à noite passou a ser quintais com lavanderias.

Não foi nada menos que uma revolução, mas uma revolução que trouxe decadência. Nesse meio tempo, ele deixou a cidade, mas soube por meio de reportagens de jornais e amigos que ficaram para trás, o que aconteceu com Qaiser Gardens durante sua ausência.

Houve tumultos, acompanhados de massacres e estupros. A violência que Qaiser Gardens testemunhou deixou sua horrenda marca em tudo. Os outrora esplêndidos prédios comerciais e casas residenciais agora pareciam sórdidos e imundos.

Disseram-lhe que, durante os tumultos, mulheres foram despidas e seus seios decepados. Seria então surpreendente que tudo aqui parecesse nu e devastado?

Ele estava lá esta noite para buscar um amigo que havia prometido encontrar-lhe um lugar para morar.

Qaiser Gardens costumava ter alguns dos melhores restaurantes e hotéis da cidade. E se alguém se interessasse por isso, as melhores garotas de Bombaim podiam ser obtidas graças aos bons serviços dos cafetões de alta classe da cidade que costumavam frequentar o local.

Lembrou-se dos bons momentos que tivera ali naqueles dias. Pensava com nostalgia nas mulheres, na bebida, nos elegantes quartos de hotel! Por causa da guerra, era quase impossível conseguir uísque escocês, mas ele nunca tivera que passar uma noite sem beber. Qualquer quantidade de uísque escocês caro era sua, bastava pedir, desde que pudesse pagar.

Olhou para o relógio. Eram quase cinco horas. As sombras da noite de fevereiro começavam a se alongar. Amaldiçoou o amigo que o fizera esperar. Estava prestes a entrar em um lugar à beira da estrada para tomar uma xícara de chá quando um homem malvestido se aproximou dele.

'Quer alguma coisa?', perguntou ao estranho.

'Sim', respondeu em um tom conspiratório.

Ele o confundiu com um refugiado que estava passando por dificuldades e queria dinheiro. "O que você quer?", perguntou.

Não quero nada. Ele fez uma pausa, aproximou-se e disse: 'Precisa de alguma coisa?'

'O quê?'

'Uma garota, por exemplo?'

'Onde ela está?'

Seu tom não era nada encorajador para o estranho, que começou a se afastar. 'Parece que você não está realmente interessado.' 

Ele o interrompeu. Como sabe? O que você pode fornecer é algo de que os homens sempre precisam, mesmo na forca. Então, olhe, meu amigo, se não for muito longe, estou preparado para ir com você. Viu que eu estava esperando por alguém que não apareceu?' 

O homem sussurrou: 'É perto, muito perto, eu lhe asseguro.'

'Onde?'

'Aquele prédio a nossa frente.'

'Você quer dizer aquele?', perguntou ele.

'Sim.'

'Devo ir com você?'

'Sim, mas, por favor, ande atrás de mim.' Eles atravessaram a rua. Era um prédio decadente, com o gesso descascando das paredes e montes de lixo espalhados na entrada.

Atravessaram um pátio e depois um corredor escuro. Parecia que a construção havia sido abandonada em algum momento antes da conclusão. Os tijolos das paredes estavam sem reboco e havia pilhas de cal misturada com cimento no chão.

O homem começou a subir um lance de escadas em ruínas. "Por favor, espere aqui. Volto em um minuto", disse ele.

Ele olhou para cima e viu uma luz brilhante no final do patamar.

Esperou alguns minutos e então começou a subir as escadas. Ao chegar ao patamar, ouviu o homem que o havia trazido gritando: "Você vai se levantar ou não?" Uma voz de mulher respondeu: "Deixe-me dormir."

O homem gritou novamente: "Você me ouviu, vai se levantar ou não? Ou você sabe o que vou fazer com você."

A voz da mulher ecoou novamente: "Você pode me matar, mas eu não vou me levantar. Pelo amor de Deus, tenha misericórdia de mim.”

O homem mudou de tom: "Querida, não seja teimosa. Como vamos ganhar a vida se você não se levanta?"

"Que se dane a vida. Vou morrer de fome, mas, pelo amor de Deus, não me tire da cama. Estou com sono”, respondeu a mulher.

O homem começou a rugir de raiva: "Então você não vai sair da cama, sua vagabunda, sua vagabunda imunda...!" 

A mulher gritou de volta: "Não vou, não vou, não vou!”

O homem mudou de tom novamente: "Não grite assim. O mundo inteiro pode te ouvir. Vamos, levante-se. Poderíamos ganhar trinta, até quarenta rúpias."

A mulher começou a choramingar: "Eu imploro, não me faça ir. Você sabe quantos dias e noites eu fiquei sem dormir. Tenha pena de mim, por favor."

‘Não vai demorar muito,’ disse o homem, ‘só algumas horas e depois você pode dormir o quanto quiser. Olha, não me faça usar outros métodos para te persuadir.

Houve um breve silêncio. Ele atravessou o patamar na ponta dos pés e espiou o cômodo de onde vinha a luz muito forte. Não era um cômodo grande. Havia algumas panelas vazias no chão e uma mulher esticada no meio, com o homem com quem ele viera, agachado sobre ela. Ele apertava as pernas dela e dizia: "Seja uma boa menina agora. Prometo que voltaremos em duas horas e então você poderá dormir à vontade."

Ele a viu a se levantar de repente como um foguete no qual foi riscado um fósforo. "Tudo bem", disse ela, "eu vou." 

De repente, ele sentiu medo e desceu as escadas correndo. Queria se distanciar o máximo possível daquele lugar e de si mesmo, que se abrisse um grande espaço entre ele e aquela cidade.

Pensou na mulher que queria dormir. Quem era ela?

Por que estava sendo tratada com tanta desumanidade?

E quem era aquele homem? Por que o quarto era tão incessantemente iluminado? Os dois moravam lá? Por que moravam ali?

Seus olhos ainda estavam parcialmente ofuscados pela luz forte que vinha da lâmpada naquele quarto horrível lá em cima. Não conseguia enxergar direito. Será que não podiam ter colocado uma iluminação mais suave naquele quarto? Por que uma luz tão nua e impiedosamente brilhante?

Houve um barulho no escuro e um movimento. Tudo o que ele conseguia ver eram duas silhuetas, uma delas obviamente a do homem que ele havia seguido até aquele lugar horrível.

'Dê uma olhada', disse o homem.

'Sim', respondeu ele.

‘O que acha dela?'

'Está bem.'

'São quarenta rúpias.'

'Tudo bem.'

'Posso ficar com o dinheiro?'

Ele não conseguia mais pensar com clareza. Colocou a mão no bolso, tirou um punhado de notas e as entregou.

'Conte-as', disse.

'Tem cinquenta aí.'

‘Pode ficar.'

‘Obrigado.’

Ele sentiu vontade de pegar uma pedra bem grande e esmagar sua cabeça.

Por favor, leve-a, mas seja gentil com ela e traga-a de volta em algumas horas.

‘Certo.’

Ele saiu do prédio com a mulher e encontrou uma tonga esperando do lado de fora. Pulou rapidamente para o banco da frente. A mulher sentou no banco de trás.

A tonga começou a se mover. Pediu que o condutor parasse em frente a um hotel decadente e vazio. Eles entraram. Primeiramente olhou para a mulher. Os olhos dela estavam vermelhos e inchados. Ela parecia tão cansada que temeu que ela caísse no chão.

'Levante a cabeça', disse ele.

'O quê?', ela respondeu assustada.

'Nada, tudo o que eu disse foi para levantar a cabeça.'

Ela olhou para cima. Seus olhos eram como buracos vazios cobertos com pimenta moída.

'Qual é o seu nome?', perguntou.

‘Deixa pra lá.’ Seu tom era ácido.

‘De onde você é?’

‘O que isso importa?’

'Por que você é tão hostil?’

A mulher agora estava bem desperta. Ela o encarou com seus olhos vermelho-sangue e disse: ‘Termine seus negócios porque eu preciso ir?’

‘Para onde?’

‘Para onde você me pegou.’ Respondeu indiferente.

‘Você está livre para ir.’

‘Por que você não faz logo o que tem que fazer? Por que está tentando me ridicularizar?’

‘Não estou tentando ridicularizar você. Na verdade, sinto pena de você’, disse-lhe com uma voz simpática.

Não preciso de sua simpatia. Faça o que quer fazer, o motivo pelo qual tenha me trazido aqui e depois me deixe ir’, disse quase gritando.

Ele tentou colocar a mão em seu ombro, mas ela a afastou rudemente.

'Me deixe em paz. Não durmo há dias. Estou acordada desde que cheguei àquele lugar.'

'Você pode dormir aqui.'

'Eu não vim aqui para dormir. Esta não é a minha casa.'

'Aquele quarto é a sua casa?'

Essa pergunta pareceu enfurecê-la ainda mais.

'Pare com essa bobagem. Eu não tenho casa. Faça o seu trabalho ou me leve de volta. Você pode ter seu dinheiro devolvido por não ter feito nada, por isso...'

'Tudo bem, eu levo você de volta', disse ele.

No dia seguinte, ele contou sobre o ocorrido ao amigo que não tinha comparecido ao encontro. Ele ficou bastante comovido. 'Ela era jovem?', perguntou.

'Não sei', respondeu. 'O fato é que eu realmente quase nem olhei para ela. Eu só tive um desejo selvagem de matar aquele homem que me levou até ela.'

Os dois se separaram porque o amigo dele precisava ir a algum outro lugar. Ele ficou se sentindo morbidamente deprimido.

Caminhou em direção aos Jardins Qaiser, vasculhando atentamente a área, procurando por aquele homem, mas ele não se encontrava em lugar algum. Já era noite. Do outro lado da rua, podia ver o prédio. Involuntariamente, começou a caminhar em sua direção.

Atravessou o pátio e se viu ao pé da escada em ruínas. Olhou para cima. Havia uma luz forte no quarto no topo do patamar. Começou a subir, um degrau de cada vez. Tudo estava muito silencioso. Nenhuma voz, nada.

A porta estava aberta. Ele espiou. A primeira coisa que o atingiu foi a luz ofuscante da lâmpada nua. Virou o rosto abruptamente para afastar aquele brilho dos olhos.

Protegendo-os com a mão, olhou pela porta aberta novamente. Uma mulher dormia no chão, com o rosto coberto por um lençol fino, o peito subindo e descendo suavemente enquanto respirava ritmicamente. Ele deu um passo para dentro do quarto e quase gritou.

Ao lado da mulher, no chão descoberto, jazia um homem, com a cabeça esmagada com um tijolo ensanguentado.

Ele saiu correndo, escorregou e caiu escada abaixo. Mas não parou para examinar os ferimentos. Como um louco, continuou correndo pátio afora e entrou na rua escura.


Fortaleza (CE) setembro de 2025

Antonio C. R. Tupinambá

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(1) Rana, D.  Inside Saadat Hasan Mantos World. Disponível em:  <https://kalampedia.org/2020/12/10/inside-saadat-hasan-mantos-world/>. Acesso em: set. 2025.

(2) idem.

(3) Manto, S. H. A. The room with the Bright Light. In: A Wet Afternoon. Translated by Khalid Hasan. Islamabad (Pakistan): Alhamara, p. 173-179.

(4)  Veículo de duas rodas com tração animal.