A imigração deve, assim, ser entendida como um grito contínuo de manutenção da sobrevivência frente a uma ordem hegemônica que invade, arde e maltrata a condição básica da existência-sobrevivência humana.
Karen Honório(2)
Inimaginável? Sim, a Venezuela é, comparativamente, o país que mais “produz” imigrantes no mundo atual. Durante os últimos dois anos venezuelanos superaram até mesmo o fluxo de um país em guerra há mais de dois anos, a Ucrânia: Os dados revelam que a crise venezuelana supera o drama europeu que veio com a invasão russa à Ucrânia.(4)
Aos 120 milhões de pessoas que já foram obrigados a fugir de suas casas e cidades, até maio de 2024 (dados da ONU), junta-se um novo grupo de pessoas oriundas de Gaza, Sudão e Mianmar. Os maiores fluxos migratórios de refugiados estão entre afegãos com 6,4 milhões, sírios (6,4 milhões), Venezuelanos (6,1 milhões, 97% desses se encontram na própria América Latina), ucranianos (6 milhões) e sudaneses com 1,5 milhão. Levando-se em conta o atual movimento migratório involuntário ao redor do mundo e, ao contrário do que afirmam “os partidos populistas e xenófobos da Europa, o maior fluxo não está nos países ricos: 75% dos deslocados e refugiados encontram abrigos em outros países pobres. Juntos, eles representam apenas 20% do PIB mundial e acolhem três quartos dos estrangeiros”.(5)
Se fosse uma população de um país, seria o quarto maior das Américas, perdendo apenas para os Estados Unidos, Brasil e México. Seria um país com quase o dobro dos habitantes da Argentina, mais que o dobro do Canadá e 30 milhões a mais que a Colômbia. Fosse a população de uma nação européia, se colocaria imediatamente após a Alemanha, ocupando o segundo lugar em número de habitantes no velho mundo. Em 2023, esse número da população global deslocada correspondia à população de um país como o Japão, que equivale ao 12º maior país do mundo em população. No Brasil, um país de terceiro mundo que já não estava mais habituado a ter fluxos migratórios em sua direção, este número de refugiados chega aos 600 mil. Entre os novos fatores que “empurram” as pessoas para fora de suas casas e de suas cidades estão a crise climática e seus efeitos progressivos e desproporcionais, atingindo ainda mais pessoas desfavorecidas economicamente.
Caso consideremos todos os países no mundo seriam apenas 19 com um número maior de habitantes do que o de refugiados. Essas comparações revelam a dimensão da tragédia humana em que vive grande parte dos 80 milhões de imigrantes, um número que só cresce a cada ano (dados de 2020). Há uma década havia a metade dessa cifra atual. A quantidade de pessoas que fogem ao redor do planeta nunca foi tão grande. Muitas delas estão em fuga dentro do próprio país, abandonam zonas de perigo, com guerra, fome, perseguição religiosa e por conta de outros males que têm, principalmente na ação (des)humana, seus fundamentos.
Sul-sudaneses em fuga.
Foto: Zohra Bensemra/REUTERS
A situação se tornou então ainda mais complexa devido à gravidade da pandemia de covid-19 global. Somente durante o ano 2019 se somaram quase nove milhões de pessoas refugiadas, segundo a ACNUR, agência da ONU para refugiados. Esse crescimento vertiginoso dos migrantes e refugiados impediu qualquer comemoração em 20 de junho, Dia Mundial do Refugiado. Em lugar de comemoração apenas uma questão pode ser colocada: O que fazer para minorar o sofrimento e a tragédia social que se abate sobre estes “condenados da terra”. Dentre os muitos países donde se observa o deslocamento massivo da população pode-se destacar o Congo, o Iêmen e a Síria, além da região conhecida como Sahel, uma faixa de transição no continente africano, região semiárida se estendendo da Mauritânia ao Sudão, compreendendo partes do Senegal, Mali, Burkina Faso, Argélia, Níger, Nigéria, Chade, Camarões, Sudão do Sul, Etiópia e Eritreia. Em Burkina Faso, cerca de 80 mil pessoas foram forçadas a se deslocar dentro do próprio país em 2019, número que se elevou para quase 850 mil nos dias de hoje, nesse caso, a maioria foge de milícias jihadistas. Na República Democrática do Congo (também em Mianmar), milhões de pessoas foram deslocadas internamente nos últimos anos devido a combates violentos. Em Mianmar (antiga Birmânia), a maior onda de refugiados é formada pelo povo Rohingya que fugiu do país em 2017, resultando no maior êxodo humano na Ásia desde a Guerra do Vietnã. Segundo a ONU, mais de 700 mil pessoas fugiram ou foram expulsas do estado de Rakhine para se refugiar no vizinho Bangladesh. A ACNUR calcula que apenas em Burkina Faso ocorreu um total de 300 mil novos deslocamentos internos em 2020. Nas Américas, é na Venezuela, onde se observou a grande maioria de pessoas fugindo para outros países. Calcula-se que mais de 3,7 milhões de venezuelanos abandonaram suas casas em busca de asilo em outros países de fronteira ou alhures. Até 2022 mais de 6 milhões de venezuelanos fugiram de seu país em meio à deterioração das condições de vida. “A deterioração das condições econômicas, a escassez de alimentos e o acesso limitado aos cuidados de saúde estão cada vez mais levando os venezuelanos a sair, e uma crescente comunidade venezuelana nos Estados Unidos também é um atrativo, disse Doris Meissner, que dirige o trabalho de política de imigração dos EUA no Instituto de Política de Migração em Washington. Em julho [de 2022], a Patrulha de Fronteira dos EUA prendeu 17.603 migrantes venezuelanos na fronteira EUA-México, marcando um aumento em relação a junho, de acordo com os últimos dados disponíveis da agência. Os venezuelanos também estão chegando a Washington DC e Nova York em ônibus contratados pelo estado do Texas. Frequentemente procuram asilo político”. A ACNUR também constatou que mais de dois terços dos refugiados internacionais vêm de apenas cinco países: além da Venezuela, há 6,6 milhões da Síria, 2,7 milhões do Afeganistão, 2,2 milhões do Sudão do Sul e, no caso de Mianmar 1,1 milhão. No país asiático o povo Rohingya é vítima de uma “limpeza étnica” que resultou no seu deslocamento forçado em massa rumo a Bangladesh. Voltando ao caso do Sudão, desde abril de 2023 registra-se um crescimento significativo de deslocamentos internos e externos devido ao conflito devastador que persiste: mais de 7,1 milhões de novos deslocamentos foram registrados no país, com outros 1,9 milhão para fora dele.
No entanto, a maioria dos que fogem dos seus países de origem ao redor do mundo não chega tão longe: um grande número passa a viver no país mais próximo, o vizinho cuja fronteira é alcançada por longas caminhadas ou por meio de transporte acessível, mesmo que perigoso ou, para os já depauperados migrantes, muito caro. “E assim é que a vasta maioria — 85 por cento — de todos os refugiados procuram proteção em países pobres. 80% de todas as pessoas deslocadas estão em regiões ou países afetados pela desnutrição”.(6) Há países que receberam muitos refugiados e já não contam mais com um retorno iminente desses para seu lugar de origem, diferentemente do que ocorria em outras épocas (décadas atrás), quando ainda se via a migração de retorno. “Era diferente para os refugiados nos anos 1990, quando a guerra grassava nos Bálcãs, havia uma disputa pela fronteira entre Mali e Burkina Faso ou uma guerra civil na República do Congo. Naquela época, 1,5 milhão de pessoas podiam voltar para casa todos os anos, agora são apenas 400.000 os que conseguem voltar”.(7)
O mundo caquinho de vidro
Tá cego do olho, tá surdo do ouvido
O mundo tá muito doente
O homem que mata, o homem que mente (8)
A guerra na Síria já se prolongava por nove anos (começou em 2011) quando transformava mais de 13 milhões de pessoas em refugiados, em busca de asilo, além dos deslocados internamente. De um lado Venezuela, Síria, Afeganistão, Sudão do Sul e Mianmar, os cinco países que representam dois terços dos refugiados no mundo e do outro, na lista de países que mais recebem refugiados, a Alemanha, ocupando uma posição de destaque. No entanto, outros países que têm sérios problemas políticos e econômicos, diferentemente dos privilegiados do Primeiro Mundo, também entraram na rota dos sem abrigo. Para os refugiados parece restar uma única saída: trocar a pobreza do seu país para cair na extrema pobreza e desolação além fronteira. Muitas vezes o pouco que têm os anfitriões, não chega para ser dividido, gerando intolerância e xenofobia em uma população pouco esclarecida e já cansada das próprias mazelas domésticas, o que complica ainda mais a vida dos “recém-chegados”. Muitos transitam entre países fronteiriços, outros entre regiões, nesse caso deslocamentos internos no próprio país. Grandes fluxos de estrangeiros terminam ficando nos países que deveriam ser abrigo temporário como Turquia, Colômbia, Paquistão e Uganda; desses, apenas uns poucos conseguem um dia retornar ao país ou região de origem. Na Turquia mais de 3,6 milhões de sírios; na Colômbia, venezuelanos buscam abrigo depois de empurrados do seu país em razão da situação política e econômica: “A Colômbia é a mais atingida pela crise da Venezuela. Devido às grandes incertezas socioeconômicas e aos surtos regulares de violência no país vizinho, a Colômbia acolhe um grande número de refugiados venezuelanos. Em abril de 2020, havia mais de 1,8 milhão. Além disso, até setembro de 2019, quase quinhentos mil venezuelanos usaram a Colômbia como país de trânsito para chegar ao Equador ou outros países do sul”.(9) A saga venezuelana não parou por aí. Em dezembro de 2020 pelo menos vinte e um venezuelanos refugiados morreram ao tentar chegar de barco a Trinidad e Tobago. Pode haver ainda mais vítimas no grupo que saiu da cidade de Güiria, no estado venezuelano de Sucre, rumo à ilha caribenha a cerca de 15 km da costa venezuelana. Em solo paquistanês e iraniano se encontram os quase 2,4 milhões de refugiados afegãos enquanto 1,14 milhão de refugiados vivem em Uganda, país africano que passou por complicado processo eleitoral e se encontra com sérios problemas na política doméstica. O Iêmen, apesar de ser um país inseguro diretamente atingido por uma longa guerra civil com ingerência de outros países como Arábia Saudita e Estados Unidos, continua sendo um lugar de trânsito com migrantes nas duas direções: os que o deixam por conta da guerra e os que lá chegam para buscar outros países na região. É surpreendente que, "embora milhares de pessoas estejam fugindo do Iêmen para o nordeste da África (cerca de 87 mil [em 2016]), mais pessoas ainda estão indo na outra direção, com mais de 117 mil passando pelo Golfo de Áden e Mar Vermelho em direção a este lugar de insegurança... Desde 2013, cerca de 290 mil refugiados e migrantes desembarcaram na costa iemenita. Quase 80% destes eram etíopes, e o restante, somalis. A maioria viaja para o Iêmen na esperança de usar o país como um ponto de trânsito, enquanto outros desejam ficar no Iêmen, e frequentemente desconhecem os perigos envolvidos. Os números mais recentes representam um aumento constante dos movimentos irregulares da África para o Iêmen – de 65.000 em 2013, 91.600 em 2014 e 92.500 em 2015, respectivamente. Tudo isso apesar do agravamento do ambiente no Iêmen, onde uma guerra em larga escala está em curso desde 2015".(10)
Nos tempos da pandemia de covid-19 os problemas se agravaram e tornaram a luta contra o vírus ainda mais desafiadora. Estima-se que 70 milhões de migrantes sejam atingidos pela pandemia, cujos reflexos observam-se sobretudo no mercado de trabalho, no acesso à saúde pública e no controle de fronteiras. Como lidar com a necessidade de cuidados exigidos pela pandemia em situação de fuga e na vida precária em acampamentos de refugiados, em abrigos lotados ou até mesmo na rua? Em países mais pobres, acampamentos eram erguidos em regiões muitas vezes de difícil acesso para grupos de apoio. Nesses acampamentos não há água potável, a alimentação é escassa e faltam ainda outros recursos básicos para a sobrevivência, já difíceis de se obter mesmo em tempos anteriores à pandemia. Pergunta-se sobre quem deve pagar para que os países anfitriões possam continuar seu trabalho junto aos refugiados que recebem. Naquela altura, os refugiados tinham que enfrentar uma emergência dupla e inimaginavelmente maior: conflito, deslocamento, além da pandemia Covid-19 e crise econômica global que foi por ela desencadeada, conforme afirmou David Miliband, presidente do Comitê Internacional de Resgate (IRC). Aqueles países nos quais vivia a maioria dos refugiados e pessoas deslocadas internamente já lutavam contra a Covid-19 com recursos extremamente limitados. Em 2020, o número crescente de refugiados serviu de alerta para todos os governos e órgãos internacionais.(11)
A então nova realidade dos refugiados em um cenário de pandemia acrescentou outras dificuldades aos órgãos que tentavam ajudar os atingidos e também aos países anfitriões, muitas vezes já sobrecarregados com problemas domésticos. Já não se tratava, segundo Filippo Grandi,(12) como em outros períodos, de uma situação temporária e reversível, principalmente por conta dos conflitos nas regiões de origem que forçam a fuga, não serem debelados a tempo, impedindo qualquer tentativa ou plano de retorno. Em países do chamado Terceiro Mundo que recebem grandes contigentes de imigrantes, a sobrevivência mínima é o desafio maior. E mesmo em países mais estruturados, poucas são as experiências que trazem bons resultados, por ausência de implementação de uma política de integração satisfatória para os que chegam já desesperançosos, sofridos, com pouca fé no futuro e quase sem chances de retorno ao país de origem. Sem lar, sem trabalho e muitas vezes deixando para trás entes queridos, os imigrantes têm que enfrentar novas barreiras em lugares desconhecidos, uma torre de Babel, um mundo repleto de desafios, com muito medo e dúvida e sem saber se haverá, pelo menos, algum acesso a alimentação, moradia, educação, saúde e trabalho.
A difícil saga continua mesmo depois de ter, a duras penas, sobrevivido à longa e arriscada jornada. Uma experiência de imigração em massa que não foi esquecida ocorreu na segunda década deste século e vem da Europa, mais especificamente da Alemanha. Milhares de pessoas passaram por várias fronteiras até aportar no que consideravam o solo mais seguro para conquistar e superar o horror da guerra que haviam deixado para trás. Algo novo estava para acontecer e deveria superar muitos fiascos em termos de política de imigração, que até então havia sido levada a cabo em diferentes países, ainda que ricos e desenvolvidos. O grande fluxo migratório na Europa em consequência da guerra na Síria com destino a Alemanha é o que queremos trazer para o debate. A reação do governo alemão, por meio de sua chanceler Angela Merkel, diferiu de experiências anteriores de outros governos, como por exemplo naquela não tão bem sucedida após a onda de imigração de uma Iugoslávia em colapso nos anos 1990. Isso a despeito do que gerou a política de enfrentamento dessa questão migratória por Merkel no âmbito dos diferentes partidos e setores da população. Com o novo contingente de imigrantes chegando à Alemanha a partir de 2015, as decisões do governo que foram tidas como favoráveis à imigração levaram a disputas internas com severas críticas de vários setores da sociedade e da oposição parlamentar. Essa política de imigração capitaneada pela própria chanceler resultou no aumento significativo e no fortalecimento de grupos de extrema direita e proto-fascistas, em busca de se fortalecer e desestabilizar a democracia alemã. Um novo movimento impulsionava a xenofobia e o fascismo e cobrava de Merkel e seu gabinete uma mudança de rumo na nomeada “política de boas vindas” aos recém-chegados, por eles já declaradas “personae non gratae”. O Partido de extrema-direita Alternative für Deutschland (AfD) passou a criticar duramente a política alemã de refugiados, indo contra a cultura de boas-vindas de 2015 que acolheu os milhares de imigrantes vindos pela rota dos Bálcãs. “Em 2016, o partido populista de direita obteve um resultado recorde em várias eleições estaduais. Dois anos depois, se tornaria o partido de oposição mais forte do Bundestag”.(13) As críticas à chanceler não ficaram circunscritas a seus opositores e cresceram entre os próprios aliados. “Angela Merkel também afirmou como uma autocrítica: 'um ano como 2015 não deve se repetir’. No entanto, o país pode se orgulhar de 'ter dominado tão bem esse dramático desafio humanitário’”.(14) Dessa atitude da governante alemã resultou uma nova política para refugiados que se diferenciava daquela aplicada em outros países, inclusive em países ricos europeus. Ainda que paralelamente ao que se vê como uma política anti-refugiados que foi se formando para evitar a repetição de 2015, houve uma mudança de paradigma em comparação com fases anteriores na forma de tratar o problema dos imigrantes. Pressupunha-se que aqueles imigrantes dos anos 1990 voltariam para seus países de origem ou se necessário seriam deportados. Um projeto que fracassou e teve amargas consequências. Aqueles que ficavam, e eram muitos, saiam do radar das autoridades e tinham que se virar sozinhos, inclusive na busca de trabalho. Quando conseguiam algum, geralmente era de baixa qualidade, mal remunerado ou apenas de subsistência. Um erro que não se repetiu com o fluxo migratório após 2015. Uma rede de integração foi construída para grande parte dos recém-chegados, particularmente útil na entrada ao mercado de trabalho desses neófitos. A oferta de cursos de línguas, qualificação para o trabalho e ajuda para a adaptação à nova vida, promoção do reconhecimento de competências formais e informais constituíram-se em um conjunto de instrumentos que eram ignorados nas experiências com aqueles que haviam chegado em anos anteriores.(15) “Semelhante à década de 1990, essa situação desencadeou um intenso debate social sobre como lidar com a imigração humanitária e a (re)orientação da política de refugiados. Ao contrário de há 20 anos atrás, os políticos e um grande número de atores sociais estão pensando mais em melhorar o sistema de acolhimento e cuidado e a possibilidade de participação precoce na sociedade. No contexto das mudanças demográficas, o potencial dos refugiados também está sendo, cada vez mais, melhor analisado. Em contraste com a década de 1990, a atual imigração de refugiados está encontrando amplo apoio e um alto grau de ajuda e compromisso por parte da população, apesar de ainda haver reações cada vez mais xenófobas e às vezes violentas”.(16)
O governo conseguia, a despeito do imbróglio político, a estabilidade necessária para superar os erros dos anos 1990 com a acolhida dos imigrantes majoritariamente oriundos da antiga Iugoslávia. Um novo paradigma foi criado para receber os recém-chegados, principalmente os que vinham das longas e perigosas jornadas por terra desde uma Síria em guerra civil, via Turquia, passando ainda por fronteiras marítimas e terrestres. Enquanto a Alemanha desenvolvia essas novas estruturas para a integração dos imigrantes, principalmente visando seu ingresso no mercado de trabalho para uma vida futura mais sólida, outros países ainda patinavam em suas tentativas repetidas ou amadoras de fazer com que os imigrantes fossem, pelo menos, aceitos e evitar ataques da população, cética e influenciada pelos movimentos locais e partidos de extrema-direita. Muitos países do Leste europeu, como Hungria, Romênia, Bulgaria, Polônia recusaram-se a receber refugiados e parte deles, inclusive construíram barreiras físicas para impedir a entrada ou passagem dos refugiados desesperados por seus territórios. Aqueles que conseguiam entrar eram de preferência enviados em comboios para outros países, principalmente para a Alemanha. Também em outras nações europeias como a Grã-Bretanha e países escandinavos houve barreiras física e política à acolhida dessas pessoas. A situação piorava dramaticamente: na Síria em 2015, mais de quatro milhões de pessoas fugiam rumo à Europa, acrescentando-se a esse contingente aquelas vindas de regiões como Eritreia, Iraque ou Norte da África, pelo rota do Mediterrâneo. Esse quadro configurava com clareza uma iminente crise humanitária.(17) Fato é que até os dias atuais isso ainda se reflete na sociedade e na política, principalmente dos países que integram a União Europeia, gerando xenofobia e descontentamento na população. Desde então observa-se o crescimento vertiginoso dos partidos de extrema direita com pautas racistas em quase todos esses países. Na Alemanha, por exemplo, a extrema direita avançou e ocupou um número significativo de assentos no Parlamento Europeu em 2024. O AfD, partido que flerta com o neo-nazismo, obteve nessa última votação seu melhor resultado histórico nas eleições europeias. Um dos motivos de seu crescimento pode ser explicado pela xenofobia, especialmente antimuçulmana. A França, cujo presidente dissolveu a Assembleia Nacional, o fez por ter perdido a eleição para o Parlamento Europeu para a sigla de extrema direita “Reagrupamento Nacional”. Há um notório avanço do neoliberalismo e da repressão contra movimentos populares e, principalmente, contra a imigração em vários países do bloco, nomeadamente, França, Itália, Alemanha, refletido no crescimento que se viu da extrema direita no Parlamento Europeu. Para o jornalista Jamil Chade, correspondente brasileiro em Genebra, na Suíça “essa onda de extrema direita na Europa é reflexo de uma ‘crise existencial’ que assombra o continente desde a derrocada financeira de 2008”.(18) “Last but not least”, em contraste, boas notícias vêm da Bélgica e da Escandinávia, onde, no caso do primeiro país, o Partido dos Trabalhadores conquistou um maior espaço nessas últimas eleições e no bloco escandinavo, partidos como Aliança de Esquerda da Finlândia, Partido Popular Socialista da Dinamarca e o Partido de Esquerda da Suécia surpreenderam com seus bons resultados eleitorais.
Dando um salto até os Estados Unidos, as medidas anti-imigração ainda no governo de Donald Trump se encontravam mais próximas do que se pode chamar de uma monstruosidade nazista. Não pode ser esquecido que em 2018 foi criada no seu governo a política de “tolerância zero” resultando na separação de mais de 2.600 crianças dos seus pais. Depositadas em abrigos ou acolhidas por famílias locais, muitas delas ficavam a centenas de quilômetros de distancia de seus parentes. Tratava-se de crianças filhas de imigrantes que tentavam atravessar a fronteira sul estadunidense. A política de separação de membros de uma família para desencorajar a imigração foi basilar no governo Trump e resultou na desestruturação da vida de muitas delas. Cerca de 545 das crianças nunca conseguiu localizar seus pais novamente. “Os advogados da União Americana das Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) denunciaram a um tribunal da Califórnia que a política de tolerância zero adotada pelo Governo de Donald Trump para a imigração gerou uma situação terrível para essas crianças, que foram abandonadas em um país estrangeiro e sem seus pais. A maioria dos adultos foi deportada, principalmente rumo aos países da América Central”.(19) A cinco meses da eleição presidencial estadunidense de 2024, Joe Biden (Democratas) muda sua abordagem em relação à imigração, contrastando com suas críticas anteriores aos esforços de Trump para restringir o asilo por meio de uma ordem executiva que impõe uma restrição temporária ao asilo na fronteira entre os EUA e o México: “A medida, que adota uma abordagem mais restritiva em relação à fronteira, é semelhante a uma tentativa do ex-presidente Donald Trump em 2018, barrada pela justiça”.(20) Não há dúvidas que tal medida sobre a questão migratória, um dos principais temas debatidos na disputa à Casa Branca e uma das principais críticas dos republicanos contra a administração do democrata, é uma atitude eleitoreira mas que atinge em cheio os fluxos migratórios já duramente combatidos e penalizados.
Distante da Europa e mais a sul dos Estados Unidos houve um fluxo migratório regional que chegou também ao Brasil. A maioria desses imigrantes, venezuelanos, buscava se instalar principalmente no estado de Roraima, na região norte do país. Depois de uma viagem que podia ser feita até mesmo a pé, se deparava com as dificuldades de uma comunidade alijada de conhecimento e de experiência mínima para lidar com essa nova realidade. No Brasil, o quinto destino mais procurado pelos venezuelanos, o afluxo desses imigrantes foi maior pela fronteira com o estado de Roraima, onde buscavam por refúgio; ou uma permissão para permanecer no Brasil na condição de refugiados. Desse novo tipo de imigração em alto contigente como ocorreu com o inesperado fluxo de pessoas oriundas da Venezuela, os governantes e políticos se mostraram incapazes de cumprir ritos humanitários e dispensar um tratamento digno e igualitário aos imigrantes, um princípio já consagrado em nossa Carta Magna.(21)
Há muito desconhecimento acerca da legislação brasileira nesse âmbito, que doutra forma poderia ter servido de proteção a esses imigrantes, permitindo sua regularização no Brasil, país anfitrião. O preconceito, o estigma e a desinformação se somam a uma eventual inexperiência em lidar com a imigração, levando os políticos locais e governantes a agir apenas intuitivamente ou com direcionamento político, o que agravou a situação. Políticos da região de outras cidades brasileiras para as quais se dirigem os migrantes, em vez de buscar meios humanitários, abandonam-os à própria sorte, após conseguirem atravessar a fronteira terrestre em massa, deixando-os susceptíveis a ataques e hostilidade de setores desinformados ou mal intencionados da população. “[…] as oligarquias políticas locais usam o preconceito para se livrar de críticas a respeito da precariedade dos serviços de saúde e segurança no estado, inflando a população, que já vive em cidades pobres e precárias, contra os refugiados”.(22) O recurso a uma retórica xenófoba por autoridades atende muito mais a interesses políticos de grupos específicos e se distancia da necessária construção de uma política de Estado para ajudar na integração dos que chegam em situação de desespero. Esta realidade não é um “privilégio” de determinados países, é muito mais uma regra seguida por quase todos no enfrentamento desse movimento migratório crescente em todo o mundo, e que deve ser denunciado e combatido.
Palestinos em fuga na Cidade de Gaza após ataques israelitas.
Foto: Mahmud Hams/AFP
Não podemos esquecer as razões de um dos maiores fluxos migratórios forçados que ora assola o Oriente Médio: “A UNRWA [United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East] estima que, até o final do ano passado, cerca de 1,7 milhão de pessoas (75% da população) foram deslocadas na Faixa de Gaza pela violência catastrófica, sendo que alguns desses mesmos refugiados tiveram que fugir várias vezes. A Síria continua tendo a maior crise de deslocamento do mundo, com 13,8 milhões de pessoas deslocadas à força dentro e fora do país”. Como afirmou Filippo Grandi, do Alto Comissário da ONU para Refugiados, há uma dimensão microssocial que geralmente é ignorada: “por trás desses números gritantes e crescentes estão inúmeras tragédias humanas”. Depois de cinco meses de conflito, Israel prossegue com os bombardeios contra o território palestino e acirra a crise humanitária e da fome que assola a Faixa de Gaza, território sitiado por Israel desde 9 de outubro. Uma guerra atual que começou em 7 de outubro de 2023, após o ataque, sem precedentes, do Hamas em território israelense, quando 1.160 pessoas foram assassinadas, a maioria civis (segundo a AFP). A animosidade entre os dois lados escalou e fez Israel ameaçar com o aniquilamento total do grupo terrorista Hamas, que está no poder em Gaza desde 2007. A campanha militar levada a cabo pelo Hamas e os ataques bélicos feitos por Israel causaram, até o momento, 30.800 vítimas fatais, a maioria mulheres e crianças (segundo balanço do Ministério da Saúde do território).
Às vítimas de deslocamento forçado ao redor do mundo, somam-se agora, portanto, os palestinos, principalmente da Faixa de Gaza em função de uma guerra “irracional” (se é que se pode falar de alguma guerra racional) que parece não ter fim. Israel exige que o Hamas liberte os reféns que ainda estão vivos e se encontram sob seu poder mas continua tendo seu pedido ignorado pelo grupo terrorista. Enquanto isso, no pequeno território de Gaza, 2,2 milhões de pessoas (segundo a ONU), ou seja, toda a sua população, sobrevivem à beira da fome e na iminência de serem atingidos a qualquer momento por alguma bomba ou arma. Trata-se pois, de mais uma tragédia para a humanidade e uma vergonha para um mundo que se quer dizer civilizado. Como alerta Filippo Grandi, já passou da hora de as partes em conflito respeitarem as leis básicas da guerra e do direito internacional: “O fato é que, sem uma melhor cooperação e esforços conjuntos para lidar com conflitos, violações de direitos humanos e a crise climática, os números de deslocamento continuarão aumentando, trazendo mais miséria e respostas humanitárias caras”.(23)
O que pode ser chamado de civilização, quando analisamos esse quadro desalentador no mundo hodierno? Para evitar tão grande sofrimento humano a comunidade internacional deve agir com urgência, tentar combater, sem subterfúgios, as diferentes causas fundamentais desses vários deslocamentos incessantes e forçados ao redor do mundo. Os “condenados da terra” a que me referi no inicio do texto é um termo que tomei "emprestado" de Frantz Fanon, que continua retratando, como a seu tempo, as vítimas da colonização, da tensão política e do poder dominante que gera opressão e raiva, sob uma lógica colonial europeia — branca, brutal e racista. A ela se acrescentou, no mundo moderno, outros opressores e saqueadores como os Estados Unidos, Canadá, Austrália, China, Rússia, etc. Ainda não foi possível criar um mundo realmente humano, no qual a massa de pobres e deserdados dos países colonizados — para Fanon “os condenados da terra” — se tornassem os inventores de sua própria vida. Há que se deslocar o centro gravitacional do poder para que isso comece a acontecer.
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(1) Artigo (© antonio cr tupinambá). Baseado em matéria publicada no Jornal DN intitulado: “Desaprendemos a viver em paz” (Fortaleza-CE) em 19 de dezembro de 2020. Disponível em: <https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/opiniao/colaboradores/desaprendemos-a-viver-em-paz-1.3024434>. Acesso: dez. 2020.
(2) Karen Honório é professora do curso de Relações Internacionais e Integração da UNILA, doutoranda pelo PPGRI San Tiago Dantas e membro do GR-RI.
(3)Foto do site: https://www.roraimanarede.com.br/noticia/46935/imigrantes-venezuelanos-chegam-a-roraima-cada-vez-mais-miseraveis